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sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Cartas a Legba: um texto encontrado, de Susan Willis (org.)

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-113-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 306

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Sinopse: Um misterioso pacote de cartas entregue à escritora Susan Willis é o ponto de partida deste livro que, por meio da reprodução dessas cartas, conta a história de um relacionamento amoroso. Susan se apaixonou pela prosa da Bela Adormecida – pseudônimo utilizado pela autora das cartas, cuja identidade é desconhecida – e mergulhou fundo em seus múltiplos significados. O resultado desse arrebatamento é o surpreendente Cartas a Legba.

Carregadas de desejo, as cartas desenvolvem em tom de fábula a trajetória do amor entre Bela e Legba, seu amante e destinatário. Ousadas e provocativas, as cartas desafiam o receptor, o censuram e o elogiam, terminando sempre com um convidativo ‘a seguir’, que instiga a leitura da carta seguinte. Bela registra os acontecimentos de sua vida, entremeando-os com relatos de seus sentimentos. Dessa forma, não se furta a dividir com o amante aspectos de seu cotidiano, como o trabalho e as mudanças de estação. A aparente simplicidade de sua fábula encobre a complexidade de sentimentos e subjetividades presentes nas cartas. A autora se apresenta como uma mulher multifacetada, capaz de encarnar vários papéis e nada inocente.

O posfácio do livro, escrito por Maria Elisa Cevasco, traduz os sentimentos de Bela e gera uma identificação imediata com o público leitor, especialmente o feminino. Quem nunca tentou dar sentido à experiência do amor, entendê-la, recontá-la? Para Maria Elisa, além da história, sobressai nas cartas ‘a dor enorme de dizer e, ao dizer, limitar e negar’. A coragem de Bela está em assumir de forma escancarada seus desejos. Nesse sentido, Cartas a Legba cumpre um papel emancipador. Sua beleza está, nas palavras de Maria Elisa, em empreender a ‘tarefa necessária e impossível de tentar explicar o que se recusa a ser contido por palavras’.



“A origem destas cartas está envolta em mistério. Basta dizer que uma pessoa amiga entregou-as a mim. É possível que soubesse de minhas tendências anacrônicas: não uso correio eletrônico: portanto, era fatal que essas cartas, escritas à mão e estruturadas como poemas, me fascinariam.

De fato, adoro cartas – que chamo de correio real –, pois elas transformam a correspondência em algo concreto. A página dobrada em um envelope e enviada para longe – para ser aberta, manuseada, lida, talvez guardada para sempre –, a carta estabelece uma ligação física entre duas pessoas. Inscrita de imediato em um sistema real de troca que diminui a distância a separar quem escreve de quem lê, uma carta é também um veículo de troca simbólica, que, em um passe de mágica, faz desaparecer o tempo que separa a escrita e a leitura, o envio e o recebimento. Enquanto a carta eletrônica dilui a dor da separação, deslocando tempo e distância para o espaço virtual, a carta física enlaça a dor e a alegria, justamente porque ela é o talismã contraditório de uma separação e da sua negação.

Uma carta apresenta-se como prova tangível, incontroversa, dos sentimentos e dos pensamentos de quem a escreve. Mas é também testemunho de enorme reserva de ideias e de desejos, que vão morrer com quem escreve, sem deixar nenhum traço. A brevidade de uma carta funciona como um criptograma de tudo o que é pensado, mas jamais escrito. Assim, a materialidade da carta fala de silêncios e ausências. Penso, por exemplo, no pacote de cartas que encontrei, escritas por minha mãe ao homem que viria a ser seu marido. Suas palavras eram esparsas e eficientes, excluindo qualquer tipo de sentimento. E, no entanto, meu pai as guardou e mais tarde as devolveu a minha mãe, como testemunhos de um amor que permanece não dito.

Não se trata de afirmar que as cartas necessariamente dizem verdades. Muitas veiculam significados parciais, ou mesmo distorcidos, evidenciando todas as emoções contraditórias e mal resolvidas que afloraram em nossas melhores tentativas de expressão. Ao escrever, encontramos modos de desviar do que é difícil de se evitar, ou de se dizer. A solução mais rasteira para uma verdade de mau jeito é uma mentira deslavada. Aposto que algumas cartas utilizam o caráter de evidência da escrita para cobrir com uma pátina de verdade a falsidade. Mas a maioria das cartas escritas sob o peso de uma bagagem de emoções trata de lidar com a verdade de forma muito mais complicada, na qual a escritora torna-se uma forma de apagamento. O que é escrito pode não mentir, mas oculta a verdade. Como nos sonhos, nossas cartas podem fazer referência oblíqua a verdades que deveriam permanecer não ditas.

As cartas podem também ser mal entendidas, uma prova da bagagem emocional que o receptor adiciona à carta. Na verdade, ler uma carta é muito mais complicado do que escrevê-la. Cada palavra nos leva a evocar um silêncio. As frases convidam a negociar apagamentos. Ao ler, construímos significados consistentes com nossas próprias esperanças e medos, em especial com aqueles que mal percebemos. Uma carta jamais é o que parece e sempre é mais do que é.” (Prefácio de Susan Willis)

 

 

“Toda carta é um risco, tanto em termos factuais quanto de seu significado. Será que a carta que escrevi será enviada (ou ficará guardada na minha gaveta)? Chegará a seu destino (ou ficará perdida, ou será interceptada no acaso do trânsito)? Será aberta (ou será jogada no lixo por um receptor enraivecido ou mesmo indiferente)? Minha carta será guardada? E se for, será como um tesouro ou meramente arquivada? E, aí, o jogo fatal: minha carta será encontrada? E se for, por quem? Quais serão, então, as consequências? Tenho certeza de que não sou a única esposa que, procurando selos na escrivaninha do marido, acabou encontrando uma carta de amor. Como foi divertido encontrá-la, que deliciosa a enorme curiosidade de ler, como me senti superior ao ver as linhas patéticas, cheias de carinho. Certamente eu poderia redigir algo mil vezes melhor, embora escrever cartas de amor para o marido seja algo que as esposas nunca fazem. Um amor feito de certezas não se confessa.

Ainda que seja um objeto, a carta guarda a característica especial de não ser uma mercadoria, a menos que tenha o azar de ter sido escrita por uma pessoa famosa e, depois, vendida em leilão. As cartas apresentam a matéria-prima do pensamento trabalhada em uma forma física, e enviada a outra pessoa, em um processo no qual a produção e a troca não geram lucro. O capitalismo não é a economia das cartas. Falta-lhe o ofuscamento da mediação e da abstração, sua economia é muito mais brutal e direta. Trata-se de uma forma econômica semelhante à dos jogos de azar, que nos pede que arrisquemos uma parte de nós mesmos cada vez que escrevemos. Apostamos nosso futuro no resultado de nossas palavras. Uma carta pode não gerar lucros, mas seu custo pode ser muito alto.

Quando recebemos uma carta, fazemos o jogo de sua economia. Ler uma carta é confiscar significados. Só os leitores simplistas aceitam as palavras pelo seu valor nominal. Assim, negociamos o custo da escrita da carta pelo preço da nossa interpretação. (Prefácio de Susan Willis)

 

 

dia cinzento, monótono

aqui em paris retomo minha história

ainda no momento em que a Bela lê o texto de Legba

 

Gata mimada,

a Bela tem prazer com o texto de Legba

mais instintual

que intelectual

ela esquadrinha as páginas

fareja as palavras

e condescende em saborear as mais belas de todas

 

Horas depois

enrosca-se

e adormece com o livro

contente de respirar

os levíssimos traços

do feiticeiro impregnados nas páginas

 

Ao despertar

retoma o livro

 

Mas dessa vez ela começa a refletir sobre as palavras

abre o cérebro para aí gravar o sentido da escrita

com a sagacidade inesperada

ela descobre a base da magia de seu amante

vê que ele constrói um discurso

como uma joia perfeita

uma safira

que maravilha a leitora

com uma lógica hipnótica

 

ler é entrar num sistema fechado

para ativar o poder de Legba em termos determinados

pelo próprio feiticeiro

 

Aterrorizada,

a Bela fecha o livro –

unir-se ao feiticeiro no plano da palavra é

mais perigoso

que se unir a ele no amor

 

Reencontrando seu orgulho,

a Bela olha o livro

agora como um desafio

 

Mais obstinada que corajosa,

ela abre novamente o livro

e, para expulsar os espíritos do vodu,

lê em voz alta

 

na sua própria voz ela ouve

as palavras de Legba

na sua própria voz ela escuta

a descrição do hotel em Porterville

todas as janelas abertas

todos os quartos vazios

todas as televisões ligadas

 

De súbito

a Bela se dá conta

de que já ouvira as mesmas palavras

antes que fossem escritas

ela as ouvira

sussurradas

ao ouvido

nas noites de amor

quando Legba a tomava em seu leito

para aí misturar

o desejo com seus contos fabulosos

 

Enraivecida, transtornada,

a Bela fecha o livro

sente-se traída

 

seu amante recolheu e publicou os contos

que ela aceitara como presentes

como joias

oferecidas expressamente a ela

 

Perdida numa torrente de sentimentos

tão coléricos

quanto caóticos

a Bela luta contra sua tendência bruja

 

Para poder ainda refletir

sobre o feiticeiro

e sobre seu livro

... onde as palavras ouvidas na clandestinidade

se transformaram

em uma forma acessível

a olhos inumeráveis

 

 

“As escolhas são todas mortais.”

 

 

como o uróboro

dragão mítico que engole a própria cauda

para metaforizar a circularidade do tempo

também a sequência das cartas escritas a Legba

encerra a circularidade de um ano

 

onde o uróboro representa a unidade perfeita

a história de Legba e a Bela envolve complexidade

na qual o fio de Ariadne

que revela a linearidade no labirinto

transforma-se em teia de aranha

onde os fios designam a simultaneidade

em que tudo é possível

 

assim, a conclusão em seguida das cartas

oferece eventualidades múltiplas

todos os desenlaces são verdadeiros

nenhum é exclusivo

 

Eis o desenlace melodramático:

 

seguindo um dos fios de sua história

Legba volta à Terra Desconhecida

para encontrar a Bela completamente mudada

 

em vez de alegre

vivaz

está distraída

agitada

 

procurando sossegá-la

Legba propõe uma viagem ao interior do país

habitualmente, ela aceitaria sem pensar duas vezes

mas desta vez ela hesita

desconcertada

perturbada até a histeria

 

imagine

o desespero de Legba

contando com a magia, não consegue compreender

o que acontece à Bela

presa de sua biologia

a Bela está grávida

 

paralisada entre o rei

que pede o aborto

 

e Legba

que propõe a fuga

 

a Bela não suporta

e diz que vai embora

que se afasta

e que ninguém a encontrará

 

imagine,

o desgosto

a dor

enfim, a cólera de Legba

 

quando, três dias depois

que a Bela mentiu

que ela não partiu

com efeito, está ainda com o rei

 

Lúcifer

fogo e fumaça

Legba se enraivece

Furioso

vai-se embora como um vento tempestuoso até o deserto

lá, encontra o lugar secreto

a gruta clandestina

onde ele e a Bela fizeram o amor

 

num ato ritual

um exorcismo executado para expulsar todo traço da Bela

ele queima

todas as cartas que a Bela escreveu

e que ele guardara

 

ainda encolerizado

recolhe as cinzas

e as envia à Bela

 

imagine

a esperança que a Bela alimentava

quando recebeu a carta

escrita pela mão de seu amante

 

esperança transformada no mais profundo desespero

no momento em que a Bela abre a carta e encontra as cinzas

 

amante assassino

Legba emprega o simbólico

para matar o amor

 


Bruja, sem saber


A Bela ingere as cinzas

Feiticeira, sem ciência

 

anos mais tarde

ela começa a escrever ainda cartas a Legba

Talismãs

de seu desejo

Mas não se matam cavalos?, de Horace McCoy

Editora: L&PM

Opinião: ★★★☆☆

Tradução: Irene Hirsch

ISBN: 978-85-2541-646-9

Páginas: 136

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Sinopse: A depressão econômica da década de 1930 nos Estados Unidos fez as pessoas tomarem medidas drásticas para sobreviver. Popularizaram-se no país as maratonas de dança – competições públicas em que casais dançavam por dias a fio, desafiando os limites dos seus corpos diante de uma plateia animada, na tentativa de ser a última dupla remanescente. Em um período de fome e desespero, parecia uma maneira simples de ganhar um dinheirinho. Mas tais concursos escondiam uma agressividade e uma violência social usualmente não associadas aos salões de dança

Em Mas não se matam cavalos? (1935), Horace McCoy (1897-1955) apresenta Robert Syverten e Gloria Beatty, duas pessoas sem perspectiva alguma, que decidem participar de uma maratona de dança achando que, assim, granjearão alguma oportunidade de trabalho em Hollywood. Quando de sua publicação, a novela foi considerada experimental devido à maneira como é utilizado o recurso de flashback. Em 1969, o filme foi adaptado para o cinema por Sydney Pollack, com Jane Fonda no papel de Gloria. Tanto o livro quanto o filme chocaram o público ao mostrar ao mundo como um lugar em que aqueles sem dinheiro ou status social lutam como podem pela sobrevivência – tendo à frente apenas a certeza da morte. Um livro pungente, impossível de largar.



Não existem experiências novas na vida. Alguma coisa pode acontecer que você acha que nunca aconteceu antes, que você acha que é novidade, mas é um engano. Basta você ver, ou sentir um cheiro, ou escutar alguma coisa para você entender que essa experiência, que você pensou que era nova, já aconteceu antes.”

 

 

— O que você vai fazer quando isso acabar? — ela perguntou.

— Por que se preocupar com isso? — eu disse. — Ainda não acabou. Não sei do que você está reclamando — eu disse a ela. — Estamos numa situação melhor do que antes... Pelo menos, sabemos onde vamos comer.

— Queria estar morta — ela disse. — Queria que Deus me matasse.

Ela não parava de dizer isso. Eu estava começando a ficar irritado.

— Um dia Deus vai fazer esse favorzinho a você — eu disse.

— Queria tanto que fizesse mesmo... Queria ter coragem de fazer isso por Ele.

— Se ganharmos essa coisa, você pode pegar seus quinhentos dólares e ir para qualquer lugar — eu disse. — Você pode se casar. Tem um monte de sujeitos querendo se casar. Nunca pensou nisso?

— Já pensei muito nisso — ela disse. — Mas nunca conseguiria casar com o tipo de homem que quero. O único tipo que se casaria comigo é aquele que não quero. Um ladrão, um cafetão, ou algo parecido.

— Sei por que você está tão mórbida — eu disse. — Vai se sentir bem dentro de alguns dias. Vai se sentir melhor.

— Não tem nada a ver — ela disse. — Não estou nem com dores nas costas. Não é isso. Isso aqui é um turbilhão. Quando sairmos daqui, vamos estar no mesmo lugar onde estávamos antes de começar.

— Nós comemos e dormimos — eu disse.

— E de que adianta isso, se isso apenas significa adiar uma coisa que vai mesmo acontecer?”

 

 

“— Estou cheia disso — disse Glória. — Estou cheia de olhar para as celebridades e estou cheia de fazer sempre a mesma coisa...

— Às vezes me arrependo de ter conhecido você — eu disse. — Não gosto de dizer isso, mas é verdade. Antes de conhecer você eu não sabia como era estar perto de gente deprimida.

Nós nos juntamos aos outros pares na linha de partida.

— Estou cansada de viver e tenho medo de morrer

— Glória disse.

— Ora, essa é uma ideia legal para uma música — disse James Bates, que escutou tudo. — Você podia compor uma música sobre um velho negro no rio que estava cansado de viver e tinha medo de morrer. Ele poderia estar carregando algodão e enquanto isso cantava uma música para o rio Mississipi. Ora, sei de um bom título... você podia chamar de Old Man River...

Glória lançou olhares fulminantes para ele, mexendo no nariz.”

 

 

“— As senhoras têm filhos? — Glória perguntou, quando a porta se fechou.

— Nós duas temos filhas adultas — disse a sra. Higby.

— Sabem onde elas estão hoje à noite e o que estão fazendo?

Nenhuma das duas mulheres disse nada.

— Talvez eu possa lhes dar uma ideia — Glória disse. — Enquanto as senhoras, duas nobres personalidades, estão aqui cumprindo seu dever com pessoas que nem conhecem, suas filhas provavelmente estão sem roupas no apartamento de algum sujeito enchendo a cara.

A sra. Higby e a sra. Witcher prenderam a respiração ao mesmo tempo.

— É o que acontece em geral com as filhas de reformadores — Glória disse. — Mais cedo ou mais tarde elas transam com alguém e a maioria não sabe nem evitar encrenca. Vocês as afastam de casa com seus malditos sermões sobre pureza e decência, e ficam muito ocupadas se metendo na vida dos outros para poder ensinar a elas...

— Ora! — disse a sra. Higby, com o rosto cada vez mais vermelho.

— Eu... — disse a sra. Witcher.

— Glória... — eu disse.

— Está na hora de alguém falar isso para essas mulheres — disse Glória, ficando de costas para a porta, como se para evitar que as mulheres saíssem —, e sou quem vai fazer isso. Vocês são daquele tipo de vaca que se enfia no banheiro para ler livros de sacanagem e contar histórias sujas e depois anda por aí tentando estragar a festa dos outros...

— Saia da frente desta porta, mocinha, e deixe— nos sair daqui! — gritou a sra. Higby. — Me recuso a escutá-la. Sou uma senhora respeitável. Sou professora da escola dominical...

— Não vou me mexer nem um milímetro, enquanto eu não acabar — disse Glória.

— Glória...

— Sua Liga da Moralidade e seus malditos clubes de mulheres — ela disse, sem prestar atenção em mim — cheios de vacas intrometidas que não dão uma bela trepada há mais de vinte anos. Por que as senhoras não saem por aí e pagam por uma de vez em quando? É isso que está errado com vocês...”

 

 

“Glória esteve mórbida o dia todo. Perguntei um monte de vezes o que ela estava pensando.

— Nada — era a resposta.

Percebo agora como fui burro. Eu deveria saber sobre o que ela estava pensando. Lembrando agora daquela noite, não entendo como pude ser tão burro. Mas naquela época eu era um idiota a respeito de um monte de coisas... O juiz está sentado ali, fazendo seu discurso, me olhando pelos seus óculos, mas suas palavras têm o mesmo efeito sobre o meu corpo como sua visão em relação aos óculos-, atravessam sem parar, destruindo cada olhar e cada palavra que seguem. Não estou escutando o juiz com meus ouvidos e meu cérebro, assim como as lentes dos óculos não pegam e aprisionam os olhares que as atravessam. Eu o escuto com os pés e as pernas e as costas e os braços e tudo menos meus ouvidos e meu cérebro. Com meus ouvidos e meu cérebro escuto um vendedor de jornal na rua gritando alguma coisa sobre o rei Alexandre, escuto os bondes passando na rua, escuto os carros, escuto os avisos dos semáforos; na sala do tribunal escuto as pessoas respirando e mexendo os pés, escuto a madeira de um banco estalando, escuto o pingo de uma pessoa cuspindo. Tudo isso eu escuto com meus ouvidos e meu cérebro, mas escuto o juiz apenas com meu corpo. Se algum dia você escutar um juiz dizer a você o que ele está dizendo para mim, você vai entender o que quero dizer.

 

 

(Na parte abaixo conta-se o final do livro – o famoso spoiler – portanto, cuidado ao seguir.)

Glória e eu andamos pela pista de dança, meus calcanhares fazendo tanto barulho que nem pareciam meus. Rocky estava na porta da frente com um policial.

— Para onde vocês vão? — Rocky perguntou.

— Vamos tomar um pouco de ar — Glória disse.

— Vão voltar?

— Vamos — eu disse a ele. — Só vamos tomar um pouco de ar. Faz tanto tempo que não saímos ao ar livre...

— Não demorem — Rocky disse, olhando para Glória e molhando os lábios de modo expressivo.

— Vá à merda! — Glória disse, saindo.

Passava das duas da madrugada. O ar estava úmido, espesso e limpo. Tão espesso e limpo que eu sentia meus pulmões devorando o ar em imensos pedaços.

“Aposto que estão contentes por receber este tipo de ar”, eu disse aos meus pulmões.

Virei para trás e olhei para o edifício.

— Então foi nesse lugar que estivemos o tempo todo — eu disse. — Agora sei como Jonas se sentiu quando olhou para a baleia.

— Vamos — disse Glória.

Andamos em volta do prédio em direção ao píer. O píer se estendia pelo oceano até onde a vista alcançava, subindo e descendo, gemendo e estalando com o movimento da água.

— É um mistério as ondas não levarem esse píer embora — e disse.

— Você é obcecado por ondas — Glória disse.

— Não, não sou — eu disse.

— Você só fala nisso há um mês...

— Tudo bem, fique parada um minuto e vai entender o que estou dizendo. Dá para sentir o sobe e desce...

— Posso sentir isso sem ficar parada — ela disse mas isso não é motivo de preocupação. Isso acontece há milhões de anos.

— Não fique pensando que sou louco pelo oceano — eu disse. — Tudo bem se eu nunca mais vir o oceano. Já vi o bastante pelo resto de minha vida.

Sentamos num banco que estava úmido dos borrifos do mar. No fim do píer vários homens pescavam à beira do trapiche. A noite estava escura, não tinha lua nem estrelas. Uma linha irregular de espuma branca marcava a praia.

— A brisa está gostosa — eu disse.

Glória não disse nada, olhando para longe. Lá embaixo na praia tinha um lugar com luzes.

— Ali é Malibu — eu disse. — Onde todas as estrelas de cinema moram.

— O que você vai fazer agora? — ela disse, por fim.

— Não sei direito. Pensei em procurar o sr. Maxwell amanhã. Talvez ele possa fazer alguma coisa. Ele parecia interessado de verdade.

— Sempre amanhã — ela disse. — A grande chance sempre vem amanhã.

Passaram dois homens, carregando varas de pescar. Um deles arrastava um tubarão-martelo atrás de si.

— Essa criancinha não vai fazer mais nenhum estrago — ele disse para o outro homem...

— O que você vai fazer? — eu perguntei a Glória.

— Vou pular fora desse carrossel — ela disse. — Estou de saco cheio desta coisa nojenta.

— Que coisa?

— A vida — ela disse.

— Por que não tenta ajudar a si mesma? — eu disse. — Você sempre toma a atitude errada em todas as coisas.

— Não me venha com sermões — ela disse.

— Não estou fazendo sermão — eu disse mas você tem de mudar de atitude. É sério. Isso afeta todo mundo que chega perto de você. Eu, por exemplo. Antes de conhecer você eu não achava que poderia fracassar. Nunca pensei em não dar certo. E agora...

— Quem ensinou você a falar desse jeito? — ela perguntou. — Você nunca pensaria isso por você.

— Sim, eu pensei — eu disse.

Ela olhou para o oceano em direção a Malibu.

— Ah, de que adianta eu enganar a mim mesma? — ela disse, depressa. — Sei qual é meu lugar...

Eu não disse nada, fiquei olhando para o oceano e pensando em Hollywood, pensando se já tinha estado lá, ou se acordaria de novo em Arkansas e teria de correr e pegar meu jornal antes que amanhecesse.

— ...Filho-da-puta — Glória dizia para si. — Não precisa me olhar desse jeito — ela disse. — Sei que não presto...

“Ela tem razão”, disse comigo. “Ela tem toda razão. Ela não presta...”

— Queria ter morrido naquela vez em Dallas — ela disse. — Sempre achei que o médico salvou minha vida por uma única razão...

Eu não disse nada quando escutei isso, ainda olhando para o oceano e pensando em como ela estava certa sobre não prestar e que não foi legal ela não ter morrido naquela vez em Dallas. Com certeza ela estaria melhor se estivesse morta.

— Sou uma desajustada. Não tenho nada para dar para ninguém — ela dizia. — Pare de me olhar desse jeito — ela disse.

— Não estou olhando para você de nenhum jeito — eu disse. — Você não está vendo meu rosto...

— Estou sim — ela disse.

Ela estava mentindo. Ela não podia ver meu rosto. Estava muito escuro.

— Você não acha que devemos entrar? — eu disse. — Rocky queria ver você...

— Aquele... — ela disse. — Sei o que ele quer, mas ele nunca mais vai conseguir. Nem ninguém mais.

— O quê? — eu disse.

— Você não sabe?

— Não sei o quê? — eu disse.

— O que Rocky quer.

— Ah! — eu disse. — Claro. Agora caiu a ficha.

— É o que todos os homens querem — ela disse —, mas tudo bem. Ah, não foi ruim dar para o Rocky. Ele me fez um favor e eu fiz um favor a ele... Mas, e se eu me encrenquei?

— Você não está achando que sim, está? — perguntei.

— Sim, estou. Até agora sempre tomei conta de mim. E se eu tiver uma criança? — ela disse. — Você já sabe o que ela vai ser quando crescer, não é? Como nós. Não quero isso. De qualquer modo, estou acabada. Acho este mundo podre e estou acabada. Eu estaria melhor se estivesse morta, assim como todo mundo. Eu estrago tudo que chega perto de mim. Você mesmo disse isso.

— Quando foi que eu disse uma coisa dessas?

— Agora mesmo. Você disse que antes de me conhecer nunca tinha pensado em fracassar... Bem, não é minha culpa. Não tenho controle. Já tentei me matar uma vez, mas não consegui e nunca mais tive coragem para tentar de novo... Quer fazer um favor ao mundo? — ela perguntou.

Eu não disse nada, fiquei escutando o oceano bater contra a balaustrada, sentindo o píer subir e descer e pensando que ela estava certa sobre o que dissera.

Glória estava remexendo na bolsa. Quando tirou a mão de dentro, vi que estava segurando uma arma pequena. Não tinha visto a arma antes, mas não fiquei surpreso. Não fiquei nada surpreso.

— Pegue — ela disse, entregando a arma para mim.

— Não quero. Guarde isso — eu disse. — Vamos, vamos voltar lá para dentro. Estou com frio...

— Pegue e ajude a Deus — ela disse, pressionando a arma na minha mão. — Atire em mim. É o único jeito de me salvar deste sofrimento.

“Ela está certa”, disse comigo. “É o único jeito de salvá-la desse sofrimento.” Quando eu era criança passava as férias na fazenda de meu avô em Arkansas. Certo dia estava perto do defumadouro, vendo a minha avó fazer sabão numa grande panela de ferro, quando meu avô atravessou o jardim, muito agitado. “A Nellie quebrou a perna”, meu avô disse. Minha avó e eu subimos a escada para o jardim onde meu avô estava arando. A Nellie estava no chão gemendo, ainda presa ao arado. Ficamos ali olhando para ela, só olhando para ela. Meu avô voltou com a arma que tinha usado em Chickamauga Ridge. “Elapisou num buraco”, ele disse acariciando a cabeça de Nellie. Minha avó me virou para o outro lado. Comecei a chorar. Ouvi um tiro. Ainda escuto esse tiro. Corri até ela, me joguei no chão, abraçando o pescoço dela. Eu amava aquela égua. Eu odiei meu avô. Me levantei e fui até ele, bati nas pernas dele com meus punhos... Mais tarde, naquele dia, ele me explicou que também amava Nellie, mas que teve de atirar nela. “Era a coisa mais bondosa a fazer”, ele disse. “Ela não ia ficar boa. Era o único jeito de salvá-la do sofrimento...”

Eu estava com a arma na mão.

— Tudo bem — eu disse a Glória. — Diga quando.

— Estou pronta.

— Onde?

— Aqui mesmo. Do lado da cabeça.

O píer pulou quando uma onda grande se quebrou.

— Agora?

— Agora.

Atirei nela.

O píer se mexeu de novo e a água fez um barulho de engolir algo quando voltou para o oceano.

Joguei a arma no mar.

  

Um policial estava sentado atrás comigo enquanto o outro dirigia. Estávamos indo bem depressa e a sirene tocava. Era o mesmo tipo de sirene que usaram na maratona de dança quando queriam nos acordar.

— Por que você a matou? — perguntou o policial no banco de trás.

— Ela me pediu — eu disse.

— Escutou isso, Ben?

— Que filho-da-puta mais prestativo! — disse Ben, por cima do ombro.

— É seu único motivo? — perguntou o policial do banco de trás.

— Mas não se matam cavalos? — eu disse.”