Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1346-0
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 406
Sinopse: Amigo de
infância do célebre Niccolò Machiavelli, Antonino Argalia viveu na Florença
renascentista até perder os pais para a peste. Sozinho, decide tentar a sorte
em terras distantes, oferecendo seus serviços como mercenário. Peripécias
diversas acabam por alçá-lo à frente das forças otomanas em luta contra o xá da
Pérsia, em 1514. Uma vez derrotado o xá, Argalia conhece Qara Köz, ex-amante do
soberano e mulher de beleza e poderes mágicos, por quem se apaixona de
imediato.
A história de Qara Köz, a feiticeira de Florença, é
contada ao imperador Akbar, o Grande, por um atrevido forasteiro que atravessa
o mundo para comunicar ao soberano mongol que é seu parente direto. Numa
intrigante sucessão de aventuras, o misterioso contador de histórias vai
revelando os caminhos que conduzem Argalia e sua bela mulher desde Istambul até
a Florença dos Medici.
Mesclando habilmente realidade e ficção, A feiticeira
de Florença aproxima a cidade de Machiavelli de um império oriental que
atinge, também no século XVI, apogeu comparável nas artes e no pensamento filosófico.
Teriam as idéias e os ideais renascentistas florescido também do outro lado do
mundo, na corte de Akbar? É a resposta a essa pergunta que Salman Rushdie expõe
com graça e agilidade nesta obra-prima encantadora.
“Um romance marcado pela engenhosidade e pela ambição -
nada menos que uma defesa da imaginação humana.” - The New York Times
““Se você fosse um ateu, Birbal”, o imperador
desafiou seu primeiro-ministro, “o que diria aos verdadeiros crentes de todas as
grandes religiões do mundo?” Birbal era um brâmane devoto de Trivikrampur, mas respondeu
sem hesitar: “Eu lhes diria que em minha opinião eles eram todos ateus também; eu
apenas acredito em um deus a menos que cada um deles”. “Como assim?”, perguntou
o imperador. “Todos os verdadeiros crentes têm boas razões para desacreditar de
todos os deuses exceto o seu próprio”, disse Birbal, “então são eles que, juntos,
me dão todas as razões para eu não acreditar em nenhum.”
“Como eram belos, seus filhos! Com que força jogavam!
Veja o Príncipe Herdeiro Salim, com catorze anos apenas, arqueiro já tão hábil que
as regras do esporte estavam sendo reformadas para encaixá-lo. Ah, Murad, Daniyal,
meus galopadores, o imperador pensou. Como ele os amava, e no entanto que vagabundos
eles eram! Olhe os olhos deles: já estavam bêbados. Tinham onze e dez anos e já
estavam bêbados, bêbados no comando de cavalos, os tolos. Ele havia dado instruções
severas à criadagem, mas aqueles eram príncipes do sangue, e nenhum criado ousava
contradizê-los.
Ele os mantinha espionados, claro, de forma que
sabia tudo sobre o vício do ópio de Salim e seus feitos de lasciva perversão noturna.
Talvez fosse compreensível que um sujeito jovem no primeiro jorro de sua potência
desenvolvesse um gosto por sodomizar mulheres bonitas, mas logo seria preciso soprar
uma palavra no ouvido dele, porque as bailarinas andavam reclamando que os traseiros
doloridos, seus botões de romã vandalizados, dificultavam seu desempenho.”
“No centro da sala principal da Casa da Audiência
Privada, havia uma árvore de arenito vermelho da qual pendia o que aos olhos não
treinados do visitante Mogor dell’ Amore pareceu um imenso cacho de bananas de pedra
estilizadas. Grandes “galhos” de pedra vermelha corriam do alto do tronco da árvore
para os quatro cantos da sala. Do intervalo entre esses ramos pendiam dosséis de
seda, bordados com ouro e prata; e debaixo dos dosséis e das bananas, de costas
para o grosso tronco de pedra, estava o homem mais assustador do mundo (com uma
exceção): um homem pequeno e adocicado de enorme intelecto e cintura, amado pelo
imperador, odiado por rivais invejosos, um lisonjeador, adulador, devorador de quinze
quilos de comida por dia, um homem capaz de mandar seus cozinheiros prepararem mil
pratos diferentes para a refeição da noite, um homem para quem a onisciência não
era uma fantasia, mas um requisito mínimo da vida.
Tratava-se de Abul Fazl, o homem que sabia tudo
(exceto línguas estrangeiras e as muitas línguas incultas da índia, que lhe escapavam,
todas, de forma que ele transmitia uma imagem incomum e monoglota na Babel multilinguística
daquela corte). Historiador, espião-mestre, a mais brilhante das Nove Estrelas e
segundo confidente mais próximo do homem mais assustador do mundo (sem exceção),
Abul Fazl sabia a verdadeira história da criação do mundo, que tinha ouvido, dizia,
dos próprios anjos e sabia também quanta forragem os cavalos dos estábulos imperiais
podiam comer por dia e a receita aprovada de biryani e por que escravos haviam sido
rebatizados de discípulos e a história dos judeus e a ordem das esferas celestiais
e os Sete Graus do Pecado, as Nove Escolas, as Dezesseis Dificuldades, as Dezoito
Ciências e as Quarenta e Duas Coisas Impuras. Ele era também notificado, através
de sua rede de informantes, de cada uma das coisas que acontecia em cada língua
dentro das muralhas de Fatehpur Sikri, todos os segredos sussurrados, todas as traições,
todos os deleites, todas as promiscuidades, de forma que cada pessoa por trás daquelas
muralhas estava também à sua mercê, ou à mercê de sua pena, que o rei Abdullah de
Bokhara dissera que se devia temer mais que até a espada de Akbar, exceto apenas
o homem mais assustador do mundo (sem exceção), que não tinha medo de ninguém, e
que era, claro, o imperador Akbar, seu senhor.”
“Se o homem havia criado deus, então o homem podia
incriá-lo também. Ou era possível uma criação escapar ao poder do criador? Podia
deus, uma vez criado, ter se tornado impossível de destruir? Esses atritos adquiriam
uma autonomia da vontade que os tornava imortais? O imperador não tinha as respostas,
mas as próprias perguntas pareciam uma espécie de resposta.”
“Quanto aos livros, porém, Akbar havia mudado
o protocolo. Segundo os velhos hábitos, qualquer livro que chegasse à presença imperial
precisava ser lido por três comentadores diferentes e declarado livre de rebeldia,
obscenidade e mentiras. “Em outras palavras”, o jovem rei dissera ao subir ao trono,
“só podemos ler os livros mais chatos já escritos. Bom, isso não serve absolutamente.”
Hoje em dia todo tipo de livro era permitido,
mas as resenhas de três comentadores eram apresentadas ao imperador antes de ele
abri-los, por causa do abrangente, supremo protocolo referente à impropriedade da
surpresa real.”
“A princesa Qara Köz instintivamente sabia o que
fazer para se proteger e também para conquistar o coração dos homens, o que tantas
vezes acabava sendo a mesma coisa.”
“‘Essa pode ser a maldição da raça humana’, respondeu
Mogor. ‘Não que sejamos tão diferentes uns dos outros, mas que sejamos tão parecidos’.”
““E você, com seus três deuses, um carpinteiro,
um pai e um espírito, e a mãe do carpinteiro em quarto lugar", perguntou o
imperador a Mogor, com alguma irritação, “você dessa terra santa que enforca seus
bispos e queima seus padres na fogueira, enquanto seu grande padre comanda um exército
e age com a mesma brutalidade de qualquer general ou príncipe comum – qual das loucas
religiões desta terra para você achou mais atraente? Ou elas são para você todas
a mesma coisa em baixeza? Aos olhos do padre Acquaviva e do padre Monserrate, temos
certeza, nós somos tudo o que o seu Argalia pensava que éramos, o que quer dizer
porcos sem deus”.
“Senhor”, disse Mogor dell'Amore, com calma, “sinto
atração pelos grandes panteões politeístas porque as histórias são melhores, mais
numerosas, mais dramáticas, mais engraçadas, mais maravilhosas; e porque os deuses
não nos dão bom exemplo, eles interferem, são vaidosos, petulantes e se comportam
mal, o que, confesso, é bem atraente”.
“Temos a mesma sensação”, disse o imperador, retomando
a compostura, “e nosso afeto por esses deuses devassos, zangados, brincalhões, amorosos
é muito grande. Fundamos uma força de cento e um homens para contar e dar nome a
todos, a cada divindade venerada no Hindustão, não os celebrados, altos deuses,
mas todos os menores também, os pequenos espíritos de um lugar, de bosques sussurrantes
ou murmurejantes regatos de montanha. Mandamos que deixassem suas casas e famílias
e embarcassem numa viagem sem fim, uma viagem que só termina quando eles morrerem,
porque a tarefa que lhes demos é impossível, e quando um homem assume o impossível
ele viaja todo dia com a morte, aceita a jornada como uma purificação, uma expansão
da alma, de forma que se transforma numa jornada não para os nomes dos deuses, mas
para o próprio Deus. Eles mal começaram seus trabalhos e já recolheram um milhão
de nomes. Que proliferação de divindade! Nós achamos que esta terra tem mais entidades
sobrenaturais do que pessoas de carne e osso, e ficamos felizes de viver num mundo
tão mágico. E no entanto temos de ser o que somos. Um milhão de deuses não são nossos
deuses; a austera religião de nosso pai sempre será a nossa, assim como o credo
do carpinteiro é a sua”.”
“Quando a solidão era expulsa, a pessoa ficava
mais ela mesma, ou menos? A multidão realçava a identidade ou apagava?”
“Alessandra aperfeiçoara havia muito a arte de
ver só o que ela queria, o que constituía uma conquista essencial se você pretendia
ser um dos senhores do mundo e não sua vítima.”
“Contra Vlad III, o voivode de Wallachia
– Vlad “Dracula”, o “diabo-dragão”, o Príncipe Empalador, Kazikli Bey –,
nenhum poder comum conseguia triunfar. Começaram a dizer que o príncipe Vlad bebia
o sangue de suas vítimas empaladas enquanto elas se retorciam nos espasmos da morte
nas estacas, e que beber sangue vivo de homens e mulheres lhe dava um estranho poder
sobre a morte. Ele não podia morrer. Ele não podia ser morto. Era também o bruto
dos brutos. Cortava o nariz dos homens que matava e mandava para o príncipe da Hungria
para se gabar de seu poder. Essas histórias faziam o exército temê-lo, e a marcha
para Wallachia não foi feliz. Para encorajar os janízaros, o sultão distribuiu trinta
mil moedas de ouro e disse aos homens que se eles vencessem ganhariam títulos de
propriedades e recobrariam o uso de seus nomes. Vlad, o Diabo, já havia queimado
toda a Bulgária e empalado vinte e cinco mil pessoas em estacas de madeira, mas
suas forças eram menores que o exército otomano. Ele recuou e deixou terra arrasada
em seu caminho, envenenou poços e abateu gado. Quando o exército do sultão se viu
desolado sem comida nem água, o Rei Diabo realizou ataques de surpresa. Muitos soldados
foram mortos e seus corpos espetados em varas pontudas. Então, Dracula retirou-se
para Tirgoviste e o sultão declarou: “Será a última parada do diabo”.
Mas em Tirgoviste viram uma coisa terrível. Vinte
mil homens, mulheres e crianças tinham sido empalados pelo diabo numa paliçada de
estacas em torno da cidade, só para mostrar ao exército que avançava o que o esperava.
Havia bebês agarrados a suas mães empaladas em cujos seios podres viam-se ninhos
de corvos. Diante da visão da floresta de empalados, o sultão ficou enojado e retirou
suas tropas desanimadas. Parecia que a campanha ia terminarem catástrofe, mas o
herói deu um passo à frente com seu grupo leal. “Faremos o que é preciso fazer”,
disse. Um mês depois, o herói retornou a Istambul com a cabeça do diabo num pote
de mel. Afinal de contas, Dracula podia morrer, apesar dos rumores em contrário.
Seu corpo havia sido empalado como tantos outros e deixado para os monges de Snagov
enterrarem como quisessem.”
“Quando um homem não é querido, algo nele começa
a morrer. Todo homem precisa que outros homens se voltem para ele de dia e que uma
mulher se envolva em seus braços à noite.”
““Se acha que vou fazer isso”, disse Hamida Bano,
“então essas histórias do estrangeiro realmente deixaram você de miolo mole”. O
imperador olhou a mãe nos olhos. “Quando o imperador dá uma ordem”, disse ele, “o
castigo para desobediência é a morte”.”
“(para que pudesse subir ao trono sem concorrência
familiar) Selim caçou e estrangulou seus irmãos Ahmed, Korkud e Shahinshah, e matou
os filhos deles também. A ordem foi restaurada e o risco de um golpe eliminado.
Muitos anos depois, quando Argalia contou a Niccolò il Machia sobre esses feitos,
ele os justificou dizendo: “Quando um príncipe toma o poder, ele precisa dar o pior
de si imediatamente, porque depois disso cada ato seu parecerá a seus súditos uma
melhoria no modo como ele começou”.”
“Não há herói que não descubra o vazio do heroísmo
antes de morrer.”
“Não o mereciam. Aqueles rústicos o mereciam,
mas em geral o povo merecia os cruéis príncipes que amava. A dor que percorrera
seu corpo não era dor, porém conhecimento. Era uma dor educativa que rompia os últimos
fragmentos de sua confiança nas pessoas. Argalia servira o povo e tinham lhe pagado
com dor, naquele lugar subterrâneo sem luz, aquele lugar sem nome em que gente sem
nome fazia coisas sem nome com corpos que eram também sem nome, porque nomes não
importavam ali, apenas a dor importava, a dor seguida pela confissão, seguida pela
morte. O povo havia desejado a sua morte, ou pelo menos não se importara se ele
viveria ou morreria. Na cidade de Florença, que dera ao mundo a ideia do valor e
da liberdade da alma humana individual, não tinham dado valor a ele nem se importado
um mínimo com a liberdade de sua alma, tampouco com a integridade de seu corpo.
Ele havia dedicado ao povo catorze anos de serviços honestos e honrados e não tinham
dado importância a sua soberana vida individual, a seu direito humano de permanecer
vivo. Pessoas assim deveriam ser afastadas. Eram incapazes de amor ou justiça e,
portanto, não significavam nada. Gente assim não importava mais. Não eram primárias,
mas secundárias. Só os déspotas importavam. O amor do povo era instável e inconstante,
e desejar esse amor era loucura. Não existia amor. Existia apenas poder.”
“Depois que um homem esteve numa câmara de tortura,
seus sentidos nunca mais esquecem certas coisas, a úmida escuridão, o frio fedor
de excremento humano, os ratos, os gritos. Depois que um homem foi torturado, há
uma parte dele que nunca para de sentir dor. O castigo conhecido como strappado
estava entre os momentos mais torturantes que podiam ser infligidos a uma pessoa
humana sem matá-la de uma vez. Os pulsos eram amarrados às costas, e a corda que
os prendia passada numa polia no teto. Quando o homem era levantado do chão por
aquela corda, a dor em seus ombros se transformava no mundo inteiro. Não apenas
a cidade de Florença com seu rio, não apenas a Itália, mas toda a plenitude de Deus
era apagada por essa dor.”
“Muito se falou em “sabedoria oriental”, o que
Qara Köz descartou quando chegou a seus ouvidos. “Não existe nenhuma sabedoria particular
no Oriente”, ela disse a Argalia. “Todos os seres humanos são tolos no mesmo grau”.”