Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-113-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 306
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Sinopse: Um
misterioso pacote de cartas entregue à escritora Susan Willis é o ponto de
partida deste livro que, por meio da reprodução dessas cartas, conta a história
de um relacionamento amoroso. Susan se apaixonou pela prosa da Bela Adormecida –
pseudônimo utilizado pela autora das cartas, cuja identidade é desconhecida – e
mergulhou fundo em seus múltiplos significados. O resultado desse arrebatamento
é o surpreendente Cartas a Legba.
Carregadas de desejo, as cartas desenvolvem em tom de
fábula a trajetória do amor entre Bela e Legba, seu amante e destinatário.
Ousadas e provocativas, as cartas desafiam o receptor, o censuram e o elogiam,
terminando sempre com um convidativo ‘a seguir’, que instiga a leitura da carta
seguinte. Bela registra os acontecimentos de sua vida, entremeando-os com
relatos de seus sentimentos. Dessa forma, não se furta a dividir com o amante
aspectos de seu cotidiano, como o trabalho e as mudanças de estação. A aparente
simplicidade de sua fábula encobre a complexidade de sentimentos e
subjetividades presentes nas cartas. A autora se apresenta como uma mulher
multifacetada, capaz de encarnar vários papéis e nada inocente.
O posfácio do livro, escrito por Maria Elisa Cevasco,
traduz os sentimentos de Bela e gera uma identificação imediata com o público
leitor, especialmente o feminino. Quem nunca tentou dar sentido à experiência
do amor, entendê-la, recontá-la? Para Maria Elisa, além da história, sobressai
nas cartas ‘a dor enorme de dizer e, ao dizer, limitar e negar’. A coragem de
Bela está em assumir de forma escancarada seus desejos. Nesse sentido, Cartas a Legba cumpre um papel
emancipador. Sua beleza está, nas palavras de Maria Elisa, em empreender a ‘tarefa
necessária e impossível de tentar explicar o que se recusa a ser contido por
palavras’.
“A origem destas cartas está envolta em
mistério. Basta dizer que uma pessoa amiga entregou-as a mim. É possível que
soubesse de minhas tendências anacrônicas: não uso correio eletrônico:
portanto, era fatal que essas cartas, escritas à mão e estruturadas como
poemas, me fascinariam.
De fato, adoro cartas – que chamo de correio
real –, pois elas transformam a correspondência em algo concreto. A página
dobrada em um envelope e enviada para longe – para ser aberta, manuseada, lida,
talvez guardada para sempre –, a carta estabelece uma ligação física entre duas
pessoas. Inscrita de imediato em um sistema real de troca que diminui a
distância a separar quem escreve de quem lê, uma carta é também um veículo de
troca simbólica, que, em um passe de mágica, faz desaparecer o tempo que separa
a escrita e a leitura, o envio e o recebimento. Enquanto a carta eletrônica
dilui a dor da separação, deslocando tempo e distância para o espaço virtual, a
carta física enlaça a dor e a alegria, justamente porque ela é o talismã
contraditório de uma separação e da sua negação.
Uma carta apresenta-se como prova tangível,
incontroversa, dos sentimentos e dos pensamentos de quem a escreve. Mas é também
testemunho de enorme reserva de ideias e de desejos, que vão morrer com quem
escreve, sem deixar nenhum traço. A brevidade de uma carta funciona como um
criptograma de tudo o que é pensado, mas jamais escrito. Assim, a materialidade
da carta fala de silêncios e ausências. Penso, por exemplo, no pacote de cartas
que encontrei, escritas por minha mãe ao homem que viria a ser seu marido. Suas
palavras eram esparsas e eficientes, excluindo qualquer tipo de sentimento. E,
no entanto, meu pai as guardou e mais tarde as devolveu a minha mãe, como
testemunhos de um amor que permanece não dito.
Não se trata de afirmar que as cartas
necessariamente dizem verdades. Muitas veiculam significados parciais, ou mesmo
distorcidos, evidenciando todas as emoções contraditórias e mal resolvidas que
afloraram em nossas melhores tentativas de expressão. Ao escrever, encontramos
modos de desviar do que é difícil de se evitar, ou de se dizer. A solução mais
rasteira para uma verdade de mau jeito é uma mentira deslavada. Aposto que
algumas cartas utilizam o caráter de evidência da escrita para cobrir com uma
pátina de verdade a falsidade. Mas a maioria das cartas escritas sob o peso de
uma bagagem de emoções trata de lidar com a verdade de forma muito mais
complicada, na qual a escritora torna-se uma forma de apagamento. O que é
escrito pode não mentir, mas oculta a verdade. Como nos sonhos, nossas cartas
podem fazer referência oblíqua a verdades que deveriam permanecer não ditas.
As cartas podem também ser mal entendidas,
uma prova da bagagem emocional que o receptor adiciona à carta. Na verdade, ler
uma carta é muito mais complicado do que escrevê-la. Cada palavra nos leva a
evocar um silêncio. As frases convidam a negociar apagamentos. Ao ler, construímos
significados consistentes com nossas próprias esperanças e medos, em especial
com aqueles que mal percebemos. Uma carta jamais é o que parece e sempre é mais
do que é.” (Prefácio de Susan Willis)
“Toda carta é um risco, tanto em termos
factuais quanto de seu significado. Será que a carta que escrevi será enviada
(ou ficará guardada na minha gaveta)? Chegará a seu destino (ou ficará perdida,
ou será interceptada no acaso do trânsito)? Será aberta (ou será jogada no lixo
por um receptor enraivecido ou mesmo indiferente)? Minha carta será guardada? E
se for, será como um tesouro ou meramente arquivada? E, aí, o jogo fatal: minha
carta será encontrada? E se for, por quem? Quais serão, então, as
consequências? Tenho certeza de que não sou a única esposa que, procurando
selos na escrivaninha do marido, acabou encontrando uma carta de amor. Como foi
divertido encontrá-la, que deliciosa a enorme curiosidade de ler, como me senti
superior ao ver as linhas patéticas, cheias de carinho. Certamente eu poderia
redigir algo mil vezes melhor, embora escrever cartas de amor para o marido
seja algo que as esposas nunca fazem. Um amor feito de certezas não se
confessa.
Ainda que seja um objeto, a carta guarda a
característica especial de não ser uma mercadoria, a menos que tenha o azar de
ter sido escrita por uma pessoa famosa e, depois, vendida em leilão. As cartas
apresentam a matéria-prima do pensamento trabalhada em uma forma física, e
enviada a outra pessoa, em um processo no qual a produção e a troca não geram
lucro. O capitalismo não é a economia das cartas. Falta-lhe o ofuscamento da
mediação e da abstração, sua economia é muito mais brutal e direta. Trata-se de
uma forma econômica semelhante à dos jogos de azar, que nos pede que
arrisquemos uma parte de nós mesmos cada vez que escrevemos. Apostamos nosso
futuro no resultado de nossas palavras. Uma carta pode não gerar lucros, mas
seu custo pode ser muito alto.
Quando recebemos uma carta, fazemos o jogo de
sua economia. Ler uma carta é confiscar significados. Só os leitores simplistas
aceitam as palavras pelo seu valor nominal. Assim, negociamos o custo da
escrita da carta pelo preço da nossa interpretação. (Prefácio de Susan Willis)
“dia
cinzento, monótono
aqui em paris retomo minha história
ainda no momento em que a Bela lê o texto de Legba
Gata mimada,
a Bela tem prazer com o texto de Legba
mais instintual
que intelectual
ela esquadrinha as páginas
fareja as palavras
e condescende em saborear as mais belas de todas
Horas depois
enrosca-se
e adormece com o livro
contente de respirar
os levíssimos traços
do feiticeiro impregnados nas páginas
Ao despertar
retoma o livro
Mas dessa vez ela começa a refletir sobre as palavras
abre o cérebro para aí gravar o sentido da escrita
com a sagacidade inesperada
ela descobre a base da
magia de seu amante
vê que ele constrói um discurso
como uma joia perfeita
uma safira
que maravilha a leitora
com uma lógica hipnótica
ler é entrar num sistema fechado
para ativar o poder de Legba em termos determinados
pelo próprio feiticeiro
Aterrorizada,
a Bela fecha o livro –
unir-se ao feiticeiro no plano da palavra é
mais perigoso
que se unir a ele no amor
Reencontrando seu orgulho,
a Bela olha o livro
agora como um desafio
Mais obstinada que corajosa,
ela abre novamente o livro
e, para expulsar os espíritos do vodu,
lê em voz alta
na sua própria voz ela ouve
as palavras de Legba
na sua própria voz ela escuta
a descrição do hotel em
Porterville
todas as janelas abertas
todos os quartos vazios
todas as televisões ligadas
De súbito
a Bela se dá conta
de que já ouvira as mesmas palavras
antes que fossem escritas
ela as ouvira
sussurradas
ao ouvido
nas noites de amor
quando Legba a tomava em
seu leito
para aí misturar
o desejo com seus contos
fabulosos
Enraivecida, transtornada,
a Bela fecha o livro
sente-se traída
seu amante recolheu e publicou os contos
que ela aceitara como presentes
como joias
oferecidas expressamente a
ela
Perdida numa torrente de sentimentos
tão coléricos
quanto caóticos
a Bela luta contra sua tendência bruja
Para poder ainda refletir
sobre o feiticeiro
e sobre seu livro
... onde as palavras
ouvidas na clandestinidade
se transformaram
em uma forma acessível
a olhos inumeráveis”
“As escolhas são todas mortais.”
“como o
uróboro
dragão mítico que engole a própria cauda
para metaforizar a circularidade do tempo
também a sequência das cartas escritas a Legba
encerra a circularidade de um ano
onde o uróboro representa a unidade perfeita
a história de Legba e a Bela envolve complexidade
na qual o fio de Ariadne
que revela a linearidade no
labirinto
transforma-se em teia de aranha
onde os fios designam a simultaneidade
em que tudo é possível
assim, a conclusão em seguida das cartas
oferece eventualidades múltiplas
todos os desenlaces são verdadeiros
nenhum é exclusivo
Eis o desenlace melodramático:
seguindo um dos fios de sua história
Legba volta à Terra Desconhecida
para encontrar a Bela completamente mudada
em vez de alegre
vivaz
está distraída
agitada
procurando sossegá-la
Legba propõe uma viagem ao interior do país
habitualmente, ela aceitaria sem pensar duas vezes
mas desta vez ela hesita
desconcertada
perturbada até a histeria
imagine
o desespero de Legba
contando com a magia, não consegue compreender
o que acontece à Bela
presa de sua biologia
a Bela está grávida
paralisada entre o rei
que pede o aborto
e Legba
que propõe a fuga
a Bela não suporta
e diz que vai embora
que se afasta
e que ninguém a encontrará
imagine,
o desgosto
a dor
enfim, a cólera de Legba
quando, três dias depois
vê
que a Bela mentiu
que ela não partiu
com efeito, está ainda com o rei
Lúcifer
fogo e fumaça
Legba se enraivece
Furioso
vai-se embora como um vento
tempestuoso até o deserto
lá, encontra o lugar
secreto
a gruta clandestina
onde ele e a Bela fizeram o
amor
num ato ritual
um exorcismo executado para expulsar todo traço da Bela
ele queima
todas as cartas que a Bela escreveu
e que ele guardara
ainda encolerizado
recolhe as cinzas
e as envia à Bela
imagine
a esperança que a Bela
alimentava
quando recebeu a carta
escrita pela mão de seu amante
esperança transformada no mais profundo desespero
no momento em que a Bela abre a carta e encontra as cinzas
amante assassino
Legba emprega o simbólico
para matar o amor
Bruja, sem saber
A Bela ingere as cinzas
Feiticeira, sem ciência
anos mais tarde
ela começa a escrever ainda
cartas a Legba
Talismãs
de seu desejo”