terça-feira, 22 de maio de 2018

Obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história (Parte III) – István Mészáros

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Ver Parte I



“Ironicamente, a idealização amplamente difundida da ordem reprodutiva estabelecida como um “sistema natural” cuida de tudo, até mesmo do problema da escassez potencialmente mais destrutiva, quando a escassez é reconhecida como parte do esquema geral das soluções difíceis, porém trabalháveis. Pois uma vez que a autoridade suprema da natureza em si é postulada[571] pelos representantes ideológicos da burguesia como parte integrante do quadro explicativo universal e justificação dos processos e relações dados, até mesmo o que à primeira vista poderia parecer como uma grande contradição pode prontamente desaparecer.
Nesse sentido, a teoria liberal do Estado foi fundada na contradição autoproclamada entre a assumida harmonia total dos fins – os fins postos como necessariamente desejados por todos os indivíduos em virtude de sua “natureza humana” – e a total anarquia dos meios. E a anarquia dos meios conceitualizada dessa maneira foi a escassez alegadamente intransponível de bens e recursos que devem induzir os indivíduos à luta e, em última instância, a destruir uns aos outros, a não ser que tenham sucesso em estabelecer acima de si mesmos uma ordem superior, na forma do Estado burguês, como força restritiva permanente de sua beligerância individual.
Portanto, o Estado foi inventado com o suposto propósito de “transformar a anarquia em harmonia”. Ou seja, dedicar-se à tarefa universalmente louvável de harmonizar a anarquia dos meios, determinada pela natureza, com a harmonia dos fins veleitariamente postulada – e igualmente determinada pela natureza – ao reconciliar o antagonismo violento entre esses dois fatores naturais: a “natureza humana” inalterável e a escassez material eternamente dominante. E, obviamente, essa reconciliação foi afirmada na forma da permanência absoluta do poder político do Estado imposto externamente sobre os indivíduos.
Para ser exato, se os fatores assim salientados fossem realmente as forças inalteráveis da natureza, e consequentemente não pudessem ser controlados de nenhuma outra maneira, exceto por uma autoridade política supraindividual externa superimposta sobre os indivíduos constituídos pela natureza em si como antagonicamente confrontando e destruindo uns aos outros enquanto indivíduos beligerantes, nesse caso a autoridade corretiva do Estado, em sua capacidade de tornar realmente possíveis os intercâmbios societários harmonizáveis, teria sua legitimidade permanente. Nesse caso, a versão idealista hegeliana dessa ideologia do Estado – segundo a qual o desígnio originalmente oculto do espírito absoluto, estabelecendo o Estado como a única superação possível das contradições dos genus-indivíduos conflitantes na “sociedade burguesa” e sendo o Estado como tal tanto “a realização completa do espírito na existência” [572] quanto “a imagem e a efetividade da razão”[573] – seria autoevidentemente verdadeira para sempre. Dessa forma, não poderia haver absolutamente nenhuma questão sobre almejar o “fenecimento” do Estado.
Contudo, o fato de que, de um lado, a estipulada “condição humana”[574] era em si uma suposição autosserviente, inventada com o propósito de uma plausibilidade circular de sua mera suposição em virtude do que deveria supostamente “explicar” e justificar, e, do outro, a escassez realmente existente era uma categoria inerentemente histórica, e consequentemente sujeita à mudança histórica factível e superação potencial, teve de permanecer oculto na teoria liberal do Estado e da “sociedade civil” sob as múltiplas camadas da circularidade característica dessa teoria. Pois foi esse tipo de circularidade apologética, constituída sobre um fundamento natural meramente assumido, porém totalmente insustentável, que permitiu que os representantes intelectuais do liberalismo avançassem e retrocedessem à vontade das premissas arbitrárias para as conclusões desejadas, estabelecendo nos fundamentos apriorísticos de sua circularidade ideológica a “legitimidade eterna” do Estado liberal. Graças a essa circularidade fundamental entre os indivíduos “determinados pela natureza”, bem como sua “sociedade civil” apropriadamente conflituosa e o Estado político idealizado – que supostamente deveria superar as contradições identificadas sem modificar a ordem reprodutiva material existente em si –, tanto a formação do Estado do capital quanto seu quadro reprodutivo societal puderam ser assumidos como para sempre dados em virtude da reciprocidade justificadora e, com isso, da permanência absoluta projetada de sua inter-relação.
A escassez (ou “anarquia dos meios”) desempenhou um papel fundamental nesse esquema de coisas. Ela justificou “racionalmente” tanto a irreconciliabilidade dos indivíduos beligerantes enquanto “genus-indivíduos” – que, afinal de contas, tiveram de afirmar seu autointeresse de acordo com sua estipulada “natureza humana” – quanto, ao mesmo tempo, forneceu a razão eterna para a adoção das medidas corretivas necessárias pelo Estado político para tornar o sistema como um todo intransponível pela prevenção de sua destrutiva fragmentação por meio dos antagonismos perseguidos individualmente. Mas basta retirar dessa cena a “escassez intransponível” e substituí-la por algo semelhante a uma disponibilidade sustentável dos recursos produtivos e humanamente gratificantes, aos quais geralmente nos referimos como “abundância” irrestrita, para testemunhar o imediato colapso de todo o constructo pseudorracional autojustificatório. Pois, na ausência da fatídica escassez, os genus-indivíduos supostamente determinados pela natureza não têm nenhum motivo para se engajar na “luta para viver ou morrer” entre si para que sobrevivam.
Pela mesma lógica, no entanto, se aceitarmos a proposição preocupada com a escassez determinada pela natureza – e, portanto, por definição, existencialmente primária, intransponível e que a tudo justifica –, estaremos aprisionados por um quadro estrutural no qual as partes postulam-se reciprocamente/circularmente umas às outras, bloqueando com isso qualquer possibilidade de sair desse círculo vicioso. Pois, nesse caso, devemos aceitar até mesmo o postulado fictício da genus-individualidade determinada pela natureza, tendo como evidência que os seres humanos indubitavelmente sobreviveram com (e apesar de) seus conflitos até o momento atual em um mundo de escassez dentro dos confins da “sociedade civil” e do Estado.
Nesse sentido, se a alternativa socialista pretende oferecer uma saída dessa armadilha tendenciosa, concebida do ponto de vista do capital, ela deve desafiar todos os seus constituintes circularmente engastadores. Isso vale não só para uma concepção viável de natureza humana historicamente definida e socialmente em mutação – destacada por Marx em citação anterior como a “verdadeira comunidade dos humanos”[575] e em outra publicação como o “conjunto de relações sociais”[576] – como também para todo o resto. Ou seja, para a eternizada ordem reprodutiva material burguesa da “sociedade civil”, bem como para a sua formação de Estado, de modo a ser capaz de almejar ao mesmo tempo um modo radicalmente diferente de reprodução social metabólica. Um modo de reprodução capaz de superar as relações de classe antagônicas estabelecidas, deturpadas nas concepções burguesas – até mesmo nas maiores delas – enquanto conflitualidade individual determinada pelo genus. Pois as mediações de segunda ordem antagônicas do capital necessariamente carregam consigo a irracionalidade perversa da escassez eternizada, mesmo quando suas condições materiais originais são produtivamente superadas no curso do desenvolvimento histórico.”
[571] Isso é feito até mesmo pelo filósofo idealista Hegel, com seu modo revelador e puramente ideológico de realizá-lo, em defesa das mais iníquas determinações da ordem estabelecida. Pode-se encontrar uma discussão sobre o assunto no capítulo 6 do meu A dialética da estrutura e da história. / [572] G. W. F. Hegel, Filosofia da história (trad. Maria Rodrigues e Hans Harden, Brasília, UnB, 1995), p. 23. / [573] Idem, Linhas fundamentais da filosofia do direito: ou direito natural e ciência do Estado em compêndio (trad. Paulo Meneses et al., São Paulo, Loyola, 2010), p. 313. / [574] Como Marx deixou bem claro, em sua afiada crítica da abordagem que postulou a ideia dos indivíduos isolados necessariamente beligerantes e determinados pela natureza como o fundamento fictício da “natureza humana” de que a apologética política de uma ordem do Estado burguês absolutamente permanente poderia ser prontamente derivada: “A condição humana é a verdadeira comunidade dos humanos. O funesto isolamento em relação a essa condição é incomparavelmente mais abrangente, mais insuportável, mais terrível e mais contraditório do que o isolamento em relação à comunidade política”, Karl Marx, “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano’”, em Lutas de classes na Alemanha (São Paulo, Boitempo, 2010), p. 50. / [575] Idem. / [576] Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 538.


“O problema da abundância aparece muitas vezes contraposto à escassez. Às vezes isso é feito com o propósito de rejeitar aprioristicamente a possibilidade de superação da escassez em qualquer momento futuro, não importa quão distante, pois se diz ser totalmente irrealista almejar a instituição estável da abundância na sociedade humana, em vista das determinações insuperavelmente conflitantes da “natureza humana”. Não é preciso mais nenhum comentário em relação a essa posição.
Em outras ocasiões, no entanto, a possibilidade de superar a escassez pela abundância não é negada a princípio, mas não obstante é excluída pelo tempo previsível à nossa frente com base no fundamento de que seriam necessárias algumas condições tecnológicas produtivamente mais avançadas que talvez se materializassem (ou não) no futuro distante. E também há uma terceira posição, positivamente assertiva, sobre a abundância emergente que declara que “a conquista da escassez atualmente não é só previsível, mas na verdade prevista”[586].
A posição de Marcuse era quase a mesma que as visões que acabamos de citar de um ensaio escrito pelo canadense C. B. Macpherson, um proeminente pensador marxista. Marcuse insistiu que as “possibilidades utópicas” defendidas por ele “são implícitas às forças técnicas e tecnológicas do capitalismo avançado” na base das quais se “acabaria com a pobreza e a escassez em um futuro muito previsível” [587]. Ele continuou repetindo que
o progresso técnico alcançou um estágio em que a realidade já não precisa ser definida pela extenuante competição pela sobrevivência e pelos progressos sociais. Quanto mais essas capacidades técnicas transcendem o quadro de exploração dentro do qual permanecem confinadas e violentadas, mais elas impulsionam as tendências e aspirações do homem a um ponto em que as necessidades da vida deixam de requerer as atuações agressivas de “ganhar o sustento”, e o “não necessário” se torna um prêmio vital. [588]
E, na mesma obra, escrita bem antes de afundar no profundo pessimismo dos seus últimos anos de vida, Marcuse postulou um “fundamento biológico” para a mudança revolucionária, dizendo que tal fundamento
teria a chance de transformar o progresso técnico quantitativo em modos de vida qualitativamente diferentes – precisamente porque seria uma revolução ocorrendo em um alto nível do desenvolvimento material e intelectual, e que permitiria ao homem conquistar a escassez e a pobreza. Se essa ideia de uma transformação radical tiver de ser mais que uma especulação fútil, ela precisa de um fundamento objetivo no processo de produção da sociedade industrial avançada, em suas capacidades técnicas e uso. Pois a liberdade de fato depende amplamente do progresso técnico, do avanço da ciência.[589]
Essa irrealidade generosamente bem-intencionada foi escrita e publicada por Marcuse há mais de quarenta anos, e não vimos absolutamente nada apontando na direção de sua realização. Pelo contrário, testemunhamos recentemente uma crise devastadora da “sociedade industrial avançada”, com a ocorrência de levantes por falta de alimentos em nada menos que 35 países reconhecida por um dos pilares ideológicos da ordem estabelecida – The Economist –, apesar de todo o significativo progresso técnico indubitavelmente alcançado nas últimas quatro décadas. Nem mesmo a mais sutil tentativa foi feita para a duradoura “conquista da escassez”.
A grande fraqueza das projeções do tipo das de Marcuse, compartilhadas por C. B. Macpherson e muitos outros, é que se espera que os resultados positivos referentes à “conquista de fato prevista da escassez” surjam da “força propulsora” do progresso técnico/tecnológico e do avanço produtivo. E isso não poderia acontecer nem mesmo em mil anos, quanto mais em quarenta ou cem. Pois a tecnologia não é uma “variável independente”. Ela está profundamente enraizada nas mais fundamentais determinações sociais, apesar de toda a mistificação em contrário[590], como vimos anteriormente em diversas ocasiões.
Ninguém pode duvidar de que a simpatia das pessoas que, desse modo, prenunciam a conquista da escassez está do lado dos “miseráveis da Terra que combatem o monstro abastado”[591]. Mas seu discurso moral nem sequer pode tocar as determinações objetivas fundamentais que, de modo tão bem-sucedido, perpetuam a situação denunciada dos explorados e oprimidos, que dirá efetivamente alterá-las. Esperar que o avanço produtivo, que surge do “progresso técnico” na “sociedade industrial avançada”, desloque a humanidade na direção da eliminação da escassez é rogar pelo impossível. O mesmo tipo de impossibilidade quanto à espera de que o capitalismo estabelecesse um limite para o seu apetite pelo lucro sobre a base de que ele já obteve lucro suficiente. Pois a sociedade da qual Marcuse e outros falam não é uma sociedade “industrial avançada”, mas somente capitalisticamente avançada – e, para a humanidade em si, perigosa de maneira suicida. Ela não pode dar um simples passo na direção de conquistar a escassez enquanto permanecer sob o domínio do capital, independentemente de suas crescentes “capacidades técnicas” e do correspondente grau de melhoria na produtividade no futuro. Por duas importantes razões.
Primeiro, porque até mesmo o maior avanço produtivo tecnicamente assegurado pode ser – e, sob as condições agora prevalecentes em nossa sociedade, de fato é e deve serdissipado pelo desperdício lucrativo e pelos canais da produção destrutiva, incluindo a fraudulência legitimada pelo Estado do complexo militar/industrial, como vimos anteriormente. E, segundo – o que acaba por ser mais fundamental aqui –, por causa do caráter objetivo do sistema de acumulação do capital. Não devemos nos esquecer de que “o capital personificado, dotado de vontade e consciência”, não pode estar interessado na conquista da escassez, e na correspondente distribuição equitativa da riqueza, pela simples razão de que “o valor de uso nunca deve ser tratado, portanto, como meta imediata do capitalismo; [...] mas apenas o incessante movimento do ganho”[592]. E, a esse respeito, que é inseparável do imperativo absoluto da incessante acumulação e expansão do capital, o impedimento estrutural permanente é que o capital sempre é – e, isso não pode ser destacado o suficiente, sempre continuará sendo, por uma questão de determinação sistêmica interna – insuperavelmente escasso, mesmo quando, sob certas condições, contraditoriamente superproduzido[593]. (...)
Na verdade, algumas qualificações elementares são necessárias para uma caracterização apropriada da abundância em si, o que pode ser legitimamente posto no contexto da superação da dominação histórica da escassez. Pois, num estágio relativamente inicial do desenvolvimento histórico da humanidade, as “carências naturalmente necessárias” – que, para nossos ancestrais distantes, estavam em plena consonância com a dominação material opressora da escassez – na verdade são superadas por um conjunto de carências muito mais complexo, historicamente criado, como vimos discutido no meu livro A dialética da estrutura e da história. Para ser exato, o avanço produtivo em questão não representa o fim dessa história onerosa, mas, não obstante, significa um importante passo na direção de conquistar o domínio original da vida humana pela escassez. Nesse sentido:
O luxo é o contrário do naturalmente necessário. As necessidades naturais são as necessidades do indivíduo, ele próprio reduzido a um sujeito natural. O desenvolvimento da indústria abole essa necessidade natural, assim como aquele luxo – na sociedade burguesa, entretanto, o faz somente de modo antitético, uma vez que ela própria repõe uma certa norma social como a norma necessária frente ao luxo. [596]
Por conseguinte, relegar a escassez ao passado é um processo histórico interminável, mas também contínuo, apesar de todos os obstáculos e contradições. No entanto, precisamente por causa da forma antitética na qual esse desenvolvimento histórico deve ser continuado na sociedade burguesa, a verdadeira questão para o futuro não é a instituição utópica da “abundância” irrestrita, mas o controle racional do processo do avanço produtivo pelos indivíduos sociais, possível apenas em uma ordem reprodutiva socialista. Do contrário, o domínio da escassez (não mais historicamente justificável) – na forma da produção destrutiva perversamente perdulária, porém lucrativa em uma variedade de suas formas capitalisticamente factíveis – permanece conosco de forma indefinida. Na ausência da requerida autodeterminação racional em escala societal – cuja ausência, sob as condições atuais, acaba por ser não uma determinação ontológico-existencial fatídica, mas uma questão de impedimento historicamente criado e historicamente superável –, até mesmo a maior “abundância” (abstratamente postulada) seria totalmente impotente e fútil enquanto tentativa de superar o domínio da escassez.
Portanto, estamos preocupados, a esse respeito, com uma força social historicamente determinada – mas não permanentemente determinante da história – e um impedimento à emancipação social que dominou a vida humana durante tempo demais. É esse impedimento estrutural/sistêmico que deve ser radicalmente superado por meio da alternativa hegemônica do trabalho ao modo de controle social metabólico estabelecido do capital, de acordo com a concepção marxiana da “nova forma histórica”.”
[590] Devemos bem nos lembrar das visões de Habermas – um dos maiores mistificadores ecléticos oportunistas em voga no campo – que postula a “cientificização da tecnologia” quando, na verdade, muitos danos são gerados pela fetichista tecnologização da ciência a serviço da produção destrutiva. / [591] Herbert Marcuse, An Essay on Liberation, cit., p. 7. / [592] Karl Marx, O capital, cit., p. 273. / [593] É mais relevante aqui que, “se o capital cresce de 100 para 1.000, o 1.000 é agora o ponto de partida de onde o aumento tem de se dar; a decuplicação de 1.000% não conta para nada; lucro e juro, por seu lado, devêm eles mesmos capital. O que aparecia como mais-valor aparece agora como simples pressuposto etc., como incorporado à própria existência simples do capital”, Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 264. Grifos de Marx.


“O capitalismo avançado, no que se refere à consciência de sua própria condição, e a despeito das enormes disparidades na distribuição de renda, consegue satisfazer as necessidades elementares da maioria da classe trabalhadora – permanecem, naturalmente, as zonas marginais, 15% dos trabalhadores nos Estados Unidos, os negros e os imigrantes; permanecem os idosos; permanece, em escala global, o terceiro mundo. Mas o capitalismo satisfaz a certas necessidades primárias, e também satisfaz a certas necessidades que ele criou artificialmente: por exemplo, a necessidade de um carro. Foi essa situação que me fez revisar minha “teoria das necessidades”, posto que essas necessidades não estão mais, em uma situação de capitalismo avançado, em oposição sistemática ao sistema. Ao contrário, elas parcialmente se tornam, sob o controle do sistema, um instrumento de integração do proletariado em certos processos engendrados e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um carro e para ganhar o suficiente para comprar um; essa aquisição lhe dá a impressão de ter satisfeito uma “necessidade”. Ele é explorado por um sistema que, ao mesmo tempo, lhe dá um objetivo e uma possibilidade de realizá-lo. A consciência do caráter intolerável do sistema não deve mais, portanto, ser buscada na impossibilidade de satisfazer necessidades elementares, mas, acima de tudo, na consciência da alienação – em outras palavras, no fato de que esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido algum, que esse mecanismo é um mecanismo enganador, que essas necessidades são criadas artificialmente, que são falsas, que são exaustivas e só servem ao lucro. Mas unir a classe nesta base é ainda mais difícil.[609] (...)
Para começar, falar sobre “capitalismo avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução social metabólica encontra-se em sua fase descendente do desenvolvimento histórico e, portanto, só é avançado de modo capitalista, mas em absolutamente nenhum outro sentido, e com isso capaz de sustentar-se apenas de um modo ainda mais destrutivo, e portanto, em última instância, também autodestrutivo – é extremamente problemático. Outra afirmação: a caracterização da maioria esmagadora da humanidade – na categoria da pobreza, incluindo os “negros e os imigrantes”, os “idosos” e, em “escala global, o terceiro mundo” – como pertencentes às “zonas marginais” (em afinidade com os “excluídos” de Marcuse), não é menos insustentável. Afinal, na realidade, é o “mundo capitalista avançado” que constitui a margem privilegiada, há muito totalmente insustentável, do sistema global, com sua implacável “negação elementar da necessidade” para a maior parte do mundo, e não o que é descrito por Sartre na entrevista ao grupo Manifesto como as “zonas marginais”. Mesmo com respeito aos Estados Unidos, a margem de pobreza é altamente subestimada em meros 15%. Além disso, a caracterização dos automóveis dos trabalhadores como nada mais do que “necessidades [puramente] artificiais”, que “só sevem ao lucro”, não poderia ser mais unilateral. Pois, ao contrário de muitos intelectuais, nem mesmo os trabalhadores relativamente abastados, sem falar nos membros da classe dos trabalhadores como um todo, têm o luxo de encontrar seu local de trabalho ao lado do seu quarto.
Ao mesmo tempo, ao lado das omissões espantosas, algumas das contradições e falhas estruturais mais graves são inexistentes na descrição sartriana do “capitalismo avançado”, virtualmente esvaziando o significado de todo o conceito. Nesse sentido, uma das necessidades substanciais mais importantes, sem a qual nenhuma sociedade – passada, presente ou futura – poderia sobreviver, é a necessidade de trabalho. Tanto pelos indivíduos produtivamente ativos – abarcando todos eles em uma ordem social plenamente emancipada – quanto pela sociedade em geral, na sua relação historicamente sustentável com a natureza. O fracasso necessário em resolver esse problema estrutural fundamental, que afeta todas as categorias de trabalho, não só no “terceiro mundo”, mas também nos países mais privilegiados do “capitalismo avançado”, com seu desemprego que cresce perigosamente, constitui um dos limites absolutos do sistema do capital em sua totalidade. Outro grave problema que enfatiza a inviabilidade histórica presente e futura do capital é sua mudança calamitosa em direção aos setores parasitários da economia – como a especulação aventureira produtora de crise que assola (como uma questão de necessidade objetiva, frequentemente deturpada como fracasso pessoal sistemicamente irrelevante) o setor financeiro e a fraudulência institucionalizada e legalmente fortalecida, intimamente associada a ele – em oposição aos ramos produtivos da vida socioeconômica requeridos para a satisfação da necessidade humana genuína. Essa é uma mudança que se dá em um contraste ameaçadoramente acentuado em relação à fase ascendente do desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso dinamismo expansionista sistêmico (incluindo a revolução industrial) devia-se predominantemente às realizações produtivas socialmente viáveis e mais intensificáveis. Temos de acrescentar a tudo isso os fardos econômicos maciçamente perdulários, impostos à sociedade de maneira autoritária pelo Estado e pelo complexo militar/industrial – com a permanente indústria de armas e as guerras correspondentes –, como parte integrante do perverso “crescimento econômico” do “capitalismo avançado organizado”. E, para mencionar apenas mais uma das implicações catastróficas do desenvolvimento sistêmico do capital “avançado”, devemos ter em mente a invasão ecológica global, proibitivamente perdulária, de nosso modo não mais sustentável de reprodução metabólica social no mundo planetário finito, com a exploração voraz de recursos materiais não renováveis e a destruição cada vez mais perigosa da natureza. Isso não é “ser sábio depois do acontecimento”. No mesmo período em que Sartre concedeu a entrevista ao Manifesto, escrevi que
Outra contradição básica do sistema capitalista de controle é que ele não pode separar “avanço” de destruição, nem “progresso” de desperdício – por mais catastróficos que sejam os resultados. Quanto mais ele destrava a força de produtividade, mais deve desencadear o poder de destruição; e, quanto mais amplia o volume de produção, mais deve enterrar tudo sob montanhas formadas por sufocante desperdício. O conceito de economia é radicalmente incompatível com a “economia” de produção do capital, que, por necessidade, aumenta ainda mais os estragos, primeiro exaurindo com um desperdício voraz os recursos limitados do nosso planeta, e depois agravando o resultado poluindo e envenenando o ambiente humano com seu desperdício e eflúvio produzidos em massa.[611]
Desse modo, as afirmações problemáticas e as omissões seminalmente importantes da caracterização de Sartre do “capitalismo avançado” enfraquecem fortemente o poder de negação do seu discurso emancipatório.”
609: Entrevista concedida por Sartre ao grupo italiano Manifesto, publicada em The Socialist Register (Pontypool, Merlin, 1970, v. VII), p. 238-9. / 611: Ver minha conferência em memória de Isaac Deutscher, The Necessity of Social Control, proferida na London School of Economics em 26 de janeiro de 1971. Os grifos são do original. [Esta conferência encontra-se na edição brasileira de Para além do capital, cit., p. 983-1011. (N. T.)]


“Naturalmente, Sartre estava absolutamente certo em salientar que “o socialismo não é uma certeza”[631]. Mas é bem problemático que ele tenha definido o socialismo – é claro, totalmente no espírito de sua negação moral da ordem existente – como “um valor: é a liberdade escolhendo a si mesma como objetivo”[632]. Aqui, a questão não é negar que o socialismo, como elogiada perspectiva geral da emancipação humana, seja um valor, o que certamente ele é e deve continuar a ser. Mas é também algo mais, em cuja base se pode afirmar sua validade irreprimível. Do contrário, o socialismo poderia simplesmente ser ignorado ou cinicamente rejeitado pela “espadacharia mercenária do capital” como nada mais que um valor veleitariamente proposto porém fútil, como convém à predominância ideológica da ordem dominante.
O motivo de tal negação não poder prevalecer permanentemente é porque, aconteça o que acontecer, o socialismo também é a única alternativa histórica objetivamente sustentável – e, nesse sentido, objetivamente necessáriaà ordem social metabólica e destrutiva do capital. Nesse sentido, o socialismo, como alternativa hegemônica da ordem dominante, é a necessidade histórica – contraditoriamente histórica mas, não obstante, objetivamente em desdobramento – do nosso tempo. Uma necessidade outrora indubitavelmente possuída também pela ordem reprodutiva do capital; em seu próprio tempo histórico – agora fatidicamente anacrônico, em termos históricos objetivos, por suas determinações destrutivas incorrigíveis.
A negação radical de Sartre da ordem estabelecida, com sua influência centrada na dimensão política e moral posta por ele na base categorial da possibilidade, levou-o a exigir, como imperativo moral geral, o que não pode ser atingido, em nome da realização da “sociedade sem poderes” que defendia. Por essa razão, ele insistiu que “é a estrutura social em si que deve ser abolida, pois ela permite o exercício do poder”[633]. O problema é que a estrutura social em si não pode ser abolida. No caso da estrutura social desumanizadora do capital, ela pode e deve ser radicalmente reestruturada em consonância com os requisitos da sustentabilidade histórica, por meio da constituição e incessante recriação de uma estrutura social alternativa produtivamente e humanamente viável. Igualmente, a questão de exercitar o poder só pode ser decidida nos termos de sua sustentabilidade e especificidade histórica, por meio da determinação comum e do exercício substancialmente igual do poder em uma ordem socialista global. Mas o que está em jogo é a constituição de uma ordem global que não pode concebivelmente funcionar sem a determinação consciente e o exercício emancipatório do poder pelos indivíduos sociais para si mesmos. Na verdade, é a medida de viabilidade da estrutura social de maneira que não só permita, mas também facilite esse tipo de exercício do poder.
Compreensivelmente, considerando a amarga experiência histórica do século XX, Sartre estava profundamente preocupado com o que chamou de “singularidade irredutível de todo homem para com a história que, não obstante, condiciona-o rigorosamente”[634]. Seis anos antes, quando ainda estava envolvido na tarefa de tentar elaborar sua concepção de história real em um humor combativo, Sartre escreveu sobre o imperativo vital de realizar o “concreto universal” nestes termos:
Do mesmo modo nós – ratos sem cerebelos – somos também feitos de tal modo que devemos ou morrer, ou reinventar o homem. [...] sem nós a fabricação se daria no escuro, por emendas e remendos, se nós, os “descerebrados”, não estivéssemos ali para repetir constantemente que devemos trabalhar segundo princípios, que não é uma questão de remendar, mas de medir e construir, e, finalmente, que ou a humanidade será o universal concreto, ou não será.[635]
Quando Sartre ministrou sua conferência sobre Kierkegaard em Paris, em 1964, ele já havia abandonado a escrita da Crítica da razão dialética, mas não seu apaixonado engajamento com os difíceis problemas do “singular universal”. Ele tentou colocar Kierkegaard e Marx juntos, nesse espírito, no interesse das “tarefas que nos esperam dentro da dialética histórica”[636]. Portanto, apesar das solenes celebrações centenárias, ele não tentou esconder as falhas do lado de Kierkegaard, argumentando que o filósofo dinamarquês,
ao se colocar contra Hegel, ocupou-se exclusivamente de transmitir sua instituída contingência à aventura humana e, por conta disso, negligenciou a práxis, que é racionalidade. De um só golpe, desnaturou o conhecimento, esquecendo-se de que o mundo que conhecemos é o mundo que fazemos. A ancoragem é um evento fortuito, mas a possibilidade e o significado racional dessa mudança são dados pelas estruturas gerais de envolvimento que as fundam, e que são, por si, a universalização das aventuras singulares pela materialidade na qual estão inscritas.[637]
E ele não parou aí. Depois de destacar o grande risco prático que surge da exclusão – em nome de um Marx interpretado de modo unilateral –, “a singularidade humana do concreto universal”[638], Sartre terminou sua conferência sobre Kierkegaard com estas desafiadoras questões, formuladas totalmente no espírito de sua própria filosofia:
Como podemos conceber a história e o trans-histórico de modo a restabelecer para a necessidade transcendente do processo histórico e para a livre imanência de uma historização incessantemente renovada sua plena realidade e recíproca interioridade, na teoria e na prática? Em suma, como podemos descobrir a singularidade do universal e a universalização do singular, em cada conjuntura, como indissoluvelmente ligadas uma à outra?[639]
Sartre estava certo ao deixar as questões em aberto. Pois a tarefa de fornecer-lhes uma resposta apropriada só pode ser cumprida pelo mais radical movimento emancipatório de massa. Um movimento capaz de reestruturar qualitativamente a ordem cultural e socioeconômica hierarquicamente entrincheirada do capital de modo a garantir, em uma base material historicamente sustentável, a determinação comum e o exercício substantivo do poder pelos produtores livremente associados em uma base equitativa plena. Nosso mais extraordinário companheiro de armas, Jean-Paul Sartre, deu, de muitas maneiras – até mesmo com seus alertas desesperados – uma imensa contribuição para o desenvolvimento desse movimento.”
[631] Jean-Paul Sartre, Sartre in the Seventies, cit., p. 84. / [632] Idem. / [633] Ibidem, p. 52. / [634] Idem, “Kierkegaard: the Singular Universal”, em Between Existentialism and Marxism (Londres, N.L.B., 1974), p. 168. / [635] Idem, “Des rats et des hommes”, cit., p. 65-6. / [636] Idem, “Kierkegaard: the Singular Universal”, cit., p. 169. / [637] Ibidem, p. 168. Grifos de Sartre. / [638] Ibidem, p. 169. / [639] Idem.

Obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história (Parte II) – István Mészáros

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Ver Parte I



“O que se quer salientar agora é que a identificação, por um pensador, de um aspecto problemático da própria obra não significa, automaticamente, que tenha encontrado uma solução para ele. Tampouco significa que a autocrítica retrospectiva seja necessariamente válida e deva ser aceita por seu significado manifesto. Em ambos os casos, estamos diante de afirmações que carecem de fundamentação e de provas, para que se possa chegar a uma conclusão em um sentido ou em outro. Dar-se conta de um problema pode propiciar a possibilidade de uma solução, mas ela não deve ser confundida com a própria solução, que deve ser estabelecida em bases objetivas e não apenas em autoafirmações críticas, por mais que estas possam ser sentidas como autênticas.”


“Felizmente, porém, há outros modos de produzir mudanças radicais no mundo social. As pré-condições necessárias de uma mudança social importante são (1) a identificação e utilização das contradições, forças e instituições historicamente dadas e (2) a adequação do sujeito da ação à tarefa. Se, contudo, concebe-se o sujeito como um indivíduo isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série infinita. Pois a realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito que é, ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado (por meio de sua classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo) na comunidade a que pertence. Aos olhos do indivíduo isolado, a totalidade social tem de parecer, naturalmente, o agregado misterioso de passos específicos que ele não pode concebivelmente controlar para além de um ponto extremamente limitado, se tanto. Assim, esse indivíduo isolado que se contrapõe – dentro do espírito da dupla dicotomia sartriana – não só ao mundo dos objetos, mas também aos seres humanos do dado mundo social caracterizado como “o outro”, nada mais pode fazer do que admitir a impotência de suas ações pessoais no “mundo das coisas utilizáveis” e deixar-se levar pelas curiosas estratégias do “mundo mágico”. É aqui que a herança heideggeriana mais pesa sobre os ombros de Sartre. A concepção não dialética do mundo como uma totalidade não estruturada e a caracterização, a ela intimamente ligada, do sujeito da ação humana como indivíduo isolado, transmutam-se em “estruturas existenciais” a-históricas, e o mundo social é subsumido pelo mundo da magia: o mundo da emoção.  
[...] na emoção a consciência se degrada e transforma bruscamente o mundo determinado em que vivemos num mundo mágico. Mas há uma recíproca: é o próprio mundo que às vezes se revela à consciência como mágico quando o esperávamos determinado. Com efeito, não se deve pensar que o mágico seja uma qualidade efêmera que colocamos no mundo ao sabor de nossos humores. Há uma estrutura existencial do mundo que é mágica. [...] a categoria “mágica” rege as relações interpsíquicas dos homens em sociedade e, mais precisamente, nossa percepção de outrem. O mágico, diz Alain, é “o espírito arrastando-se entre as coisas”, isto é, uma síntese irracional de espontaneidade e de passividade. É uma atividade interna, uma consciência apassivada. Ora, é precisamente dessa forma que outrem nos aparece, e isto não por causa de nossa posição em relação a ele, não pelo efeito de nossas paixões, mas por necessidade de essência. De fato, a consciência só pode ser objeto transcendente ao sofrer a modificação de passividade. [...] Assim o homem é sempre um feiticeiro para o homem, e o mundo social é primeiramente mágico.[257]
Chamaremos emoção uma queda brusca da consciência no mágico. Ou, se preferirem, há emoção quando o mundo dos utensílios desaparece bruscamente e o mundo mágico aparece em seu lugar. Portanto, não se deve ver na emoção uma desordem passageira do organismo e do espírito que viria perturbar de fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do retorno da consciência à atitude mágica, uma das grandes atitudes que lhe são essenciais, com o aparecimento de um mundo correlativo, o mundo mágico. A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras como ela compreende (no sentido heideggeriano de “verstehen”) seu “ser-no-mundo”.[258]
Embora algumas partes dessas citações sejam muito esclarecedoras quanto à natureza da própria emoção, a utilização da emoção como chave para a compreensão do mundo social (como mágico) é extremamente problemática. Pois o homem pode ser “um feiticeiro para o homem” – mas não sabemos, todos nós, que feiticeiros são uma “invenção” do homem, no sentido sartriano do termo? E, se os homens se comportam como se fossem feiticeiros, não é devido a alguma necessidade ontológica essencial, que brota de uma estrutura existencial permanente e que para sempre se manifesta como síntese irracional inevitável de espontaneidade e passividade, mas sim devido a condições sócio-históricas determinadas – e, pelo menos em princípio, removíveis. Empenhar-se na tarefa de remover essas condições pela reestruturação do mundo social em que vivemos, de acordo com os autênticos fins humanos e em oposição ao poder autopropulsor de instituições “magicamente” reificadas, é precisamente o que confere sentido ao empreendimento humano no estágio atual da história. E não há “mágica” que ajude nisso.”
[257] Jean-Paul Sartre, Emoções, p. 84-5. / [258] Ibidem, p. 90.


“Os princípios metodológicos de uma filosofia são inseparáveis das proposições básicas pelas quais se pode definir toda orientação abrangente do pensamento em direção à realidade. Naturalmente, para fins analíticos, as regras metodológicas podem ter de ser tratadas em separado. Porém, elas não são inteligíveis por si sós nem têm a capacidade de proporcionar justificação para si mesmas. Tentar explicar princípios e regras metodológicos por si mesmos só pode ter como resultado o retrocesso infinito da meta-meta – ...meta-metodologia, ou em circularidade, ou numa combinação dos dois (como em certa “filosofia analítica” neopositivista que se esgota na produção de uma metodologia pela metodologia que se consome a si mesma, afiando obsessivamente seu facão até que a lâmina desapareça por inteiro na poeira de limalhas da autoperfeição e o filósofo fique segurando apenas o cabo).
Os problemas de método nascem do que se faz, e a compreensão filosófica da experiência determina seu próprio método – explícito ou latente. Todo conjunto específico de regras metodológicas apresenta-se como um modo específico de exame e seleção dentre todos os dados disponíveis com vistas a construir um todo coerente. Especificar como proceder, o que incluir ou excluir, como definir a relação entre o conhecimento filosófico e a totalidade do conhecimento disponível (inclusive científico e vulgar), como relacionar a atividade filosófica com a totalidade da práxis humana, e assim por diante – nada disso teria sentido se não pudesse se justificar pela natureza do próprio empreendimento filosófico da maneira como se desenvolveu no curso da história. (Afinal, por que se prestaria menor atenção às regras de determinado método filosófico, a não ser que se quisesse participar do desenvolvimento ulterior desse empreendimento humano coletivo?) Além disso, as regras de um determinado método seriam arbitrárias se não pudessem ser justificadas por seus resultados em comparação aos obtidos pela adoção de métodos alternativos. A redução fenomenológica, por exemplo, é inteiramente fora de propósito sem as referências críticas, explícitas ou implícitas, às supostas deficiências da “atitude natural” e, assim, a todo o complexo de temas controversos – em epistemologia e ontologia – que deram origem à elaboração do método fenomenológico nas duas primeiras décadas do século XX.
As regras e princípios metodológicos são elaborados no decorrer da sistematização de uma dada filosofia como um todo. Essa é a razão por que não podem ser simplesmente transferidos de um cenário para outro, sem todas as modificações necessárias que homogeneízem as regras metodológicas e os princípios temáticos da filosofia em questão. Modificações ontológicas requerem mudanças metodológicas significativas até mesmo em filosofias que, explicitamente, professam sustentar as mesmas regras.”


“[...] Filosofia é uma questão de tomar emprestado e inventar conceitos que, progressivamente, mediante uma espécie de dialética, levam-nos a uma percepção mais ampla de nós mesmos ao nível da experiência. Em última análise, a filosofia sempre se destina a anular-se. [...] Isto resulta que a filosofia deve estar continuamente se destruindo e renascendo. A filosofia é pensamento na medida em que pensamento já é invariavelmente o momento inerte da práxis, uma vez que, no momento em que ocorre, a práxis já está formada. Em outras palavras, a filosofia vem atrás, embora não obstante sempre olhando para a frente. Ela não deve permitir-se dispor de nada mais do que conceitos, isto é, palavras. Ainda assim, porém, o que conta em favor da filosofia é o fato de que essas palavras não são completamente definidas. A ambiguidade da palavra filosófica antes de mais nada oferece algo que pode ser utilizado para ir mais além. Pode ser utilizada para mistificar, como muitas vezes faz Heidegger, mas pode também ser utilizada para fins exploratórios, como ele também utiliza.”
(“The Writer and His Language”, cit., p. 110-1.”)


“Em sua filosofia, estamos envolvidos diretamente com o homem que se interroga a respeito de seu próprio projeto, o qual tenta ocultar de si mesmo, com todas as ambiguidades, subterfúgios, estratégias de má-fé e circularidades implicadas. Por isso é que a “ontologia fenomenológica” sartriana deve ser concebida como uma antropologia existencial que se funde com preocupações morais e psicanalíticas práticas nesse “novo tratado das paixões” e, assim, “circularmente”, enrosca-se em si mesma, fundamentando-se precisamente nas mesmíssimas dimensões existenciais que afirma fundamentar. Em consequência, tentar eliminar a antropologia existencial da ontologia fenomenológica de Sartre, a fim de torná-la “formalmente consistente”, seria equivalente à futilidade e ao absurdo de tentar a quadratura do círculo.”


“Vemos, assim, uma singular fusão de determinações pessoais com dada postura teórica, e essa fusão torna-se o núcleo organizador da síntese de O ser e o nada. Como tal, ela determina, em última análise, não só a atitude de Sartre para com outros pensadores, relegando a questão das considerações acadêmicas a um status realmente sem importância nenhuma, como também seu vínculo ao tratamento da experiência como evidência interpretativa. A esmagadora subjetividade de Sartre, tal como incorporada ao quadro estrutural de sua concepção, é que determina inteiramente e de modo cortante que tipo de evidência é admissível à consideração e que espécie de uso se deve fazer dos dados admitidos. (De fato, a palavra “dados” é bastante inadequada. Pois, no momento em que são enfocadas pela generalização teórica, as informações empíricas são fundamentalmente transformadas através da descrição eidética e da especificação caleidoscópica.)
Marx consome a maior parte de sua vida trancado no Museu Britânico, empenhado em desenterrar as provas que não apenas dão base à sua concepção teórica como também a ampliam, modificam e intensificam, exibindo, assim, uma relação inerentemente dialética entre teoria e pesquisa. Nada poderia ser mais alheio do que isso ao modo de proceder de Sartre. (Não é, pois, de admirar que ele tenha de interromper o projeto de estudo da história precisamente no momento em que as permutações mais ou menos autogeradoras das “estruturas formais da história” estavam delineadas e em que se impunha de modo inevitável a necessidade de evidências sob a forma de uma pesquisa histórica continuada.) Ele mantém para com seus relatos de pormenor a mesma espécie de atitude do monarca absoluto para com seus súditos: trata-os como bem lhe apraz; e isso de maneira muito legítima, uma vez que, sendo o fundamento categoricamente autoafirmado da própria legalidade, ele os constitui de tal modo que eles devem a própria existência como súditos à estrutura constitutiva da concepção global em que lhes é permitido surgir. E, do mesmo modo que a busca consciente da originalidade fora teorizada e autenticada existencialisticamente como o projeto único de uma aventura estritamente individual, agora a atitude soberana para com a experiência empírica é elevada a um status teórico no espírito da “hermenêutica da existência”, que declara seu interesse apenas pelo significado simbólico que ela mesma gera, cria e inventa.
O que vemos, então, é uma singular integração de determinações subjetivas e objetivas em um tipo específico de síntese que mantém permanentemente a soberania da concepção global sobre os detalhes específicos de sua sistematização. O modo caleidoscópico de desenvolvimento é das mais adequadas formas de manifestação desse tipo de síntese, por ser ao mesmo tempo aberto e fechado. É surpreendentemente aberto com respeito às possibilidades de transformações parciais autogeradoras, e é rigidamente fechado no que concerne à estrutura fundamental e ao esquema categorial do todo. Por essa razão é que cada nova fase do desenvolvimento de Sartre sempre traz consigo um novo modo de apresentar os pormenores, associado à pretensão de que isso importa em uma síntese radicalmente nova.”


“Do modo como as coisas estão em O ser e o nada, o círculo existencial-ontológico define o caráter e os limites do empreendimento humano:
Trabalha-se para viver e vive-se para trabalhar. A questão do sentido da totalidade “vida-trabalho” – “Por que trabalho, eu que vivo?”, “Por que viver, se é para trabalhar?” – só pode ser posta no plano reflexivo, já que encerra uma descoberta do Para-si por si mesmo. (266)
Essa passagem segue-se à descrição do uniforme de um operário que conserta telhados, como exemplo de como o “ser-Para-outro” reporta-nos à “remissão ao infinito dos complexos de utensilidade”, retratada como uma cadeia da qual o “para quem” é meramente um elo incapaz de romper a cadeia. É compreensível, pois, que a determinação ontológica das estruturas de reificação restringe a busca do sentido ao nível reflexivo de uma descoberta da própria “incomparável singularidade”. E é aqui que as limitações da postura individualista se tornam penosamente visíveis. Pois, obviamente, a cadeia da reificação capitalista deve ser rompida se eu quero constituir um significado que me é recusado dentro do círculo, embora, por certo, seja impossível conceber a realização dessa tarefa por meio de uma ação puramente individual.
Sartre é, naturalmente, um pensador grande demais para estabelecer uma solução tão absurdamente individualista que elevaria Dom Quixote à estatura de todos os heróis positivos da literatura mundial combinados em um só, de Hércules e El Cid a Figaro e Julien Sorel. O senso de realismo de Sartre não só especifica a inseparabilidade necessária de Dom Quixote (liberdade absoluta) e Sancho Pança (contingência e facticidade absolutas), mas também produz uma fusão completa dos dois na identidade estipulada de “escolha autêntica” e “ação radical”: um vigoroso Dom Quixote que traz em si, e não apenas consigo, o seu Sancho Pança. (Não há, pois, perigo de uma colisão frontal com o moinho de vento da sociedade. Nosso herói fundido não se interessa pelo êxito da liberdade, mas pela possibilidade da ação. E ele pode ser sempre bem-sucedido no agir, pois o que quer que faça ou não faça é necessariamente ação, até mesmo quando tudo importe em nada mais do que a escolha de recusar-se a escolher.)
Mesmo assim, porém, o empreendimento permanece problemático. Pois a autodescoberta individual de alguém, não importa quão autêntica seja a escolha, não pode afetar significativamente as estruturas compactas da dominação, com todos os seus antagonismos e complexos instrumentais. Por isso é que a busca do significado não pode se tornar inteligível “no nível reflexivo”: o terreno da individualidade isolada. “Trabalha-se para viver e vive-se para trabalhar” não é apenas um círculo, mas o mais vicioso de todos os círculos viciosos concebíveis nas circunstâncias do trabalho alienado, precisamente porque, como circularidade de um “existente em bruto”, constitui a base material de toda dominação, logo é radicalmente incompatível com uma vida plena de significado. Assim, a busca de significado é idêntica a romper o círculo vicioso da auto-objetificação alienada, a qual implica não uma “autodescoberta do Para-si”, mas o rompimento prático e a reestruturação radical de toda a imensa cadeia de complexos instrumentais, em relação à qual o indivíduo isolado, em toda a sua “incomparável singularidade”, nada mais é do que uma vítima indefesa. E, dado o tamanho do empreendimento, para não falar em seu caráter inerente, isso significa que a efetivação da tarefa envolvida só pode ser concebida como uma intervenção radical ao nível da práxis social, com o objetivo de submeter ao controle social consciente as determinações materiais cruciais, humanas, institucionais e instrumentais: tarefa que implica uma viável consciência social responsável pela situação, em contraste com a autoconsciência puramente individual concernente à sua própria autodescoberta autêntica no nível reflexivo-contemplativo.
Contudo, o mundo de O ser e o nada é radicalmente incompatível com essa consciência social. Partindo da “solidão ontológica do Para-si”, a existência do Outro é estabelecida às custas de identificar objetividade com alienação e estipulando a insuperabilidade absoluta dessa alienação:
Meu pecado original é a existência do outro [...]. Capto o olhar do outro no próprio cerne de meu ato, como solidificação e alienação de minhas próprias possibilidades (338). [...] minha possibilidade se converte, fora de mim, em probabilidade (341). Assim, o ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha liberdade. [...] esta escravidão não é o resultado – histórico e susceptível de ser superado (344). Meu ser Para-outro é uma queda através do vazio absoluto em direção à objetividade (352). A vergonha é o sentimento de pecado original [...] simplesmente pelo fato de [eu] ter “caído” no mundo, em meio às coisas, e necessitar da mediação do outro para ser o que sou (369). [...] pelo fato da existência do outro, existo em uma situação que tem um lado de fora, e que, por esse mesmo fato, possui uma dimensão de alienação que não posso remover de forma alguma, do mesmo modo como não posso agir diretamente sobre ela. Este limite à minha liberdade, como se vê, é colocado pela pura e simples existência do outro (644). Assim, o sentido mesmo de nossa livre escolha consiste em fazer uma situação que exprime tal escolha e da qual uma característica essencial é ser alienada, ou seja, existir como forma em si para o outro. Não podemos escapar a esta alienação, pois seria absurdo sequer sonhar em existir de outro modo que não em situação. (644-5)
Como se poderia escapar do círculo pela solidariedade que se ergue sobre o fundamento de uma condição compartilhada, se a “pura e simples existência’’ do Outro converte a objetividade em escravidão permanente pela definição da “essência” de toda situação como alienação? Como se poderia sequer conceitualizar a possibilidade de uma luta social contra a objetividade reificada, se é atribuída à reificação a dignidade ontológica de “solidificação” e “petrificação”, tal como contida no “sentido profundo do mito de Medusa”[373]? E como se poderia almejar um fim do desamparo da individualidade isolada mediante uma reciprocidade dialética e uma mediação com outros, se a dialética da reciprocidade é convertida em uma circularidade autodestrutiva e a mediação é a priori condenada como o domínio do Outro em meu próprio ser, depois de ter eu caído miticamente pelo “vácuo absoluto” na objetividade-alienação-petrificação da minha situação?
Ao adotar o ponto de vista do individualismo anarquista, Sartre impõe a si mesmo as características limitações desse quadro como uma série de conceitualizações para a exclusão de outras: uma abordagem cujo traço mais saliente é a rejeição a priori da possibilidade de uma supressão histórica da alienação, desvinculando a objetividade da reificação, em uma reversão radical do processo histórico original de vinculação correspondente à “condição inconsciente” do desenvolvimento humano até o presente momento. A postura individualista de Sartre, contudo, priva-o das ferramentas conceituais exigidas para visualizar uma solução de tais problemas. No quadro conceitual de O ser e o nada, a possibilidade de uma consciência coletiva genuína é um falimento a priori, uma vez que a autoconsciência é, por definição, puramente individual, e a ideia de um inconsciente é categoricamente rejeitada já no nível da consciência individual. Assim, podemos ver de novo que Sartre caminha em direção diametralmente oposta ao desenvolvimento dado por Marx a esses problemas. Embora adote a identificação hegeliana entre alienação e objetividade, que é inerentemente a-histórica, ele vai muito mais longe, liquidando até mesmo os resquícios de historicidade dessas relações ao declarar a vacuidade do conceito de uma humanidade historicamente em desenvolvimento.”
[373] O fato de que o mito de Medusa (531) tenha sido virado “do avesso” para ajustar-se à teoria (pois originalmente não é o mítico olhar do Outro sobre mim que causa minha petrificação, mas sim meu próprio olhar proibido para a Medusa) não nos deve preocupar demais. Muito mais importante é o uso geral feito das relações simbólicas apresentadas. Em última análise, todas elas se prendem à questão da apropriação: o individualismo de Sartre o impede de conceber a apropriação senão em termos simbólicos, uma vez que uma plena apropriação em relação ao indivíduo isolado é claramente inconcebível. Essa posição é projetada miticamente a um passado que precede a divisão do trabalho, e aí encontramos a versão existencialista de Sartre da “robinsonada”, que se destina a alinhar produção e apropriação como individualistas e, como tais, ontologicamente fundamentais. Estamos diante de uma fictícia antropologia de gabinete, em nome de uma descrição ontológica das relações fundamentais, e terminamos com uma conclusão perversa que identifica o “luxo” como mais próximo da propriedade original: “Originariamente [...], eu mesmo faço para mim o objeto que quero possuir. Meu arco, minhas flechas [Sexta-feira chega depois] [...] A divisão do trabalho obscureceu essa relação primordial sem eliminá-la. O luxo é uma degradação da relação; na forma primitiva do luxo, possuo um objeto que fiz fazer [fait faire] para mim, por pessoas minhas (escravos, criados nascidos na casa). O luxo é, pois, a forma de propriedade mais próxima da propriedade primitiva” (720).


“Os perigos políticos/militares devastadores do imperialismo – um sistema de determinações internas e correspondentes relações inter-Estados extremamente iníquas que podem mudar sua especificidade histórica, mas não sua substância estruturalmente arraigada – não podem ser relegados ao passado sem superar radicalmente a dimensão reprodutiva material do sistema do capital como um todo integrado.
A incurável centrifugalidade do sistema do capital só pode intensificar suas contradições e aumentar os perigos necessariamente associados a elas numa era de interesses próprios globalmente conflitantes afirmados pelas forças monopolistas dominantes, correspondentes ao estágio hoje prevalecente da articulação do modo de reprodução social metabólica do capital. (...)
O verdadeiro significado das palavras citadas sobre “a emancipação econômica da classe trabalhadora” é a emancipação da humanidade do poder cegamente prevalecente do determinismo econômico, sob o qual nenhum ser humano pode ter controle genuíno do metabolismo social, nem mesmo as personificações mais dispostas do capital. Somente por meio da transformação qualitativa do trabalho – deixando de ser a classe social alienada e estruturalmente subordinada, porém necessariamente recalcitrante, do processo de reprodução para ser o princípio regulador universal do intercâmbio da humanidade com a natureza e entre seus membros individuais, livremente adotado enquanto sua atividade vital significativa por todos os membros da sociedade – a real emancipação humana pode ser realizada no curso do desenvolvimento histórico com fim aberto.
É por essa razão que Marx contrastava ao que chamou de “pré-história” não algum tipo de “fim da história” messiânico – embora costume ser cruelmente acusado de fazê-lo –, mas sim o processo dinâmico da “história real” de fato em desdobramento e conscientemente controlada. Ou seja: a história não mais governada pelas determinações econômicas antagônicas, mas vivida de acordo com seus objetivos e fins escolhidos pelos indivíduos sociais enquanto produtores livremente associados. (...)
A questão decisiva concerne à controlabilidade e restringibilidade racional de qualquer ordem reprodutiva societal em relação à efetividade histórica e disponibilidade de suas condições necessárias de reprodução. E a verdade mais desconfortável da questão a esse respeito é que a ordem reprodutiva socioeconômica, a ordem societal agora estabelecida, cuja viabilidade depende da infindável expansão do capital, deve gerar constantemente não só expectativas subjetivas (em grande medida manipuláveis ou até mesmo repreensíveis), mas também expectativas objetivas irrepreensíveis – tanto para os outros quanto para si mesma – que ela possivelmente não pode suprir.
Nesse sentido, em contraste com a ordem existente do capital, somente uma forma qualitativamente diferente de gerir o metabolismo social, dos processos materiais elementares aos mais altos níveis de produção e apreciação artística, poderia fazer uma real diferença a esse respeito. E isso implicaria uma orientação radicalmente diferente dos indivíduos sociais para a coerência coletiva conscientemente buscada de suas atividades, no lugar da centrifugalidade hoje prevalecente e potencialmente desintegradora de suas condições de existência. Isso acontece porque, enquanto as mediações de segunda ordem antagônicas do sistema do capital permanecerem dominantes, elas estão fadadas a clamar por algum tipo de superimposição social em vez de militar contra ela no espírito do desiderato anarquista da “sociedade sem poderes”.
Não pode haver “uma sociedade sem poderes”. Especialmente não na era da reprodução societal e de produção em desdobramento global. A ordem reprodutiva estabelecida hoje é inseparável de suas mediações de segunda ordem antagônicas pela simples razão de serem necessárias para a busca irracional da expansão infindável do capital, independentemente de suas consequências. No entanto, esse sistema está fadado a gerar recalcitrância (nos indivíduos que produzem), a superimposição do controle extrínseco (para derrotar a recalcitrância, se necessário pela violência) e, ao mesmo tempo, também a irresponsabilidade institucionalizada (por causa da ausência de racionalidade factível e controle aceitável). (...)
De modo compreensível, portanto, a única forma de sustentar uma ordem reprodutiva globalmente coordenada no nosso horizonte é almejando um poder político e material cooperativamente compartilhado, determinado e administrado sobre a base não só da igualdade simplesmente formal, mas também substantiva (uma necessidade absoluta como condição de possibilidade de uma ordem societal futura viável) e o correspondente planejamento racional de suas atividades vitais pelos produtores livremente associados.
Naturalmente, isso é inconcebível sem a forma apropriada de mediação dos indivíduos sociais entre si e na sua relação combinada, enquanto humanidade real (embora não “como quiserem”), com a natureza. No entanto, não há nada de misterioso ou proibitivamente difícil sobre defender um sistema qualitativamente diferente de mediação reprodutiva societal. As condições de seu estabelecimento podem ser explicitadas de forma tangível, envolvendo um esforço determinado e historicamente sustentado para romper a pressão do valor de troca sobre o valor de uso humanamente adotado e gratificante, correspondendo não à carência humana formalmente equalizável e substantivamente incomensurável, bem como insensivelmente ignorada, mas sim à carência humana diretamente significativa dos indivíduos como livremente associados.
O princípio organizador básico do tipo de atividade reprodutiva societal que é orientado para tal ordem social metabólica qualitativamente diferente foi descrito por Marx em termos bem simples, com referência ao intercâmbio coletivo da atividade vital dos indivíduos, quando ele escreveu que
O caráter coletivo da produção faria do produto, desde o início, um produto coletivo, universal. A troca que originalmente tem lugar na produção – que não seria uma troca de valores de troca, mas de atividades que seriam determinadas pelas necessidades coletivas, por fins coletivos – incluiria, desde o início, a participação do indivíduo singular no mundo coletivo dos produtos.[517]
Obviamente, a regulação e a livre coordenação de suas atividades vitais pelos indivíduos implicam ajustes positivos contínuos. Os necessários ajustes positivos genuínos em uma ordem socialista tornam-se possíveis graças à remoção dos interesses próprios estruturalmente arraigados da existência alienante de classe do passado, com sua irresponsabilidade institucionalizada sob o sistema do capital. Por conseguinte, a atividade produtiva e distributiva dos indivíduos pode ser promovida e mantida não pela postulação de uma “sociedade sem poderes”, mas pelos poderes plenamente compartilhados dos membros da sociedade, inseparáveis da adoção de sua responsabilidade plenamente compartilhada. Essa é a única alternativa historicamente viável para a destrutividade crescente do “capitalismo avançado” e do “capitalismo organizado”.
[517] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política (trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 118.

A Obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história (Parte I) – István Mészáros

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Publicado originalmente em 1979, o livro A obra de Sartre: busca da liberdade deveria ter tido um segundo volume intitulado O desafio da história, o qual analisaria a concepção sartriana de história. Devido a outros projetos, entre os quais a obra-prima Para além do capital, István Mészáros pôde retomar essa análise somente na presente edição, ampliada e atualizada, que a Boitempo disponibiliza ao leitor de língua portuguesa antes mesmo de seu lançamento em inglês. O livro tem o mérito de situar Jean-Paul Sartre em relação ao pensamento do século XX e abordar sua trajetória em todas as suas manifestações – como romancista, dramaturgo, filósofo e militante político.
Escritor algum foi alvo de tantos ataques, de origens as mais variadas e poderosas, quanto Sartre: “Em 1948, nada menos do que o governo soviético de Stalin assume posição oficial contra o filósofo e, no mesmo ano, um decreto especial do Santo Ofício coloca no Index a totalidade de suas obras”, lembra Mészáros. Quais as razões disso? E como é possível que um indivíduo sozinho, tendo a caneta como única arma, seja tão eficiente como Sartre numa época que tende a tornar o indivíduo completamente impotente? Os escritos do filósofo marxista buscam não apenas as respostas, como também formulam novos questionamentos sobre a vida e a obra de Sartre, elucidando sua contribuição para o mundo.
Quando interrogado recentemente sobre o motivo que o levou a escrever sobre Sartre, Mészáros respondeu: “Sempre senti que os marxistas deviam muito a ele, pois vivemos numa era em que o poder do capital é dominador, uma era em que, significantemente, a ressonante platitude dos políticos é que ’não há alternativa‘. [...] Sartre foi um homem que sempre pregou exatamente o oposto: há uma alternativa, deve haver uma alternativa; como indivíduos, devemos nos rebelar contra esse poder. Os marxistas, de modo geral, não conseguiram dar voz a isso”.
Ao afirmar tão categoricamente a importância de Sartre para a formação das novas gerações, Mészáros não defende sua escolha filosófica, ou seja, o existencialismo, mas compartilha plenamente de sua meta: a necessidade de uma rebelião contra o saber do “não há alternativa”. “Este livro pode ser visto como o encontro de duas atitudes que convivem num mesmo autor e o vinculam àquele que é o seu objeto de estudo: a profunda afinidade política e a enorme discordância filosófica que se podem constatar na relação entre Mészáros e Sartre. O que se eleva acima das controvérsias conceituais é a defesa de uma causa, o resgate de esperanças e expectativas maiores do que os instrumentos doutrinais que utilizamos para tentar realizá-las”, ressalta o professor de filosofia da Universidade de São Paulo Franklin Leopoldo e Silva na orelha do livro.
Para Mészáros, a importância da mensagem intransigente de Sartre sobre a necessária alternativa é maior hoje do que já foi anteriormente. O filósofo francês não viveu para ver grande parte das pessoas engajadas daquela época se render aos poderes da repressão em nome do privatismo e do individualismo. Por esse motivo, Sartre é hoje uma lembrança terrível e ao mesmo tempo imprescindível.



“A verdadeira individualidade é inconcebível sem uma comunidade com a qual possamos nos relacionar e nos definir.”


“Eis como Sartre encara a tarefa do escritor:  
O mais belo livro do mundo não salvará da dor uma criança: não se redime o mal, luta-se contra ele. O mais belo livro do mundo redime-se a si mesmo; redime também o artista. Não redime, porém, o homem. Tanto quanto o homem não redime o artista. Queremos que o homem e o artista construam juntos sua salvação, queremos que a obra seja ao mesmo tempo um ato; queremos que seja expressamente concebida como uma arma na luta que os homens travam contra o mal. [21] (...)
Não é fácil trancar Sartre dentro de alguma coisa, muito menos dentro da cela da excelência literária atemporal. Sua visão do engajamento do escritor é uma visão total:  
Se a literatura não é tudo, ela não vale nada. Isso é o que quero dizer com “engajamento”. Este definha se é reduzido à inocência, ou a canções. Se uma frase escrita não ecoa em todos os níveis do homem e da sociedade, então ela não tem nenhum sentido. O que é a literatura de uma época se não a época apropriada por sua literatura? [...] Deve-se aspirar a tudo para ter esperança de fazer alguma coisa. [26] (...)
Desafiar a opinião estabelecida, com todas as suas instituições e valores institucionalizados, exige não apenas um conjunto de crenças firmemente mantidas, mas também um ego muito forte. E Sartre, sem dúvida, possui ambos. A articulação da obra de toda sua vida caracteriza-se por um orgulho e uma dignidade imensos. Pois o que ele poderia ter realizado com humildade em um ambiente hostil? “É preciso um orgulho insano para escrever – só é possível permitir-se ser modesto depois de ter enterrado o orgulho em sua obra”[28], escreve Sartre. E, nisso, ele não está só. Sua visão do compromisso total lembra-nos as palavras de um grande poeta húngaro:  
Afastando as Graças intrusas,
Não vim para ser um “artista”,
Mas para ser tudo,
Fui o Senhor;
O poema: escravo fantasioso. [29]
Na opinião de Sartre, “A arte está totalmente engajada na atividade de um único homem, à medida que ele põe à prova os limites dela e os faz recuar. Mas a escrita não pode ser crítica sem levantar questões a respeito de tudo: esse é seu conteúdo. A aventura de escrever, empreendida por cada escritor, desafia a humanidade como um todo” [30]. Não é uma decisão nada fácil assumir a carga desse desafio e fazê-lo conscientemente, como é o caso de Sartre. Porém, uma vez que o projeto fundamental do escritor se define nesses termos, ele não pode esquivar-se à magnitude de sua tarefa sem perder a própria integridade (ou autenticidade). Aconteça o que acontecer, tem de articular as preocupações de sua época como um todo e não se afastar delas.
Sua visão do todo traz consigo a lembrança permanente de sua própria responsabilidade por isso tudo. Mesmo que se queira absolvê-lo dessa responsabilidade, ele deve, questionando todas as coisas, afirmar e reafirmar seu direito inalienável de assumir a carga da responsabilidade total. Por sua época como um todo e pela humanidade como um todo. Eis por que ele não pode deixar de ser intransigente numa era dominada pela evasão e pelo subterfúgio, pela acomodação e pela fuga; em suma, pela autossegurança institucional reificada, em vez de enfrentar e atracar-se com as contradições que, em sua irresolução crônica, fazem antever finalmente a perspectiva de um suicídio coletivo. E uma vez que essa verdade desagradável não consegue penetrar ouvidos ensurdecidos pelo ruído autocomplacente da acomodação confortável, a não ser mediante o grito mais alto possível da voz da intransigência, a intransigência moral e intelectual não acomodada (que não se deve confundir com a busca facciosa de um estreito interesse pessoal) torna-se a virtude fundamental da época, um sine qua non de realização significativa.”
[21] Jean-Paul Sartre, “Writing for One’s Age” (1946), em What is Literature? (trad. Bernard Frechtman, Londres, Methuen, 1950), p. 233. [Ed. bras.: Que é a literatura?, trad. Carlos Felipe Moisés, São Paulo, Ática, 1993. O ensaio em questão não consta da edição brasileira.] / [26] Jean-Paul Sartre, “The Purposes of Writing” (1959), Between Existentialism and Marxism (trad. John Matthews, Londres, NLB, 1974), p. 13-4. / [29] De um poema de Endre Ady (1877-1919). / [30] Jean-Paul Sartre, “The Purposes of Writing”, cit, p. 26.


“O mesmo se aplica a Heidegger. Não se deve superestimar o papel desse autor na formação da estrutura de pensamento de Sartre. Seria inútil especular sobre o que teria acontecido se Sartre tivesse tido a experiência de um campo de prisioneiros de guerra russo, em vez de um nazista, com prateleiras ostentando as obras de Marx e Lenin. Inútil não apenas devido à esterilidade inerente de hipóteses contrafactuais, mas também porque sua primeira relação com os escritos de Heidegger, embora sem muita profundidade, antecede em cerca de dez anos sua experiência de guerra. De todo modo, Sartre pôs Heidegger a seu serviço. Seria tão incorreto ler Sartre pelos olhos de Heidegger quanto fazer o inverso. Não obstante, não se constrói um castelo de cristal com pedras. Assim, embora Sartre esteja correto em defender-se contra ataques sectários por causa do passado nazista de Heidegger, seus argumentos a respeito da verdadeira questão não são nada convincentes. Diz ele: “Então Heidegger, e daí? Se descobrimos nosso próprio pensamento por causa de outro filósofo, se dele extraímos técnicas e métodos suscetíveis de nos fazer chegar a novos problemas, isso quer dizer que esposamos todas as suas teorias? Marx emprestou de Hegel sua dialética. Dir-se-ia, por isso, que O capital [53] é uma obra prussiana?”[54]. A questão é não apenas que Sartre toma de Heidegger muito mais do que “técnicas e métodos”, mas também – o que é bem mais importante – que jamais submete a obra de Heidegger àquele “acerto de contas radical” que caracteriza a relação de Marx com Hegel.
O que se percebe em todos esses casos é que, em certo sentido, a contingência é “superada” [superseded]. Não que o escritor possa fazer tudo quanto lhe agrade. (Aliás, Sartre tem de pagar um alto preço por adotar grande parte da ontologia truncada de Heidegger, que só pode descobrir a si mesma e, por isso, retornar em círculos para dentro de si própria.)”
[53] Trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, no prelo. (N. E.) / [54] Jean-Paul Sartre, “À propos de l’existentialisme: mise au point”, Action, 29 de dezembro de 1944; reproduzido em C/R, cit., p. 653-8 (a citação é da p. 654).


“Certamente, a vida de Sartre não é muito cheia de aventuras. De fato, a maior parte dela se consome numa demoníaca dedicação ao trabalho. O volume de sua produção é desconcertante. Cinco ou seis milhões de palavras já publicados, e talvez outros dois ou três milhões sumidos em manuscritos perdidos, abandonados ou ainda a publicar: mais do que o bastante para manter meia dúzia de escribas ocupados por toda a vida durante a Idade Média, apenas para copiar tudo isso. Indagado a respeito da extraordinária riqueza de sua produção, ele explica, numa semiapologia: “Pode-se ser produtivo sem muito trabalho. Três horas pela manhã, três horas à noite: essa é minha única norma. Mesmo em viagens. Vou executando pouco a pouco um plano de trabalho meticuloso”[58].
É espantoso ouvir que seis horas de trabalho intenso, todos os dias, “mesmo em viagens”, seja considerado “pouco a pouco”. A verdade completa, porém, é ainda mais espantosa, pois sabemos por outras fontes (principalmente pelas memórias de Simone de Beauvoir) que ele frequentemente escreve “dia e noite” e dispõe-se a consumir 28 horas, sem parar, na revisão de um único artigo[59]. E tal intensidade não está apenas reservada para ocasiões raras. Ao contrário, parece que essa é a regra, não a exceção. Muitas das obras literárias de Sartre são escritas em poucos dias ou semanas. Ainda mais surpreendente, suas duas obras teóricas monumentais, O ser e o nada e Crítica da razão dialética[60], foram escritas, cada uma delas, em poucos meses[61]. Além disso, relata-me François Erval, muitas vezes capítulos inteiros foram reescritos do começo ao fim, apenas porque Sartre não estava satisfeito com alguns pormenores. Se a tudo isso se acrescentar o infindável número de horas dedicadas a discussões, correspondência, entrevistas, ensaios de peças de teatro, conferências, reuniões políticas e editoriais e assim por diante, é evidente que não pode ter sobrado muito tempo para “experiências pessoais”. Autores de um livro só, como Sagan, podem permitir-se grande número delas; não Sartre, que simplesmente “não pode parar para levar a vida como ela vier: tem de estar em ação o tempo todo”[62].
De todo modo, o significado da experiência pessoal de um escritor é dialético; não pode ser transformado num fetiche cristalizado. Sartre não insistiu sempre, acertadamente, que “a obra constrói seu próprio autor ao mesmo tempo que ele cria a obra”? Esse intercâmbio dialético entre obra e experiência não poderia encontrar manifestação mais clara do que em Sartre.”
[58] Entrevista a Gabriel d’Aubarède, Les Nouvelles Littéraires, 1o de fevereiro de 1951. / [59] Simone de Beauvoir, Force of Circumstance (Harmondsworth, Penguin, 1968), p. 466. [Ed. bras.: A força das coisas, trad. Maria Helena Franco Martins, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995.] / [60] Rio de Janeiro, DP&A, 2002. (N. E.) / [61] Para poder manter um ritmo exaustivo de trabalho enquanto escrevia sua Crítica da razão dialética, ele consumia todo um tubo de Corydrane por dia. Simone de Beauvoir, Force of Circumstance, cit., p. 407. / [62] Simone de Beauvoir, “Jean-Paul Sartre: Strictly Personal”, Harper’s Bazaar, janeiro de 1946; grande parte foi reproduzida em C/R, cit., p. 418-20.


“Por maior que seja a minha admiração por Proust, ele é o oposto de mim: ele se compraz na análise, ao passo que eu tendo apenas à síntese”.
(Entrevista a Pierre Lorquet, Mondes Nouveaux, 21 de dezembro de 1944.)


“As relações de Sartre com as pessoas, obras de arte, objetos do dia a dia e assim por diante são descritas em suas obras, tanto quanto na vida real, com cores dramáticas. Ele não gosta ou desgosta, simplesmente, do que vê no Museu do Prado, mas abomina e detesta Ticiano e admira Hieronymus Bosch. Um simples passar de olhos por uma assembleia numa faculdade de Oxford é o bastante para fazê-lo detestar o esnobismo da sociedade oxfordiana e jamais voltar a pôr os pés naquela cidade. Faz parte da economia de vida que ele tenha de resolver-se a respeito de tudo com grande rapidez e intensidade, sempre buscando uma avaliação geral que possa ser integrada em sua busca totalizadora. O mesmo se dá com as relações pessoais, e até mesmo algumas de suas amizades mais íntimas acabam terminando dramaticamente (por exemplo, as de Camus e Merleau-Ponty), assim que ele percebe que o prosseguimento da relação irá interferir na concretização de suas metas. Ele comanda todas as suas relações pessoais, inclusive as mais íntimas, de modo a nunca se dispersar de sua decidida dedicação às preocupações centrais de sua vida. Exatamente por essa razão, recusa-se a aceitar a responsabilidade e os encargos da vida de família. Nega-se a ficar preso às condições do conforto burguês e procura eliminar de sua vida pessoal o dinheiro e as posses.”


“Hoje em dia, penso que a filosofia é dramática pela própria natureza. Foi-se a época de contemplação da imobilidade das substâncias que são o que são, ou da revelação das leis subjacentes a uma sucessão de fenômenos. A filosofia preocupa-se com o homem – que é ao mesmo tempo um agente e um ator, que cria e representa seu drama enquanto vive as contradições de sua situação, até que se fragmente sua individualidade, ou seus conflitos se resolvam.”
(Jean-Paul Sartre, “The Purposes of Writing”, cit, p. 11-2.)


“A profundidade de qualquer conceito específico, bem como o seu campo de irradiação, é determinada pela totalidade de interconexões que o conceito pode evocar toda vez que aparece sozinho. A diferença entre um pensador profundo e um pensador superficial é que aquele sempre trabalha com toda uma malha de conceitos organicamente integrados, enquanto este se satisfaz com expressões isoladas e definições unilaterais. Assim, o primeiro estabelece conexões, mesmo quando tem de escolher contextos específicos e traçar linhas de demarcação, enquanto o segundo deixa escapar até mesmo as conexões mais óbvias, ao sacrificar a complexidade à precisão analítica e à clareza unívoca da supersimplificação, em lugar da sobredeterminação.
Consideremos brevemente o campo do conceito de “invenção” de Sartre. Citamos anteriormente um dos contextos em que ele sugere que “o leitor nos inventa: utiliza nossas palavras para armar para si mesmo as próprias armadilhas”. Isso não é um paradoxo pelo paradoxo. Acentua a firme crença de que “inventar” não é uma atividade soberana, levada a cabo a uma distância segura, mas sim uma relação complexa de estar simultaneamente dentro e fora, como o homem que se faz e se reinventa, estando, ao mesmo tempo, de acordo com seus próprios projetos e a certa distância deles.”


A expressão “um futuro vedado ainda é um futuro” (que se tornou o modelo de muitos dos paradoxos de Sartre, como “a recusa a engajar-se é uma forma de engajamento” ou “deixar de escolher é por si só uma escolha”) pouco ou nada significa, em si e por si. O que irradia vida dentro dessa tautologia formal abstrata é o contexto (ou situação) em que está inserida. O subjetivismo da concepção heideggeriana de temporalidade ajuda-o a negar o “futuro vedado” de uma época dilacerada pela contradição inerente entre a necessidade de mudança e a impossibilidade de revoluções. Contudo – e eis o que decide a questão –, se as revoluções são ou não impossíveis é uma questão de temporalidade real que se está decidindo na arena sócio-histórica concreta. Assim, enquanto a temporalidade abstrata de “um futuro vedado ainda é um futuro” nega a temporalidade real da inércia social (determinada pelas condições temporais-históricas de alienação e reificação), essa temporalidade subjetivista da possibilidade abstrata também está sendo negada pela possibilidade real de revoluções concretas.”


“Escrever sobre alguém é conjugar duas “temporalizações” sócio-históricas diferentes, mesmo que seja Lenin escrevendo sobre Marx. Tal empreendimento parte da premissa de que o segundo é significativo para o primeiro, contanto que o processo de investigação – que, ao mesmo tempo, é também uma forma de autorreflexão esclarecedora – possa servir como intermediário para o presente daqueles traços da temporalização original que contribuem objetivamente para a solução de determinadas tarefas e problemas. A reflexão sobre o passado só pode originar-se do significado que o próprio presente oferece – bem dentro do espírito da “projeção” sartriana para o futuro: ou seja, para a solução das tarefas atuais –, mas o ato mesmo de reflexão, pelo fato de estabelecer determinadas relações com o passado, também determina inevitavelmente sua própria orientação. Assim, a reflexão e a investigação crítica tornam-se autorreflexão e autodefinição críticas. O significado do presente é utilizado como uma chave para revelar o significado do passado que conduz ao presente, o qual, por sua vez, revela dimensões anteriormente não identificadas do presente que conduzem ao futuro, não sob a forma de determinações mecânicas rígidas, mas como antecipações de objetivos vinculados a um conjunto de motivações interiores. Desse modo, estamos envolvidos num movimento dialético que conduz do presente para o passado e do passado para o futuro. Nesse movimento, o passado não está em algum lugar , em sua remota finalidade e “clausura”, mas bem aqui, “aberto” e situado entre o presente e o futuro, por mais paradoxal que isso possa parecer a quem pense em termos da “ordem intelectual” da cronologia mecânica. Pois o fato é que o presente não pode ter senão uma mediação entre ele próprio e o futuro: não o vazio momento infinitesimal que o separa do que vem a seguir, mas sim a grande riqueza e intensidade de um passado trazido à vida no tempo de exposição da reflexão penetrante e do autoexame crítico.
Assim, a história não é simplesmente inalterável, mas inesgotável. Isso é o que dá sentido à preocupação que se tem com o passado e determina a necessidade de constantes reinterpretações. Nada mais absurdo do que a ideia de “história definitiva”, de “tratamento definitivo” deste ou daquele período, ou de uma “biografia definitiva” etc., a qual teria como corolário a antecipação de um estágio em que, dada a acumulação abundante de grande quantidade de coisas definitivas, não haverá mais necessidade de reexame constante da história. Caso ocorresse esse tipo de “definitividade”, não seria apenas o historiador que poria de lado sua atividade, mas o próprio homem, que só pode ignorar ou rotinizar seu passado à custa da decapitação do próprio futuro.”


“Na verdade, o único Deus relevante para a história humana é feito à imagem do homem vivo tridimensional e, assim, os dados dessa história decididamente não são equidistantes dele. Alguns são mais significativos do que outros, e alguns são mais significativos a dada época do que a outra. A objetividade da história não é a objetividade de um prego, muito menos de uma pedra, pois “o homem não é um prego pensante”, como Sartre muitas vezes nos lembra. A objetividade histórica é dinâmica e mutável, como o é a vida, não em si e por si – pois isso ainda se poderia reduzir a um conjunto de leis naturais mais ou menos simplificadas –, mas à medida que evolui, sobre uma base natural radicalmente modificada pelo trabalho e pela autorreflexão, dentro da esfera social. A objetividade da própria busca é determinada pelas condições de uma dada temporalidade, a qual, obviamente, implica antecipações e avaliações de tendências futuras de desenvolvimento. Não obstante, em sua objetividade dinâmica, toda pesquisa está sujeita a critérios de avaliação com respeito tanto aos seus determinantes sociais (inclusive suas limitações) quanto à natureza (realista ou de outro tipo) do que prevê.
Analogamente, dentro do próprio passado, preocupamo-nos com temporalizações concatenadas e não com algum tipo de retroprojeção arbitrária sobre uma tela vazia. Pois, embora o passado seja inesgotável, por certo não é desprovido de caráter. Não pode ser simplesmente moldado, de qualquer modo que se queira, de acordo com fantasia e capricho arbitrários: o peso e a lógica interna de sua evidência estabelecem limites objetivos a possíveis reinterpretações. O passado é inesgotável não em si e por si, mas sim em virtude do fato de estar objetivamente vinculado ao futuro que nunca está completado. À medida que o homem constrói a própria história, com base em determinações temporais e estruturais – preservando-as e superando-as –, certas características do passado, antes não visíveis, passam para o primeiro plano. Eram invisíveis não porque as pessoas fossem cegas ou enxergassem mal (embora, é claro, haja também inúmeros desses casos), mas porque não existiam da mesma forma antes da articulação objetiva de relações determinadas. O solo tem certas características, antes de se construir a casa sobre ele; em determinadas condições (das quais a casa também é parte integrante), as trincas nas paredes revelam, de maneira desagradável, que tais características eram de assentamento. O futuro não inventa nem cria as características do passado, mas as sistematiza no decorrer de sua própria autorrealização. Isso cria a necessidade de reinterpretações constantes e, ao mesmo tempo, estabelece limites objetivos que definem muito bem que curso elas devem tomar e até onde podem ir.”


“Você tem um passado que não pode repudiar. Mesmo que tente fazê-lo, jamais poderá repudiá-lo totalmente, porque ele é parte de você mesmo tanto quanto seu esqueleto [...]. A longo prazo, você não mudou muito, uma vez que não pode jamais pôr de lado a totalidade de sua infância.”
(Sartre citando Isaac Deutscher em “A Friend of the People”, cit., p. 293-5.)


“Evidentemente, no desenvolvimento de um escritor, o fator essencial é a maneira como ele reage aos conflitos e mudanças do mundo social em que está situado. Isso pode ser discriminado em dois elementos básicos: sua própria constituição (estrutura de pensamento, caráter, gostos, personalidade) e o grau relativo de dinamismo com que as forças sociais de sua época se confrontam umas com as outras, arrastando-o de um modo ou de outro para dentro de seus confrontos. Descrever os intercâmbios entre um escritor e sua época em termos de “rupturas” é, na melhor das hipóteses, extremamente ingênuo em ambos os casos, pois nem o desenvolvimento sócio-histórico, nem o individual caracterizam-se apenas por “rompimentos”, mas por uma configuração complexa de mudanças e continuidades. Em certas épocas (como a Revolução Francesa) as descontinuidades estão em primeiro plano, e em outras (como o período entre 1871 e 1905) predominam as continuidades. Mas há sempre mudanças sob a superfície de continuidades, e algumas continuidades básicas persistem, por mais radicais que sejam os rompimentos em determinadas regiões (a Revolução Russa e as condições de produção agrícola por décadas a partir de então, por exemplo).
Uma sociedade compõe-se de múltiplas camadas de instrumentos e práticas sociais coexistentes, cada qual com seu ritmo específico próprio de temporalidade: fato esse que acarreta implicações de longo alcance para o desenvolvimento social como um todo. Esse é um problema da maior importância que deve ser tratado em seu cenário adequado, ou seja, no quadro de uma teoria de transformação e transição sociais. No presente contexto, o que interessa é que, até na mesma esfera (produção material, por exemplo), práticas que remontam à Idade da Pedra coexistem mais ou menos prazerosamente com atividades que requerem as mais avançadas formas de tecnologia. Isso não se limita de modo algum a sociedades como a Índia, onde a agricultura primitiva de subsistência é, ironicamente, complementada pela tecnologia da produção de armas nucleares. Podemos encontrar exemplos semelhantes em nossas próprias sociedades (muito embora o peso relativo das práticas sociais mais antigas seja, naturalmente, muito diferente na vida econômica de nossa sociedade como um todo). Afinal, um Stradivarius numa linha de montagem é uma contradição em termos. Os melhores cinzéis para escultores são feitos hoje em dia por um velho ferreiro de Londres que trabalha com ferramentas e técnicas de milhares de anos atrás; não obstante, ele é capaz de humilhar as mais avançadas técnicas computadorizadas japonesas, alemãs e norte-americanas de produção de cinzéis, temperando o aço de tal modo que este associa, no mais perfeito grau, as qualidades de dureza e elasticidade que, juntas, constituem o cinzel mais desejável, como afirmou o próprio Henry Moore. Agora, se procurarmos pensar em todas as esferas sociais combinadas, com suas múltiplas variedades, graus diversos de complexidade, fases de “desenvolvimento desigual” (Marx) e diferenças naquilo que se poderia chamar de inércia estrutural, bem como em suas interações, conflitos, entrechoques, e até mesmo contradições antagônicas sob determinadas condições históricas, é óbvio que a redução dessa impressionante complexidade à simplificação voluntarista (por exemplo, stalinista) de “rupturas” imediatas que resultam num “rompimento radical” com o passado, em que todos os problemas são causados pelo “inimigo”, só poderá produzir dolorosas hérnias sociais que, para serem curadas, podem levar gerações.
Mutatis mutandis, as mesmas considerações se aplicam ao desenvolvimento do indivíduo. Por um lado, sua necessidade e sua capacidade de mudar não coincidem necessariamente com o dinamismo (ou, se for o caso, estagnação social) de sua época e podem ser gerados conflitos em ambas as direções. (Isso é que produz o indivíduo “defasado” de sua época.) Além disso, certas dimensões de seu ser complexo são estruturalmente menos prontamente receptivas à mudança do que outras. O paladar, por exemplo: em algumas culturas, comer pimenta constitui o deleite supremo; em outras, uma forma de tortura. O problema que precisa ser explicado não é apenas a teimosa persistência do paladar adquirido no indivíduo, mesmo quando se transfere para uma cultura marcadamente diferente, mas também o fato de que os dois extremos se formam a partir da base comum da experiência inicial de sugar o leite materno. Ambos os problemas são explicáveis apenas por alguma configuração específica de continuidade e descontinuidade, com a predominância relativa de uma ou de outra – incomparavelmente mais quando levamos em conta a complexidade global de uma “individualidade singular”. O modo pelo qual as diversas dimensões se associam em um todo coerente (e, quando não o fazem, temos os problemas de uma personalidade transtornada), a despeito das diferenças estruturais e das tensões entre os respectivos ritmos temporais (pois, felizmente, um homem não envelhece em bloco, uniformemente; se não fosse assim, envelheceria na velocidade autoacelerada de uma bola de aço rolando por um plano de forte declive), só pode ser compreendido mediante a dialética da continuidade e descontinuidade.
A estrutura de pensamento de um indivíduo forma-se em idade relativamente precoce, e todas as suas modificações subsequentes, sejam elas grandes ou pequenas, só podem ser explicadas como alterações da estrutura original, ainda que a distância transposta seja tão grande quanto a que vai do leite materno à pimenta. No entanto, não podem ser explicadas simplesmente como a “ruptura” da estrutura – a qual, em si e por si, não é nada, e por isso não explica absolutamente nada: “ruptura” só tem sentido como uma interação bem definida entre forças determinadas – ou como a invenção de uma estrutura nova em folha, seja a partir do nada, seja mediante uma transferência mecânica das determinações de uma época para a misteriosa tabula rasa (outro nome para nada) de uma “individualidade” rupturalmente esvaziada (o que é uma contradição em termos). A obra global de um intelectual apresenta muitas camadas de transformações estruturais, que só são inteligíveis como preservações substitutivas (ou substituições preservadoras), cada vez mais complexas, da estrutura original.”


““A questão é que sabemos que seremos julgados, e não pelos critérios que utilizamos para julgar a nós mesmos. Há algo de terrível nesse pensamento”*. Desse modo, há sempre algo de ameaçador, de sinistro, de trágico no horizonte. Mesmo quando Sartre declara ter “sido sempre um otimista, na verdade, demasiadamente otimista”, ele o faz juntamente com alguns pronunciamentos metafísicos sombrios: “O Universo continua escuro. Somos animais sinistros”. E muito embora insista, nessa mesma entrevista, que a alienação, a exploração e a fome são os males com que devemos nos preocupar porque “relegam a segundo plano o mal metafísico”, este último continua ameaçadoramente fazendo sua aparição, ao fundo, no “Universo escuro” sartriano”.
*: Robert Kanters, L’Express, 17 de setembro de 1959. / **: Entrevista a Jacqueline Piatier, Le Monde, 18 de abril de 1964).”


““A unidade prodigiosa desta vida é sua intransigência na busca do absoluto”, escreve Sartre a respeito de seu grande amigo, Giacometti[200]. Não há melhor maneira de resumir o movimento e a direção de sua própria obra global. Essa busca do absoluto não é algo misterioso e transcendental. Ao contrário, é muito precisa e palpável. Significa uma definição radical de um projeto fundamental do homem num sentido que implica necessariamente ir até o limite, independentemente do que pareça ser o limite para o indivíduo em questão, em qualquer um dos momentos no decorrer de seu desenvolvimento.
Os heróis de Sartre – Mallarmé, Genet, Nizan, Fucik, Giacometti, Hikmet e, na ficção, Julien Sorel – são homens que exploram a própria condição até o limite. Analogamente, seus anti-heróis – entre os quais Baudelaire e Flaubert – são os que se recusam a fazê-lo, condenando-se assim às consequências de sua escolha fundamental: uma fuga no imaginário e a aceitação da alienação. “O que me interessa em Flaubert é que ele se recusou a ir até o limite”[201], escreve Sartre, indicando claramente o sentido moral de seu envolvimento dolorosamente prolongado no tema. Sartre opta por “ir até o limite” e luta por isso com determinação e intransigência obstinadas, insistindo que a questão é: “o que você fez da própria vida?”[202]. O sucesso se mede pela capacidade de alguém em estabelecer “a conexão real com os outros, consigo mesmo e com a morte”[203], em oposição ao “mundo seguro e estéril do inautêntico”[204], em que os homens são apanhados por “um alvoroço de evasões de múltiplos tentáculos flácidos”[205].
O que quer que se pense sobre o que Sartre conseguiu realizar, ninguém pode acusá-lo de evasões. Explorar os limites, independentemente das consequências: esta é a característica fundamental de sua obra global. O caminho que trilhou, desde a subjetividade auto-orientada até a individualidade problemática do “universal singular”, passa por territórios plenos de dilemas explosivos que ele descreve da forma mais paradoxal. “Há uma moralidade da política – tema difícil, jamais tratado com clareza – e, quando a política tem de trair sua moralidade, escolher a moralidade é trair a política. Encontre sua saída disso! Particularmente quando a política assumiu como meta realizar o reino do humano.”[206] Grande parte de toda a obra de Sartre é gasta na identificação desse tipo de dilemas e paradoxos, mesmo quando ele não pode apresentar soluções para eles. Pois, ainda uma vez, a natureza mais profunda desses dilemas e paradoxos é que encarar os limites é a condição básica de sua identificação e possível solução. A busca apaixonada dos limites, por parte de Sartre, é que determina a continuidade fundamental de sua obra global através de todas as suas transformações.”
[201] Entrevista a Michel-Antoine Burnier, cit., p. 99. / [202] Jean-Paul Sartre, “La question” (1965), Théâtre Vivant, setembro de 1965. / [203] Prefácio para Portrait of a Man Unknown, de Nathalie Sarraute (1948), traduzido por Maria Jolas, em Situations, cit., p. 139. / [204] Ibidem, p. 141. / [205] Ibidem, p. 139. / [206] Jean-Paul Sartre, “Merleau-Ponty” (1961), em Situations, cit., p. 185.