quinta-feira, 19 de abril de 2018

Desigualdades de gênero, raça e etnia – Ana Paula Comin de Carvalho (et al.)

Editora: Intersaberes
ISBN: 978-85-8212-487-1
Outros autores: Cristian J. Salaini, Débora Allebrandt, Nádia Elisa Meinerz e Nilson Weisheimer
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 176
Sinopse: A obra aprofunda a discussão sobre as desigualdades de gênero, raça e etnia. O tema é complexo e atual, e neste livro o leitor encontra reflexões sobre crenças preconceituosas, ações discriminatórias, rotulações pejorativas e condutas excludentes. Por fim, são abordadas as formas de combate às desigualdades sociais.



“Desigualdade social é um fenômeno social, cultural e histórico exterior ao indivíduo, não sendo, portanto, determinado por condições naturais, biológicas ou por herança genética. Desse modo, é necessário ter presente que ninguém nasce desigual, mas, com grande frequência, as pessoas nascem em condições desiguais.
Segundo o sociólogo Guilherme A. Galliano1, quando falamos de desigualdade social, estamos nos referindo ao fato de existirem hierarquias entre pessoas e grupos sociais, nas quais os indivíduos que ocupam posições superiores possuem vantagem em relação aos que ocupam posições inferiores. Essas vantagens ou privilégios dizem respeito às formas de acesso e distribuição de bens socialmente valorizada – a propriedade, o capital, o poder e a informação, por exemplo. Essa distribuição é sempre ordenada por norma, o que a torna um componente da estrutura de grupos e sociedades.
Tal como aqui propomos, a desigualdade social refere-se à existência de privilégios na distribuição de bens sociais, possuindo certas características básicas que passaremos a descrever:
1. A desigualdade é um fenômeno social – As desigualdades de gênero, raça e etnia não são fatores biológicos ou naturais, mas sim artificiais, no sentido de serem uma criação humana.
2. A desigualdade é um fenômeno onipresente – Pode ser verificado em todas as sociedades humanas.
3. A desigualdade adquire diferentes configurações – As desigualdades mudam de forma e de conteúdo em cada época histórica e tipo de sociedade.
4. A desigualdade influencia as condições de vida das pessoas e dos grupos sociais – Isso implica reconhecer que as desigualdades potencializam conflitos e contradições entre pessoas e coletividades distintas.”


Mecanismos de manutenção das desigualdades sociais
Conforme Galliano (1981), algumas normas que ordenam a distribuição de bens sociais consistem em leis e regras formais, como a legislação eleitoral, mas há outras informais e bastante difusas, como a moda e as regras de etiqueta. Elas geralmente atendem aos interesses daqueles que as estabelecem. Os predicados sujeitam-se às normas por causa das sanções que garantem a coercitividade destas, isto é, a sua obediência deve-se ao receio de ser penalizado ou constrangido pelos demais.”


Formas de explicação sociológica das desigualdades sociais
De acordo com Galliano (1981), as formas de explicação sociológica das desigualdades sociais podem ser divididas em três tipos: a concepção dicotômica, os esquemas de graduação e o esquema funcional.
A concepção dicotômica vê a exploração econômica como o principal fator de desigualdade. Nessa perspectiva, os indivíduos que detêm os meios de produção – burgueses – têm acesso privilegiado aos bens sociais, em detrimento daqueles que não detêm tais meios – os operários. Um exemplo de explicação sociológica nesses termos é a interpretação de Karl Marx.
Nos esquemas de graduação, um fator (a renda) ou a combinação de fatores (renda, tipo de trabalho e grau de instrução) são empregados para explicar as desigualdades socais. De acordo com esse ponto de vista, esses elementos são determinantes no que se refere ao acesso a bens sociais. A interpretação de Max Weber é um modelo dessa concepção.
No esquema funcional, a divisão social do trabalho é vista como a geradora das desigualdades sociais. A diferenciação e a especialização no âmbito do trabalho produzem desigualdades entre os membros de sociedades que antes realizavam as mesmas tarefas. Um exemplo da aplicação desse esquema é a interpretação de Émile Durkheim.”


“Outro marco no surgimento dos estudos sobre mulheres foi o livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (1949), publicado entre as décadas de 1940 e 1950. Em uma célebre frase, que é tomada ainda hoje como referência tanto na academia quanto no movimento social organizado, a autora resume sua proposição: “A gente não nasce mulher, torna-se mulher”a.
Nesse sentido, a desigualdade entre homens e mulheres não pode ser pensada como algo que nasce com os indivíduos, e sim como fruto de uma imposição própria da vida em sociedade. Nessa mesma época, a antropóloga Margareth Mead3 publicou sua tese sobre a inexistência de uma relação entre o sexo biológico e o temperamento do indivíduo, com base no estudo de três diferentes grupos culturais.
Entre os grupos pesquisados por ela estavam os Arapesh da Montanha, cujo temperamento de homens e mulheres era igualmente dócil e carinhoso. Tanto os homens como as mulheres cuidavam de maneira muito afetuosa das crianças, de tal forma que elas eram o centro da vida na aldeia. Já entre os Mundugmor, tanto homens quanto mulheres eram extremamente agressivos e belicosos, não havendo espaço na sua cultura para manifestações de carinho ou afeto. As crianças, nas aldeias Mundugmor, viviam por sua própria conta, de tal modo que ninguém lhes dava atenção. Ao contrário, muitas vezes elas eram trocadas e vendidas para os inimigos em troca de outros prisioneiros adultos.
Um terceiro grupo pesquisado pela autora, à semelhança da nossa sociedade, apresentava uma diferenciação de temperamentos relacionada ao sexo. No entanto, ao contrário do que se passa conosco, entre os Tchambuli são os homens que tomam conta da casa e das crianças, tendo um temperamento mais dócil e afetuoso, enquanto que as mulheres são mais ativas em relação à produção dos meios de subsistência, responsabilizando-se pelo comércio com as outras tribos.”
a: Para uma discussão crítica sobre o mito do matriarcado, ver Bamberger2, que, deixando de lado a discussão sobre a existência ou não de tal regime devido à inexistência de provas históricas, chama a atenção para a forma como os mitos sobre o matriarcado reforçam a tese da superioridade masculina.


“Rosaldo4, por meio de revisão crítica dos estudos antropológicos em sociedades não ocidentais, constata que, em todos os povos, em maior ou menor medida, os homens desempenham papéis de maior valor cultural e detêm sempre alguma autoridade sobre as mulheres.
Buscando uma resposta para a diferenciação universal dos papéis sexuais, a autora propõe uma explicação embasada na hierarquização social do espaço ocupado em diferentes sociedades por homens e mulheres. Segundo a autora, em virtude do seu papel de mãe, a mulher estaria mais relacionada à esfera doméstica, enquanto o homem possuiria uma participação mais efetiva na esfera pública. Nesse sentido, os homens são mais valorizados socialmente porque se ocupam de uma esfera social relacionada ao poder e à autoridade. Os exemplos etnográficos apresentados servem também para relativizar a divisão entre o doméstico e o público, já que o grau dessa oposição é variável conforme o contexto cultural. Rosaldo chega à conclusão de que a desigualdade entre homens e mulheres é menor nos grupos em que o homem participa ativamente das tarefas domésticas.
Outra tese relevante, apresentada nessa coletânea, é esboçada por Nancy Chodorow, com base na reflexão sobre a socialização diferenciada de homens e mulheres. Segundo Chodorow5, as mulheres são socializadas no ambiente doméstico, em companhia das mulheres mais velhas, as quais lhes transmitem desde cedo uma série de características maternais. Nesse sentido, desde criança as mulheres aprendem as atividades do ambiente doméstico, tornando-se “pequenas mães”. Já a experiência de socialização dos homens é radicalmente oposta.
Os meninos precisam aprender a ser homens longe do ambiente doméstico, procurando companhias horizontais (meninos de sua idade) e estabelecendo laços públicos. Isso resulta em diferenças marcantes na psicologia masculina e feminina. Da mesma forma, a partir dessa socialização, o status social — a forma como cada sexo é reconhecido socialmente — das mulheres é um status atribuído, enquanto o dos homens é um status conquistado.
Sherry Ortner também propõe uma explicação para a desigualdade com base nos papéis sociais que eram atribuídos a cada sexo. Para Ortner6, enquanto a mulher desempenha funções tidas como instintivas (procriar, cuidar, nutrir a prole), ela é percebida como mais próxima de um estado de natureza. Enquanto isso, o homem é pensado como mais próximo da cultura, porque a ele são delegadas as funções de transformação da natureza em prol da vida em sociedade. Nessa equação, o polo valorizado é o da cultura e da capacidade de transcender as condições naturais e modificá-las ao seu propósito.”


“Outro autor que concorda com a tese de que a dominação masculina é um componente estrutural da sociedade é Pierre Bourdieu. Para Bourdieu7, tanto o homem quanto a mulher são produtos da dominação masculina à medida que ela cria expectativas sociais, às quais ambos estão sujeitos. Isso quer dizer que os homens também estão subjugados a uma série de expectativas de gênero, tais como o uso da força, o papel de provedores do lar, a imposição de atividade e constante disposição sexual, a recriminação de qualquer demonstração de emoção ou afetividade.
Grande parte dos homens está muito longe de corresponder a essas expectativas e sofre com a necessidade de fazê-lo. Essas imposições sociais são muito fortes porque são incorporadas pelos sujeitos por meio da socialização e passam a ser vistas como naturais. Pelo fato de homens e mulheres se socializarem e serem socializados pelos mesmos princípios, não há como considerar uns mais vítimas do que outros. (...)
Além disso, Bourdieu (1999) argumenta que a dominação masculina é uma forma de dominação eminentemente simbólica. Como tal, ela só pode ser exercida com a colaboração dos dominados. Nesse sentido, é preciso indicar o papel das próprias mulheres no reconhecimento dessa dominação masculina como legítima, à medida que elas também reproduzem as mesmas normas que as oprimem na socialização de seus filhos, tanto homens quanto mulheres. Um bom exemplo disso é a dupla moral sexual que perpassa, ainda hoje, grande parte da sociedade brasileira: para o homem, valoriza-se e espera-se que tenha o maior número possível de relações sexuais com diferentes parceiras; para a mulher, esse tipo de prática é altamente recriminado. Tanto a regra da virgindade e da fidelidade conjugal para a mulher quanto o incentivo das relações sexuais para os homens são padrões morais compartilhados por homens e mulheres. Não é apenas o homem que vai recriminar uma mulher que tem múltiplos parceiros, mas também as próprias mulheres. Da mesma forma, elas também valorizam a virilidade e a capacidade de conquista dos homens.
Considerando-se ainda o papel fundamental das mulheres como mães na socialização das crianças, pode-se dizer que elas atuam na reprodução dessa dupla moral sexual em relação aos seus filhos e filhas. Nesse sentido, a dominação masculina se perpetua na nossa sociedade porque tem as próprias mulheres como aliadas.”


“A maior parte dos escritos sobre violência de gênero aborda a questão da violência doméstica. Tais estudos foram extremamente significativos para a consolidação de um campo de estudos sobre as mulheres e as condições de opressão feminina no Brasil. Ao longo dos últimos 40 anos, essa temática foi alvo de uma série de pesquisas acadêmicas que procuraram explorar tanto as dimensões físicas quanto simbólicas de situações empíricas de violência perpetuadas contra mulheres dentro de suas casas. Essas pesquisas tinham como principal objetivo demonstrar que os fenômenos de violência não estavam relacionados apenas às características individuais dos agressores, mas refletiam uma ordem social mais ampla, que rege as relações entre homens e mulheres.
Uma das referências mais importantes para a consolidação desse campo foi a da socióloga Heleieth Saffioti e suas elaborações sobre conceito de patriarcado. Para Saffioti8, nossa sociedade é perpassada por uma ordem patriarcal de gênero, que pressupõe um projeto de dominação-exploração por parte dos homens sobre as mulheres.
A violência de gênero é uma prática autorizada, ou pelo menos tolerada socialmente, de punição a qualquer forma de desvio ou subversão das normas de gênero patriarcais. Ou seja, a capacidade de mando dos homens e o requisito de obediência das mulheres só funcionam à medida que são auxiliados pela violência física e simbólica. Isso porque a ideologia patriarcal não é suficiente para garantir a obediência dos dominados, sendo que o patriarca, ou alguém em seu nome, deve fazer valer a sua vontade por meio da violência.
Ainda segundo essa autora, a violência de gênero abrange como vítimas as mulheres, as crianças e os adolescentes de ambos os sexos, e é, em geral, perpetrada por agressores homens, ou mesmo por mulheres que desempenham a função patriarcal no lugar deles. Nesse sentido, quando as mulheres praticam a violência, não o fazem em seu nome, pois, como categoria social, elas estão destituídas de um projeto de dominação-exploração dos homens.”


“O sociólogo alemão Max Weber9 (1864-1920) mostrou que a raça, como determinante de uma aparência exterior herdada e transmissível pela hereditariedade, não interessa por si mesma ao pesquisador. Ela só adquire importância quando é sentida subjetivamente como uma característica comum e constitui, por essa razão, uma fonte da atividade comunitária, isto é, de uma ação social que repousa no sentimento dos participantes de pertencer ao mesmo grupo.
O parentesco, ou as diferenças físicas, não funda a atração ou a repulsa entre as coletividades. É por meio do estabelecimento de relações de dominação de um grupo sobre o outro que esses elementos são socialmente levados em consideração. Em outras palavras, a atração ou a repulsa são socialmente construídas pelo emprego dos mais diversos elementos.
Para Weber, tanto as disposições raciais quanto as adquiridas pelos hábitos de vida podem dar lugar a relações sociais comunitárias, não havendo, portanto, necessidade de operar-se uma distinção fundamental entre elas. Sendo assim, a raça, do mesmo modo que os costumes, pode atuar como uma das forças possíveis na formação de comunidades. Os contrastes porventura existentes têm de ser conscientemente percebidos como tais pelos agentes para criar nos participantes um sentimento de comunidade e relações associativas fundadas explicitamente nessas diferenças.
Ainda de acordo com Weber (2000), o grupo étnico se define a partir da crença subjetiva na origem comum, não sendo possível procurar sua fonte na posse de traços, quaisquer que sejam eles. O sociólogo ressalta a importância de um interesse comum que induz a ação comunitária política, sendo esta última que gera a ideia de uma comunidade de sangue. O conteúdo de uma comunidade étnica é a crença em uma honra, ou seja, a convicção da excelência de seus próprios costumes e da inferioridade dos outros.
Em suma, o que distingue, para Weber, a pertença racial da pertença étnica, é que a primeira estaria efetivamente fundada numa comunidade de origem, num parentesco biológico efetivo, ao passo que a segunda estaria baseada na crença do sentimento e da representação coletiva da existência de uma comunidade de origem. No entanto, a pertença racial não seria condição suficiente para a produção de relações comunitárias. Tal característica precisaria ser socialmente levada em consideração nas interações entre os grupos e mobilizada politicamente para fomentar sentimentos e ações comunitárias. Nessa perspectiva, não são as características físicas que determinam comportamentos ou a existência de grupos, e sim os sentidos socialmente construídos e compartilhados nas relações.
Desse modo, percebemos um importante deslocamento nos termos do debate sobre raça e etnicidade. Não se trata mais de uma simples oposição entre coletividades formadas por características morfológicas e psicológicas e outras compostas por características culturais — agora ambos os elementos não representam nada por si mesmos e podem configurar comunidades étnicas.”


“Embora sejam conceitos correlacionados, preconceito e discriminação não têm o mesmo significado. Enquanto o preconceito corresponde a um juízo de valor antecipado, a discriminação é o ato de estabelecer diferenças, distinções e separações. Em outras palavras, ela é a materialização do preconceito.”


“Qual critério devemos utilizar para definir se a distribuição de renda numa sociedade é mais ou menos justa? A distância de valores entre os que ganham mais e os que ganham menos? A renda média por indivíduo ou família? Deveríamos dar mais peso à desigualdade existente nos estratos de renda mais baixos ou mais altos? Todas essas indagações demonstram que não estamos diante de uma questão meramente técnica, mas eminentemente política, isto é, do que a sociedade considera relevante.
Dessa forma, como nos lembra Miller10, se a igualdade de oportunidades parece ser um ideal amplamente compartilhado no pensamento do século XX, a igualdade de renda é um tema muito mais controverso. Pensadores conservadores alegam que a busca da igualdade é incompatível com a liberdade, pois ela coloca em risco as bases da economia de mercado e é um esforço inútil, já que novas formas de desigualdade certamente irão surgir para substituir as que foram suprimidas.
Um exemplo disso pode ser encontrado no campo do conhecimento. Não saber ler e escrever implica um acesso muito restrito aos bens sociais. Tal desigualdade vem sendo fortemente combatida por meio de políticas estatais no campo da educação.
No entanto, com o surgimento de novas tecnologias de informação, começou a se produzir uma nova desigualdade entre aqueles que as dominam e os que não conseguem fazê-lo. Os pensadores liberais dão maior peso à igualdade de oportunidades e só aprovam a igualdade de renda na forma de um nível mínimo de provisão, ao qual cada pessoa teria direito. O salário mínimo, por exemplo, seria um mecanismo para garantir essa renda básica a cada trabalhador.
Apenas na tradição socialista a igualdade de renda se tomou um valor fundamental. Contudo, muitos socialistas argumentam em favor da maior igualdade de situação material e poucos são a favor da completa igualdade, concepção presente apenas na perspectiva comunista.
Os socialistas das democracias ocidentais, em geral, são comprometidos com um ideal de igualdade social que tem os seguintes parâmetros: as diferentes recompensas que as pessoas recebem devem corresponder às reais diferenças de esforços e capacidades; ninguém deve ter um padrão de vida abaixo de um mínimo prescrito, e o âmbito da desigualdade não deve ser tão grande a ponto de dar origem a divisões de classe.
Esse último aspecto é importante, já que, numa sociedade em que as pessoas se encontram divididas entre si por barreiras de classe social, é pouco provável que elas compreendam e sintam solidariedade pela situação das outras.
Outra questão importante é saber se até mesmo uma ideia moderada de igualdade como esta é viável em uma sociedade moderna. Supondo-se que o mercado continue a desempenhar um papel central na produção e na distribuição de bens e serviços, parece inevitável que desigualdades substanciais continuem a surgir dos sucessos e fracassos das pessoas na concorrência econômica. É muito difícil controlar diretamente tais desigualdades.
O filósofo político norte-americano Michael Walzer11 elaborou uma proposta denominada igualdade complexa. Segundo esse autor, a sociedade moderna incorpora certo número de esferas de distribuição em que diferentes bens são alocados de acordo com os critérios vigentes naquele campo específico. Se as fronteiras entre as esferas forem respeitadas, o destaque de uma pessoa na esfera econômica pode ser compensado pelo de outra na esfera social, ou de uma terceira no campo político. Desse modo, o pluralismo social poderia levar a um tipo de igualdade em que nenhuma pessoa superasse decisivamente outra. No entanto, a posição econômica exerce muita influência nas sociedades atuais, em especial na capacidade de uma pessoa obter outros bens sociais: como reputação, poder político, educação, entre outros.”


“De acordo com o etnólogo Carlos Moore Wedderburn12, o conceito de ação afirmativa teve sua origem na Índia, logo após a Primeira Guerra Mundial, antes mesmo que esse país se tornasse independente do Império Britânico. No ano de 1919, Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-1956), jurista, economista, historiador e membro de uma casta considerada “intocável” propôs a representação diferenciada dos segmentos populacionais designados e considerados como inferiores na sociedade indiana. Para ele, isso significava instituir políticas públicas diferenciadas e constitucionalmente protegidas em favor da igualdade para todos os segmentos sociais.
Como nos lembra Wedderburn (2005), o sistema de castas indiano é uma milenar estrutura de opressão, embutida nos conceitos religiosos do hinduísmo. Ele se organiza em torno de conceitos de superioridade e inferioridade, de pureza e impureza, que envolvem critérios religiosos e sociorraciais.
Historicamente, tal sistema se articula em torno de quatro castas formais, das quais as três primeiras são consideradas superiores e a quarta, inferior, pois, segundo o hinduísmo, foi criada por Deus para servir às três castas superiores.
Ao longo do tempo, esse sistema se tornou mais complexo, com a criação de múltiplas castas subalternas fora do sistema formal, designadas intocáveis. Estas, conforme a religião hindu, por serem poluídas, devem obediência e sujeição a todas as demais castas, inclusive à casta inferior. Ainda existem populações tribais conhecidas como tribos estigmatizadas, que vivem fora do sistema de castas, relegadas ao último estágio de inferioridade.
Ainda segundo esse autor, visando romper com esse sistema milenar, Ambedkar apresentou aos órgãos coloniais britânicos a demanda pela representação eleitoral diferenciada em favor das classes oprimidas. Esse ato tornou-se um dos principais motivos dos embates ideológicos que emergiram entre os nacionalistas indianos.
Mahatma Mohandas Gandhi (1869-1948), promotor da luta pela independência da Índia e pertencente a uma casta superior, opôs-se à noção de ação afirmativa porque acreditava que qualquer tentativa de mudar o status quo entre as castas, por meio de mecanismos legais, dividiria o país e levaria a uma guerra civil entre as castas superiores e inferiores, provocando o massacre destas últimas. Ele defendia que somente uma mudança de mentalidade das castas superiores e a independência da Índia libertariam as castas inferiores. Gandhi, inclusive, ameaçou suicidar-se em público se a Grã-Bretanha adotasse os mecanismos de ações afirmativas em favor dos “intocáveis”.
Conforme Wedderburn, Ambedkar argumentava que seria impossível desmantelar o sistema de castas sem a adoção de medidas específicas que favorecessem a mobilidade social dos segmentos oprimidos. Como os dirigentes nacionalistas precisavam da totalidade do apoio dos indianos para alcançar a independência da nação, viram-se obrigados a ceder a várias exigências de Ambedkar, que reivindicava a inclusão de instrumentos de ação afirmativa na constituição da Índia independente. Em 1950, ele próprio redigiu a parte da Carta Magna indiana referente a essas questões. Os seus artigos 16 e 17 proíbem a discriminação com base na raça, casta e descendência, abolem a intocabilidade e instituem um sistema de ações afirmativas denominado reserva, ou representação seletiva, nas assembleias legislativas, na administração pública e nas redes de ensino.
Tais políticas, como aponta o autor (Wedderburn, 2005), foram fortemente combatidas pelas castas superiores, mas, apesar disso, o Estado tentou reforçá-las aumentando, em 1980, e dez anos depois, os percentuais das cotas de participação. Após décadas de ofensivas destinadas a derrubar as políticas de ação afirmativa e retirá-las da constituição, os políticos de ultradireita passaram a reclamar a implantação de cotas em favor das castas superiores.
Como o caso da Índia, analisado por Wedderburn, demonstra, as políticas de ação afirmativa, ao contrário do que geralmente se acredita, não se iniciaram nos Estados Unidos nos anos 1960, mas emergiram a partir das lutas pela descolonização após a Segunda Guerra Mundial, quando foram aplicadas com a denominação de indigenização ou nativização. (...)
Na perspectiva desse autor (Wedderburn, 2005), como resultado da luta da comunidade negra estadunidense por direitos civis, desencadeada nos anos 1950, os Estados Unidos incorporaram, na década seguinte, à sua legislação e prática social, mecanismos que surgiram do contexto de descolonização do mundo afro-asiático. A oficialização das políticas de ação afirmativa para esse segmento desencadeou novas ideias e propostas que permitiram reivindicações de outros grupos discriminados dentro do país, como os nativos estadunidenses, as mulheres, os idosos, os deficientes físicos, os homossexuais, os imigrantes, entre outros.
Para Wedderburn, a experiência dos negros estadunidenses reforçou, tanto nos EUA quanto em outros países da Europa, a luta das mulheres pela igualdade em todas as esferas da vida pública e privada. A mobilização específica destas popularizou o conceito de políticas públicas de ação afirmativa e, em especial, do mecanismo de cotas como um dos seus principais instrumentos.”


1: Introdução à sociologia, 1981.
2: O mito do matriarcado, 1979.
3: Sexo e temperamento, 2000.
4: A mulher, a cultura e a sociedade, 1979.
5: Estrutura familiar e personalidade feminina, 1979.
6: Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?, 1979.
7: A dominação masculina, 1999.
8: Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero, 2001.
9: Economia e sociedade, 2000.
10: Igualdade, 1996.
11: Spheres of justice, 1983.
12: Do marco histórico das políticas públicas de ações afirmativas, 2005.

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