segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Uma Teoria da Justiça (Parte III) – John Rawls

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-630-1
Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte I

“O senso de justiça nos leva a promover sistemas justos e a desempenhar neles a nossa parte quando acreditamos que os outros, ou pelo menos um número suficiente deles, farão também a sua. Mas, em circunstâncias normais, uma certeza razoável em relação a isso só pode ser obtida se houver uma regra imperativa efetivamente aplicada. Supondo que o bem público beneficie a todos, e que todos concordem com a sua produção, o uso da coerção é perfeitamente racional do ponto de vista de cada indivíduo. Muitas das atividades tradicionais do governo, na medida em que são justificáveis, podem ser explicadas dessa forma. A necessidade da imposição das regras pelo estado ainda existirá mesmo que todos sejam movidos pelo mesmo senso de justiça. As propriedades características dos bens públicos essenciais necessitam de consentimento coletivo, e todos precisam de uma garantia sólida de que esse será mantido.
Um outro aspecto da natureza dos bens públicos é o dos efeitos externos. Quando os bens são públicos e indivisíveis, a sua produção causará benefícios e perdas para outros que talvez não tenham sido considerados por aqueles que fornecem esses bens e que decidem quem deve produzi-los. Dessa forma, no caso extremo, se apenas uma parte dos cidadãos paga os impostos que devem cobrir os custos dos bens públicos, toda a sociedade é mesmo assim beneficiada pelos bens fornecidos. No entanto, aqueles que determinam essa arrecadação talvez não considerem esses efeitos, e portanto o montante de gastos públicos é presumivelmente diverso do que seria se todos os benefícios e perdas tivessem sido considerados. Os casos mais frequentes são aqueles em que a indivisibilidade é parcial e o público menor. Alguém que se vacinou contra uma doença contagiosa ajuda os outros e também a si mesmo; e embora essa proteção possa não ter valor para essa pessoa em particular, ela pode ser válida para a comunidade local, quando todas as vantagens forem consideradas. E, é claro, há os casos notáveis de danos públicos, como quando as indústrias provocam a poluição e a erosão do ambiente natural. Esses custos não são em geral considerados pelo mercado, de modo que os bens produzidos são vendidos por preços muito inferiores aos seus custos sociais marginais. Há uma divergência entre a contabilidade privada e a social que o mercado deixa de registrar. Uma tarefa essencial da lei e do governo é instituir as correções necessárias.
Fica evidente, então, que a indivisibilidade e o caráter público de certos bens essenciais, juntamente com os efeitos externos e as tentações às quais eles dão origem, tornam necessária a aprovação coletiva organizada e garantida pelo Estado. É uma visão superficial aquela que considera que a regra política é fundada unicamente na propensão dos homens para o egoísmo e à injustiça. Pois, mesmo entre homens justos, quando se trata de bens indivisíveis em relação a um grande número de indivíduos, suas decisões isoladas não conduzirão ao bem comum. Alguma aceitação coletiva é necessária e todos querem assegurar que ela será honrada para que cada um se disponha a fazer a sua parte. Em uma grande comunidade, não se garante o grau de confiança mútua na integridade alheia que tornaria supérflua a coerção. Em uma sociedade bem-ordenada, as sanções exigidas são indubitavelmente suaves, e podem nunca vir a ser aplicadas. Ainda assim, a existência desses dispositivos é uma condição normal da vida humana, mesmo nesse caso.”


“Por último, temos o setor de distribuição. Sua tarefa é preservar uma justiça aproximativa das partes a serem distribuídas por meio da taxação e dos ajustes no direito de propriedade que se fazem necessários. Dois aspectos desse setor podem ser diferenciados. Em primeiro lugar, ele necessita de vários impostos sobre heranças e doações, e fixa restrições ao direito de legar. O propósito desses tributos e normas não é aumentar a receita (liberar recursos para o governo), mas corrigir, gradual e continuamente, a distribuição da riqueza e impedir concentrações de poder que prejudiquem o valor equitativo da liberdade política e da igualdade equitativa de oportunidades. Por exemplo, o princípio da tributação progressiva poderia ser aplicado ao beneficiário. Isso encorajaria a ampla dispersão da propriedade que é, ao que parece, uma condição necessária à manutenção das liberdades iguais. A herança desigual de riqueza não é em si mesma mais injusta que a herança desigual de inteligência. É verdade que a primeira é mais facilmente sujeita ao controle social; mas o essencial é que, na medida do possível, as desigualdades que se fundam em ambas satisfaçam o princípio da diferença. Assim, a herança é permissível contanto que as desigualdades resultantes tragam vantagens para os menos afortunados e sejam compatíveis com a liberdade e com a igualdade equitativa de oportunidades. Como já foi definido anteriormente, a igualdade equitativa de oportunidades significa um certo conjunto de instituições que assegura oportunidades semelhantes de educação e cultura para pessoas semelhantemente motivadas e mantém as posições e os cargos públicos abertos a todos, levando em conta as qualidades e esforços razoavelmente relacionados com os respectivos deveres e tarefas. São essas instituições que correm risco quando as desigualdades de riqueza excedem um certo limite; e, da mesma forma, a liberdade política tende a perder o seu valor, e o governo representativo só existirá nas aparências. Os tributos e as normas do setor de distribuição devem evitar que esse limite seja ultrapassado. Naturalmente, onde fixar esse limite é uma questão de juízo político guiado pela teoria, pelo bom senso, e pela mera intuição, pelo menos em termos genéricos. Sobre esse tipo de questão a teoria da justiça não tem nada a dizer. O seu objetivo é formular os princípios que devem regular as instituições básicas.
A segunda parte do setor de distribuição é um sistema de tributação que tem o intuito de arrecadar a receita exigida pela justiça. O governo deve receber uma parte dos recursos da sociedade, para que este possa fornecer os bens públicos e fazer os pagamentos de transferências necessários para que o princípio da diferença seja satisfeito. Esse problema pertence ao setor de distribuição, já que a carga tributária deve ser partilhada de forma justa e esse setor tem por objetivo criar organizações justas. Deixando de lado muitas dificuldades, vale a pena notar que uma tributação proporcional sobre as despesas pode fazer parte do melhor sistema tributário. Em primeiro lugar, ela é preferível a um imposto sobre a renda (de qualquer tipo) ao nível dos preceitos da justiça baseados no senso comum, já que impõe uma tributação sobre o quanto uma pessoa retira do estoque comum de bens, e não sobre o quanto ela contribui (supondo-se aqui que a renda é ganha de forma justa). Além disso, um imposto proporcional sobre o consumo total (por exemplo, a cada ano) pode conter as isenções comuns para dependentes, e assim por diante; todos são tratados de uma maneira uniforme (ainda na suposição de que a renda é ganha de forma justa). Portanto, pode ser melhor usar a tributação progressiva apenas quando ela é necessária para proteger a justiça da estrutura básica com relação ao primeiro princípio da justiça e à igualdade equitativa de oportunidades, e desse modo evitar acúmulos de propriedade e poder, que provavelmente minarão as instituições correspondentes.”


“Desejo agora apresentar a formulação final dos dois princípios da justiça para instituições. Em nome da completude, fornecerei uma formulação total, que inclui as anteriores.
Primeiro Princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo Princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e
(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.
Primeira Regra de Prioridade (A Prioridade da Liberdade)
Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade.
Existem dois casos:
(a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos;
(b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor.
Segunda Regra de Prioridade (A Prioridade da Justiça sobre a Eficiência e sobre o Bem-Estar)
O segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem dois casos:
(a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor;
(b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que carregam esse fardo.”


“Respeitar um outro como uma pessoa moral é tentar entender, do seu ponto de vista, seus objetivos e interesses e apresentar-lhe ponderações que o capacitem a aceitar os limites impostos à sua conduta. Uma vez que um outro deseja, vamos supor, regular suas ações segundo princípios aceitáveis para todos, ele deveria estar a par dos fatos pertinentes que explicam as limitações que deverá a aceitar para agir nesse sentido. O respeito também se mostra por meio da disposição para prestar pequenos favores e cortesias, não por causa de seu valor material, mas porque são uma expressão apropriada de nossa percepção das aspirações e sentimentos de uma outra pessoa. A razão para o reconhecimento desse dever está no fato de que, embora as partes na posição original não estejam interessadas nos interesses dos outros, elas sabem que no convívio social precisam da garantia da estima de seus consócios. Sua autoestima e sua confiança no valor de seu próprio sistema de objetivos não pode suportar a indiferença e muito menos o desprezo dos outros. Todos, portanto, se beneficiam com o fato de viverem numa sociedade na qual se pratica o respeito mútuo. O preço a ser pago pelo interesse próprio é comparativamente menor do que o apoio recebido ao senso de valor pessoal.
Um raciocínio semelhante sustenta os outros deveres naturais. Considere-se, por exemplo, o dever da ajuda mútua. Kant sugere, e outros autores o acompanham nesse ponto, que o fundamento para a proposta desse dever consiste na possibilidade de surgirem situações em que precisamos da ajuda dos outros, e o não reconhecimento desse princípio equivaleria a nos privarmos de sua assistência. Embora em ocasiões especiais tenhamos de fazer coisas que não são do nosso interesse, é provável que lucremos no conjunto, pelo menos a longo prazo e em circunstâncias normais. Em cada caso particular o ganho da pessoa que precisa de ajuda supera em muito a perda dos que são chamados a prestá-la; e supondo que as probabilidades de vir a beneficiar-se não são muito menores do que as de ter de oferecer ajuda, o princípio é claramente do nosso interesse. Mas esse não é o único argumento a favor do dever de ajuda mútua, nem mesmo o mais importante. Uma razão suficiente para adotar esse dever é seu efeito genérico sobre a qualidade de vida. O conhecimento público de que estamos vivendo numa sociedade em que podemos contar com a assistência dos outros em circunstâncias difíceis é por si só um grande valor. Não faz muita diferença que, na prática, nunca venhamos a precisar dessa assistência e que ocasionalmente sejamos solicitados a prestá-la. O balanço dos ganhos, interpretado em termos estritos, talvez não seja importante. O valor básico do princípio não é medido pela ajuda que de fato recebemos, mas sim pelo senso de segurança e confiança nas boas intenções dos outros homens e pelo fato de sabermos que podemos contar com eles em caso de necessidade. Na verdade, basta apenas imaginar como seria a sociedade, se a rejeição desse princípio fosse publicamente notória. Assim, embora os deveres naturais não sejam casos especiais fundados em um único princípio (pressuposto do qual parti), não há dúvida de que razões semelhantes sustentam muitos deles, quando se consideram as atitudes subjacentes que representam. Tão logo tentemos imaginar a vida numa sociedade na qual ninguém tem o menor desejo de agir segundo esses deveres, percebemos que ela expressaria uma indiferença, se não um desdém pelos seres humano, que tornaria impossível o senso de nosso próprio valor.”


“O princípio básico do direito internacional é um princípio de igualdade. Povos independentes organizados como estados têm certos direitos iguais básicos. Esse princípio é análogo ao dos direitos iguais dos cidadãos num regime constitucional. Uma consequência dessa igualdade das nações é o princípio da autodeterminação, o direito de um povo de resolver seus próprios assuntos sem a intervenção de forças exteriores. Outra consequência é o direito da autodefesa contra uma agressão, incluindo-se o direito de formar alianças defensivas para proteger esse direito. Um outro princípio é o dever cumprir tratados, desde que sejam consistentes com os outros princípios que regem as relações internacionais. Assim, tratados para a autodefesa, interpretados adequadamente, gerariam obrigações, enquanto acordos para cooperar numa agressão injustificada seriam nulos ab initio.
Esses princípios definem quando uma nação tem uma causa justa numa guerra ou, na expressão tradicional, o seu jus ad bellum. Mas há também princípios que regulam os meios que uma nação pode usar ao promover uma guerra, o seu jus in bello. Mesmo numa guerra justa, certas formas de violência são rigorosamente inadmissíveis; e quando o direito de um país em relação à guerra é questionável e incerto, as restrições dos meios que se podem usar são muito mais severas. Atos que, quando necessários, são permissíveis numa guerra de legítima defesa, podem ser categoricamente excluídos numa situação mais duvidosa. O objetivo da guerra é uma paz justa, e portanto os meios empregados não devem destruir a possibilidade da paz ou estimular um desprezo pela vida humana que põe em risco a nossa segurança e a da humanidade. A condução da guerra deve ser moderada ajustando-se a esse objetivo. Os representantes de estados reconheceriam que a melhor forma de servir aos seus interesses nacionais, vistos a partir da posição original, está no reconhecimento dessas limitações dos meios bélicos. Isso acontece porque o interesse nacional de um estado justo se define pelos princípios da justiça que já foram reconhecidos. Portanto, uma nação nessas condições visará acima de tudo à manutenção e à preservação de suas instituições justas e das condições que as tornam possíveis. Não a move o desejo de poder internacional ou a glória nacional; nem tampouco ela fomenta a guerra visando a uma vantagem econômica ou à expansão territorial. Esses objetivos são contrários à concepção da justiça que define o interesse legítimo de uma sociedade, por mais preponderantes que eles possam ter sido na conduta concreta dos estados. Aceitando-se esses pressupostos, então, parece razoável supor que as proibições tradicionais, que incorporam os direitos naturais que protegem a humanidade, seriam escolhidas.”


          “A teoria constitucional da desobediência civil repousa unicamente sobre uma concepção da justiça. Até os aspectos da publicidade e não-violência se explicam com base nisso. E o mesmo vale para a explicação da objeção de consciência, embora ela exija uma elaboração maior da doutrina contratualista. Em nenhum momento se fez referência a princípios que não fossem políticos; concepções religiosas e pacifistas não são essenciais. Embora os praticantes da desobediência civil tenham muitas vezes sido motivados por convicções dessa espécie, não há necessariamente nenhuma ligação entre elas e a desobediência civil. Pois essa forma de ação política pode ser entendida como um modo de recorrer ao senso de justiça da comunidade, uma invocação dos princípios reconhecidos da cooperação entre iguais. Sendo um apelo à base moral da vida cívica, é um ato político e não religioso. Apoia-se em princípios da justiça ditados pelo senso comum, cuja obediência pode ser mutuamente exigida entre os homens, e não em afirmações religiosas de fé e amor, para as quais eles não podem pedir a aceitação de todos. Não quero dizer, naturalmente, que concepções não políticas não tenham validade. Elas podem, de fato, confirmar o nosso julgamento e sustentar nossas ações em rumos que são tidos como justos por outros motivos. Todavia, não são esses princípios, mas sim os princípios da justiça, os termos básicos da cooperação social entre pessoas livres e iguais, que fundamentam a constituição. A desobediência civil como foi definida não exige uma fundamentação sectária, mas decorre da concepção pública da justiça que caracteriza a sociedade democrática. Entendida assim, a concepção da desobediência civil faz parte da teoria do governo livre.
Uma diferença entre o constitucionalismo medieval e o moderno está no fato de que, no primeiro, a supremacia da lei não era garantida por controles institucionais estabelecidos. O controle sobre o governante que em suas sentenças e leis contrariava o senso da justiça da comunidade restringia-se, em sua essência, ao direito de resistência da sociedade em seu todo ou em parte. Até mesmo esse direito parece não ter sido interpretado como um ato da coletividade; um rei injusto era simplesmente deposto. Assim, a Idade Média não dispunha das ideias básicas do governo constitucional moderno, a ideia do povo soberano com autoridade suprema e a institucionalização dessa autoridade por meio de eleições e parlamentos, e outras formas constitucionais. Praticamente da mesma forma que a concepção moderna de governo institucional se desenvolve a partir da medieval, assim também a teoria da desobediência civil suplementa a concepção puramente legal da democracia constitucional. Ela tenta formular os fundamentos com base nos quais se pode discordar da autoridade democrática legítima de maneiras que, embora sabidamente contrárias à lei, expressam uma fidelidade a essa mesma lei e um recurso aos princípios políticos fundamentais de um regime democrático.”


“Numa sociedade democrática, portanto, sabe-se reconhecer que cada cidadão é responsável por sua interpretação dos princípios da justiça e pela conduta que assume à luz deles. Não pode haver nenhuma interpretação legal ou socialmente aprovada desses princípios que moralmente tenhamos sempre de aceitar, nem mesmo quando a interpretação é da corte suprema de justiça ou do legislativo. De fato, cada função constitucional, o legislativo, o executivo e o judiciário, apresenta a sua interpretação da constituição e dos ideais políticos que a informam. Embora o judiciário possa ter a última palavra na solução de qualquer caso particular, ele não está imune a poderosas influências políticas que podem forçar a revisão de sua interpretação da constituição. O judiciário apresenta a sua doutrina por meio de arrazoados e argumentações; sua concepção da constituição deve, se quiser perdurar, persuadir a maior parte dos cidadãos sobre a sua solidez. O tribunal de última instância não é o judiciário, nem o executivo, nem o legislativo, mas sim o eleitorado como um todo. Quem pratica a desobediência civil recorre por uma via especial a esse corpo. Não há perigo de anarquia desde que haja uma harmonia adequada nas concepções de justiça dos cidadãos e se respeitem as condições do recurso à desobediência civil. Está implícito que no sistema de um governo democrático os homens podem conseguir esse entendimento e honrar esses limites quando as liberdades políticas básicas são mantidas. Não há como evitar inteiramente o perigo das lutas causadoras de divisões, da mesma forma que ninguém pode excluir completamente a possibilidade de uma profunda controvérsia científica. Todavia, se a desobediência civil justificada aparentemente ameaçar a concórdia cívica, a responsabilidade não recai sobre os que protestam, mas sim sobre aqueles cujo abuso de autoridade e poder justifica essa oposição. Pois empregar o aparato coercitivo do Estado para manter instituições evidentemente injustas é por si só uma forma de força ilegítima que os homens, no devido tempo, têm direito a rechaçar.”


“À primeira vista, pode parecer estranho que venhamos a ter o desejo de agir segundo uma concepção do justo e da justiça. Como é possível que princípios morais conquistem a nossa afeição? Na justiça como equidade, há várias respostas para essa pergunta. Em primeiro lugar, os princípios morais necessariamente têm um certo conteúdo. Como são escolhidos por pessoas racionais para o julgamento de reivindicações concorrentes, eles definem modos já aceitos de promover os interesses humanos. As instituições e as ações são avaliadas com base na garantia que dão a esses objetivos; e portanto princípios inúteis, por exemplo, o de que não se deve olhar para o céu às terças-feiras, são rejeitados como restrições incômodas e irracionais. Na posição original, as pessoas não têm motivos para reconhecer padrões desse tipo. Mas, em segundo lugar, também acontece que o senso de justiça é um prolongamento do amor pela humanidade. Já observei anteriormente, que a benevolência fica sem rumo quando os muitos objetos de seu amor se opõem uns aos outros. É necessário que os princípios da justiça a orientem. A diferença entre o senso de justiça e o amor pela humanidade é que este último é supererrogatório, indo além das exigências morais, e não invocando as isenções permitidas pelos princípios de obrigação e dever naturais. Porém, está claro que os objetos desses dois sentimentos estão intimamente ligados, sendo definidos em grande parte pela mesma concepção da justiça. Se um deles parece natural e inteligível, o mesmo acontece com o outro. Além disso, sentimentos de culpa e indignação são gerados pelos danos e privações injustificadamente causados aos outros por nós mesmos ou por terceiros, e nosso senso de justiça fica ofendido da mesma maneira. O conteúdo dos princípios da justiça explica esse fato. Finalmente, a interpretação kantiana desses princípios demonstra que, ao agirem de acordo com eles, os homens expressam a sua natureza de seres racionais livres e iguais. Como fazer isso constitui parte do seu bem, o senso de justiça tem como objetivo o seu bem-estar de uma forma ainda mais direta. Apoia as ordenações que possibilitam que todos expressem sua natureza comum. De fato, sem um senso de justiça comum ou coincidente, o civismo não pode existir. O desejo de agir de maneira justa não é, portanto, uma forma de obediência cega a princípios arbitrários sem relação com objetivos racionais.”


“Vale lembrar três elementos que entram na operação das leis psicológicas, ou seja, uma preocupação incondicional com o nosso próprio bem, uma consciência clara dos fundamentos dos preceitos e ideais morais (auxiliada por explicações e instruções, e pela possibilidade de oferecer justificativas precisas e convincentes), e o reconhecimento de que os que seguem esses preceitos e ideais, fazendo a sua parte nas ordenações sociais, não apenas aceitam essas normas, como também expressam, em sua vida e em seu caráter, formas de bem humano que inspiram a nossa admiração e estima. O senso de justiça resultante será tanto mais forte quanto mais esses três elementos forem realizados. O primeiro reaviva o senso de nosso próprio valor, fortalecendo nossa tendência a retribuir na mesma moeda, o segundo apresenta a concepção moral de modo que ela possa ser prontamente entendida, e o terceiro mostra a adesão a ela como algo atraente. Podemos supor, portanto, que a mais estável concepção da justiça é aquela que é evidente para o nosso entendimento, congruente com o nosso bem, e fundada não na abnegação, mas na afirmação do eu.”


“Na visão contratualista, as noções de autonomia e objetividade são compatíveis: não há antinomia entre a liberdade e a razão. Tanto a autonomia quanto a objetividade são caracterizadas de um modo consistente por uma referência à posição original. A ideia da situação inicial é central para toda a teoria, e outras noções básicas são definidas suas condições. Assim, agir de forma autônoma é agir segundo princípios que aceitaríamos na qualidade de seres racionais livres e iguais, e que devemos entender desse modo. Além disso, esses princípios são objetivos. São os princípios que gostaríamos que todos (inclusive nós mesmos) seguissem se assumíssemos juntos o ponto de vista geral adequado. A posição original define essa perspectiva, e as suas condições também incorporam as condições da objetividade: suas estipulações expressam as restrições impostas pelos argumentos, que nos forçam a considerar a escolha de princípios desembaraçados da singularidade das circunstâncias concretas em que nos encontramos. O véu de ignorância impede que modelemos nossa visão moral de acordo com nossos interesses e vínculos particulares. Não analisamos a ordem social a partir de nossa situação, mas assumimos um ponto de vista que todos podem adotar em pé de igualdade. Nesse sentido, consideramos nossa sociedade e nosso lugar dentro dela de forma objetiva: partilhamos com os outros um ponto de vista comum, e não fazemos nossos julgamentos assumindo um viés pessoal. Assim, nossos princípios e convicções morais são objetivos, na medida em que foram atingidos e testados através da adoção desse ponto de vista geral e através da avaliação dos argumentos a seu favor mediante as restrições expressas na concepção da posição original. As virtudes de julgamento, tais como a imparcialidade e a ponderação, são as qualidades máximas do intelecto e da sensibilidade que nos possibilitam o bom desempenho dessas tarefas.
Uma consequência de tentarmos ser objetivos, estruturando nossas concepções e juízos morais a partir de um ponto de vista partilhado, é a maior probabilidade de chegarmos a um acordo. De fato, em circunstâncias iguais, preferimos a descrição da situação inicial que introduz a maior convergência possível de opiniões. É em parte por esse motivo que aceitamos as restrições impostas por um ponto de vista comum, já que não é sensato esperar que nossas visões se alinhem quando são afetadas pelas contingências de nossas circunstâncias diversas.”


“A avaliação da autoestima como talvez o principal bem primário enfatizou a grande importância que damos ao modo como os outros nos consideram. Mas, em uma sociedade bem-organizada, a necessidade de status é satisfeita pelo reconhecimento público das instituições justas, juntamente com a vida interna plena e diversificada das várias comunidades de interesses, que as liberdades iguais possibilitam. A base da autoestima em uma sociedade justa não é, portanto, a renda dos indivíduos, mas a distribuição publicamente defendida de direitos e liberdades fundamentais. E, sendo essa distribuição igual, todos têm um status semelhante e garantido quando se reúnem para conduzir as questões comuns da sociedade num sentido mais amplo. Ninguém se sente inclinado a buscar, fora da afirmação constitucional da igualdade, outros meios políticos de garantir o seu status. Por outro lado, os homens também não estão dispostos a aceitar uma liberdade que fique aquém da igualdade. Em primeiro lugar, isso os colocaria em desvantagem e enfraqueceria a sua posição política. Também teria o efeito de estabelecer publicamente a sua inferioridade, definida pela estrutura básica da sociedade. Essa posição inferior na vida pública seria de fato humilhante, destruindo a autoestima. E assim, aceitando uma liberdade que não fosse igual, o indivíduo poderia perder dos dois lados. Isso tenderá a ser especialmente verdadeiro à medida que a sociedade se tornar mais justa, já que os direitos iguais e as atitudes públicas de respeito mútuo têm um lugar essencial, mantendo o equilíbrio político e garantindo aos cidadãos o seu próprio valor. Assim, enquanto as diferenças sociais e econômicas entre os vários setores da sociedade, entre os grupos que podemos considerar incomparáveis entre si, não tendem a gerar animosidades; as dificuldades resultantes da desigualdade cívica e política, e da discriminação étnica e cultural, não podem ser facilmente aceitas. Quando é a posição de cidadania igual que satisfaz a necessidade de status, a precedência das liberdades iguais é absolutamente necessária. Tendo sido escolhida uma concepção da justiça que visa à eliminação da importância das vantagens sociais e econômicas relativas como base para a autoconfiança dos homens, é essencial que a prioridade da liberdade seja solidamente mantida.
Em uma sociedade bem-ordenada, então, a autoestima é garantida pela afirmação pública do status de cidadania igual para todos; permite-se que distribuição de bens materiais tome seu próprio curso, de acordo com a justiça procedimental pura regulada por instituições básicas justas, que diminuem os limites das desigualdades, impedindo assim o surgimento da inveja desculpável.”


“O contraste entre uma teoria teleológica e a doutrina contratualista pode expressar-se da seguinte forma intuitiva: a primeira define o bem de forma pontual, por exemplo, como uma qualidade ou um atributo da experiência mais ou menos homogêneo, e o considera como uma grandeza extensiva, que deve ser maximizada em relação a alguma totalidade; ao passo que a segunda se move na direção oposta, identificando uma sequência de formas estruturais cada vez mais específicas de conduta correta, cada uma sendo abrangida pela forma anterior, e dessa maneira trabalhando a partir de uma estrutura geral para o todo até chegar a uma determinação cada vez mais definida de suas partes. O utilitarismo hedonista é o exemplo clássico do primeiro procedimento, e o ilustra com notável simplicidade. A justiça como equidade exemplifica a segunda possibilidade. Assim, a sequência de quatro estágios formula uma sequência de acordos e normas impositivas destinada a construir, em várias fases, uma estrutura hierárquica de princípios, padrões e regras, que, quando consistentemente aplicados e obedecidos, conduzem a uma constituição definida para a ação social.”


“Embora nossa decisão de preservar nosso sentimento de justiça possa ser racional, podemos no fim sofrer uma perda muito grande ou até mesmo ser arruinados por ela. Como já vimos, uma pessoa justa não se dispõe a fazer certas coisas, e portanto, face a circunstâncias malignas, ela pode decidir arriscar-se a morrer em vez de agir injustamente. Mas embora seja até verdade que, em nome da justiça, um homem pode perder a sua vida ao passo que outro continuaria vivendo, o homem justo procede, consideradas todas as circunstâncias, da forma que mais deseja; nesse sentido, ele não é derrotado pelo infortúnio cuja possibilidade já estava em suas previsões. A questão é semelhante à dos riscos do amor; de fato, dela constitui apenas um caso especial. Aqueles que se amam, ou que criam fortes vínculos com pessoas e formas de vida, ao mesmo tempo se tornam passíveis de ruína: o seu amor os transforma em reféns do infortúnio e da injustiça dos outros. Amigos e amantes correm grandes riscos para se ajudarem mutuamente; e os integrantes de uma família estão dispostos a fazer o mesmo. Essa disposição faz parte de seus afetos tanto quanto qualquer outra inclinação. Amando, nos tornamos vulneráveis: é impossível amar e, ao mesmo tempo, impunemente ponderar se devemos amar ou não. E os melhores amores não são os que ferem menos. Quando amamos, aceitamos os riscos do sofrimento e da perda. Em vista de nosso conhecimento genérico do curso provável da vida, não consideramos que esses riscos sejam tão grandes a ponto de nos fazerem parar de amar. Se ocorrerem maldades, elas serão objeto de nossa aversão, e resistiremos àqueles cujas maquinações as causaram. Se estamos amando, não lamentamos nosso amor. Ora, se essas características se verificam no amor, sendo o mundo como é, ou como muitas vezes é, então, a fortiori, elas também se verificarão nos amores de uma sociedade bem-organizada, e também no seu senso de justiça. Pois, em uma sociedade onde os outros são justos, o nosso amor nos expõe principalmente aos acidentes da natureza e às contingências das circunstâncias. E o mesmo se aplica ao sentimento de justiça que se liga a essas afeições. Tomando como ponto de referência a ponderação de motivos que nos leva a afirmar nosso amor, sendo as circunstâncias como são, parece que deveríamos estar prontos, a partir da maioridade, a manter nosso senso de justiça nas condições mais favoráveis de uma sociedade justa.”


“Portanto, a fim de realizarmos nossa natureza, não temos outra alternativa a não ser planejar a preservação de nosso senso de justiça como o fator determinante de nossos outros objetivos. Esse sentimento não se pode concretizar se estiver vinculado a alguma condição e se for ponderado em relação a outros objetivos apenas como mais um desejo entre outros. É um desejo de, acima de tudo, agir de certas maneiras, um esforço que traz em si sua própria prioridade. Outros objetivos podem ser alcançados através de um plano que permite um lugar para cada um deles, já que a sua satisfação é possível independentemente de seu lugar na ordenação. Mas o mesmo não acontece com o senso do justo e da justiça; e portanto agir de forma errada sempre tende a gerar sentimentos de culpa e vergonha, emoções causadas pelo fracasso de nossos sentimentos morais reguladores. Sem dúvida, isso não significa que a realização de nossa natureza como seres racionais e livres seja em si mesma uma questão de tudo ou nada. Ao contrário, a medida de nosso sucesso na expressão de nossa natureza depende da coerência de nossa conduta, que obedece ao nosso senso de justiça como um elemento definitivamente regulador. O que não podemos é expressar a nossa natureza seguindo um plano que considera o senso de justiça apenas como um desejo a ser ponderado em relação a outros. Pois esse sentimento revela o que a pessoa é, e comprometê-lo não é alcançar liberdade plena do eu, mas sim ceder às contingências e casualidades do mundo.”

Uma Teoria da Justiça (Parte II) – John Rawls

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-630-1
Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte I

“Podemos observar que o princípio da diferença dá algum peso às considerações preferidas pelo princípio da reparação. De acordo com este último princípio, desigualdades imerecidas exigem reparação; e como desigualdades de nascimento e de dotes naturais são imerecidas, elas devem ser de alguma forma compensadas. Assim, o princípio determina que a fim de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma genuína igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A ideia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade. Na aplicação desse princípio, maiores recursos devem ser gastos com a educação dos menos inteligentes, e não o contrário, pelo menos durante um certo tempo da vida, digamos, os primeiros anos de escola.
Ora, o princípio da reparação não foi, que eu saiba, proposto como o único critério de justiça, como único objetivo da ordem social. Ele é, tanto quanto os outros, plausível como um princípio prima facie, que deve ser colocado na balança juntamente com os outros. Por exemplo, devemos ponderá-lo em relação ao princípio da melhoria do padrão médio de vida, ou da promoção do bem comum. Mas quaisquer que sejam os outros princípios adotados, as reivindicações de reparação devem ser levadas em conta. Considera-se que esse princípio representa um dos elementos de nossa concepção da justiça. Mas o princípio da diferença certamente não é o princípio da reparação. Ele não exige que a sociedade tente contrabalançar as desvantagens como se fosse esperado de todos que competissem numa base equitativa em uma mesa corrida. Mas o princípio da diferença alocaria recursos na educação, por exemplo, a fim de melhorar as expectativas a longo prazo dos menos favorecidos. Se esse objetivo é atingido quando se dá mais atenção aos mais bem-dotados, é permissível fazê-lo; caso contrário, não. E, nessa tomada de decisão, o valor da educação não deveria ser avaliado apenas em termos de eficiência econômica e bem-estar social. O papel da educação é igualmente importante, se não mais importante ainda, no sentido de proporcionar a uma pessoa a possibilidade de apreciar a cultura de sua sociedade e de tomar parte em suas atividades, e desse modo proporcionar a cada indivíduo um sentimento de confiança seguro de seu valor próprio.
Assim, embora o princípio da justiça não seja igual ao princípio da reparação, ele de fato realiza pelo menos uma parte dos intentos deste último. Ele transforma os objetivos da estrutura básica de modo que o esquema global das instituições deixa de enfatizar a eficiência social e os valores tecnocráticos. O princípio da diferença representa, com efeito, um consenso em se considerar, em certos aspectos, a distribuição de talentos naturais como um bem comum, e em partilhar os maiores benefícios sociais e econômicos possibilitados pela complementaridade dessa distribuição. Os que foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes. Os naturalmente favorecidos não se devem beneficiar simplesmente porque são mais bem-dotados, mas apenas para cobrir os custos de treinamento e educação e para usar os seus dotes de maneiras que ajudem também os menos favorecidos. Ninguém merece a maior capacidade natural que tem, nem um ponto de partida mais favorável na sociedade. Mas, é claro, isso não é motivo para ignorar essas distinções, muito menos para eliminá-las. Em vez disso, a estrutura básica pode ser ordenada de modo que as contingências trabalhem para o bem dos menos favorecidos. Assim somos levados ao princípio da diferença se desejamos montar o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórias em troca.
Tendo em vista essas observações, podemos rejeitar o argumento de que a ordenação das instituições é sempre defeituosa porque a distribuição de talentos naturais e as contingências das circunstâncias sociais são injustas, e essa injustiça deve inevitavelmente transferir-se para as organizações humanas. Ocasionalmente, essa reflexão é apresentada como uma desculpa para se ignorar a injustiça, como se a recusa a concordar com a injustiça fosse o mesmo que a incapacidade de aceitar a morte. A distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos. As sociedades aristocráticas e de castas são injustas porque fazem dessas contingências a base de referência para o confinamento em classes sociais mais ou menos fechadas ou privilegiadas. A estrutura básica dessas sociedades incorpora a arbitrariedade encontrada na natureza. Mas não é necessário que os homens se resignem a essas contingências. O sistema social não é uma ordem imutável acima do controle humano, mas um padrão de ação humana. Na justiça como equidade os homens concordam em se valer dos acidentes da natureza ou das circunstâncias sociais, apenas quando disso resulta no benefício comum. Os dois princípios são um modo equitativo de se enfrentar a arbitrariedade da fortuna; e embora sem dúvida sejam imperfeitas em outros aspectos, as instituições que satisfazem esses princípios são justas. (...)
Dessa forma, não é correto que indivíduos com maiores dotes naturais, e com o caráter superior que tornou possível o seu desenvolvimento, tenham o direito a um esquema cooperativo que lhes possibilite obter ainda mais benefícios de maneiras que não contribuem para as vantagens dos outros. Não merecemos nosso lugar na distribuição de dotes inatos, assim como não merecemos nosso lugar inicial de partida na sociedade. Também é problemática a questão de saber se merecemos o caráter superior que nos possibilita fazer o esforço de cultivar nossas habilidades; pois esse caráter depende em grande parte de circunstâncias familiares e sociais felizes no início da vida, às quais não podemos alegar que temos direito. A noção de mérito não se aplica aqui. (...)
Um outro mérito do princípio da diferença é que ele fornece uma interpretação do princípio da fraternidade. Em comparação com a liberdade e a igualdade, a fraternidade tem ocupado um lugar menos importante na teoria democrática. Considera-se que ela é um conceito menos especificamente político, que não define em si mesmo nenhum dos direitos democráticos, mas que em vez disso expressa certas atitudes mentais e formas de conduta sem as quais perderíamos de vista os valores expressos por esses direitos. Ou então, o que está intimamente relacionado a isso, considera-se que a fraternidade representa uma certa igualdade de estima social manifesta em várias convenções sociais e na ausência de atitudes de deferência e subserviência. Não há dúvidas de que a fraternidade implica tais coisas, assim como um senso de amizade cívica e solidariedade social, mas, entendida desse modo, ela não expressa nenhuma exigência definida. Ainda temos de encontrar um princípio de justiça que se combine com a ideia subjacente. O princípio da diferença, entretanto, parece corresponder a um significado natural de fraternidade: ou seja, à ideia de não querer ter maiores vantagens, exceto quando isso traz benefícios para os outros que estão em pior situação. A família, em sua concepção ideal e muitas vezes na prática, é um lugar em que o princípio de maximização da soma de vantagens é rejeitado. Os membros de uma família geralmente não desejam ganhar a não ser que possam fazer isso de modos que promovam os interesses dos outros. Ora, querer agir segundo o princípio da diferença traz precisamente esse resultado. Aqueles que estão em melhor situação estão dispostos a receber seus objetivos mais elevados apenas dentro de um esquema no qual isso resulte em benefícios para os menos afortunados.
Algumas vezes se considera que o ideal de fraternidade envolve laços sentimentais que, entre membros da sociedade mais ampla, não seria realista esperar. E essa é certamente mais uma razão para que ele seja relativamente negligenciado na doutrina democrática. Muitos sentiram que esse ideal não tem um lugar próprio nas questões políticas. Mas se for interpretado como um princípio que incorpora as exigências do princípio da diferença, ele não é uma concepção impraticável. Parece de fato que as instituições e as políticas que com a maior segurança consideramos justas satisfazem as suas exigências, pelo menos no sentido de que as desigualdades permitidas por elas contribuem para o bem-estar dos menos favorecidos. Nessa interpretação, portanto, o princípio da fraternidade é um padrão perfeitamente factível. Uma vez que o aceitarmos, podemos associar as ideias tradicionais de liberdade, igualdade e fraternidade com a interpretação democrática dos dois princípios da justiça da seguinte maneira: a liberdade corresponde ao primeiro princípio, a igualdade à ideia de igualdade no primeiro princípio juntamente com a igualdade equitativa de oportunidades, e a fraternidade corresponde ao princípio da diferença. Desse modo encontramos um lugar para a concepção da fraternidade na interpretação democrática dos dois princípios, e percebemos que ela impõe uma exigência definida sobre a estrutura básica da sociedade. Os outros aspectos da fraternidade não devem ser esquecidos, mas o princípio da diferença expressa o seu significado fundamental do ponto de vista de justiça social.”


“Volto-me agora para um dos princípios que se aplicam aos indivíduos, o princípio de equidade. Tentarei usar esse princípio para explicar todas as exigências que são obrigações, e não deveres naturais. Esse princípio afirma que uma pessoa deve fazer a sua parte conforme definem as regras de uma instituição, quando duas condições são observadas: primeiro, que a instituição seja justa (ou equitativa), isto é, que ela satisfaça os dois princípios da justiça; e, segundo, que a pessoa tenha voluntariamente aceitado os benefícios da organização ou tenha aproveitado a vantagem das oportunidades que ela oferece para promover os seus interesses próprios. A ideia principal é a de que quando algumas pessoas se comprometem em uma empresa de cooperação mutuamente vantajosa de acordo com certas regras, e assim restringem sua liberdade do modo necessário a fim de produzir vantagens para todos, os que se submeteram a essas restrições têm o direito a uma atitude semelhante da parte dos que se beneficiaram com a sua submissão. Não devemos lucrar com os trabalhos cooperativos dos outros sem que tenhamos contribuído com nossa quota justa. Os dois princípios da justiça definem o que é uma quota justa no caso de instituições pertencentes à estrutura básica. Portanto, se essas organizações são justas, cada pessoa recebe uma quota justa quando todos (inclusive ela) fazem a sua parte.”


“As circunstâncias da justiça se verificam sempre que pessoas apresentam reivindicações conflitantes em relação à divisão das vantagens sociais em condições de escassez moderada. A não ser que essas circunstâncias existam, não há oportunidade para a virtude da justiça, exatamente como não haveria, na falta de ameaças de agressão à vida ou à integridade corporal, oportunidade para a coragem física.”


“Consideremos então o ponto de vista de uma pessoa qualquer na posição original. Essa pessoa não tem meios de obter vantagens especiais para si própria. Por outro lado, também não há fundamentos para que ela concorde com desvantagens especiais. Como não é razoável que ela espere mais do que uma parte igual na divisão dos bens sociais primários, e como também não é racional que ela concorde em obter menos, o sensato é reconhecer, como o primeiro passo, um princípio que exija uma distribuição igual. De fato, esse princípio é tão óbvio em vista da simetria das partes, que ocorreria imediatamente a qualquer pessoa. Assim, as partes começam com um princípio que exige liberdades básicas iguais para todos, bem como uma igualdade equitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da riqueza.
Mas, mesmo que defendamos a prioridade das liberdades básicas e da igualdade equitativa de oportunidades, não há motivos para que esse reconhecimento inicial seja definitivo. A sociedade deve levar em consideração a eficiência econômica e as exigências organizacionais e tecnológicas. Se existem desigualdades na renda e na riqueza, assim como diferenças na autoridade e nos graus de responsabilidade que atuam para melhorar a condição de todos, em relação ao ponto de referência da igualdade, por que não permiti-las? Podemos pensar que, ideal- mente, os indivíduos gostariam de servir uns aos outros. Mas, como se supõe que as partes são mutuamente desinteressadas, a sua aceitação dessas desigualdades econômicas e institucionais é apenas o reconhecimento das relações de oposição em que os homens se colocam dentro das circunstâncias da justiça. Eles não têm fundamentos para se queixar dos motivos uns dos outros. Assim, as partes discordariam da existência dessas diferenças apenas se ficassem frustradas simplesmente porque percebem ou sabem que os outros estão em melhor situação; mas suponho que elas decidem como quem não é motivado pela inveja. Assim, a estrutura básica permite essas desigualdades contanto que elas melhorem a situação de todos, inclusive a dos menos favorecidos, desde que elas sejam consistentes com a liberdade igual e com a igualdade equitativa de oportunidades. Devido ao fato de as partes começarem a partir de uma divisão igual de todos os bens sociais primários, aqueles que se beneficiam menos têm, por assim dizer, um poder de veto. Chegamos assim ao princípio da diferença. Tomando a igualdade como a base de comparação, aqueles que ganharam mais devem tê-lo feito em termos que são justificáveis aos olhos daqueles que ganharam o mínimo.”


“Embora em geral uma teoria ética possa certamente invocar fatos naturais, pode haver no entanto boas razões para incorporarmos convicções da justiça aos princípios básicos de um modo mais direto do que realmente possa ser exigido pela compreensão teoricamente plena das contingências do mundo.”


“Anteriormente, afirmei que um ponto forte a favor da uma concepção da justiça é que ela gera a sua própria sustentação. Quando se reconhece publicamente que a estrutura básica da sociedade satisfaz os seus princípios por um longo período de tempo, as pessoas sujeitas a essas ordenações tendem a desenvolver um desejo de agir de acordo com esses princípios e fazer a sua parte em instituições que lhes servem de modelo. Uma concepção da justiça é estável quando o reconhecimento geral de sua realização por parte do sistema social tende a fomentar o senso de justiça correspondente. Se isso de fato ocorre ou não depende, sem dúvida, das leis da psicologia moral e da disponibilidade dos motivos humanos. Podemos observar que o princípio da utilidade parece exigir uma identificação maior com os interesses dos outros do que os dois princípios da justiça. Assim, estes últimos serão uma concepção mais estável, na medida em que essa identificação é difícil de obter. Quando os dois princípios são satisfeitos, as liberdades básicas de cada pessoa são asseguradas, e há um senso definido pelo princípio da diferença, no qual todos se beneficiam da cooperação social. Portanto, podemos explicar a aceitação do sistema social e dos princípios que ele satisfaz pela lei psicológica segundo a qual as pessoas tendem a amar, defender e apoiar qualquer coisa que assegure o seu próprio bem. Uma vez que o bem de todos é defendido, todos adquirem tendência a apoiar o sistema.
Quando o princípio da utilidade é satisfeito, entretanto, não existe essa garantia de que todos se beneficiem. A obediência ao sistema social pode exigir que alguns, em especial os menos favorecidos, renunciem a benefícios em favor de um bem maior para todos. Assim, o sistema não será estável, a não ser que os que devem fazer sacrifícios tenham uma forte identificação com interesses mais amplos que os seus próprios. Mas não é fácil criar essa situação. Os sacrifícios em questão não são aqueles que se exigem em épocas de emergência social, quando todos ou alguns são obrigados a trabalhar pelo bem comum. Os princípios da justiça se aplicam à estrutura básica do sistema social e à determinação das expectativas de vida. O que o princípio da utilidade exige é justamente um sacrifício dessas expectativas. Mesmo quando somos menos afortunados, temos de aceitar as maiores vantagens dos outros como uma razão suficiente para termos expectativas mais baixas ao longo de toda a nossa vida. De fato, quando a sociedade é concebida como um sistema de cooperação destinado a promover bem de seus membros, parece inviável esperar que alguns cidadãos aceitem, com base em princípios políticos, perspectivas de vida ainda menores para que os outros se beneficiem. Fica evidente, então, o motivo que leva os utilitaristas a enfatizarem papel da compreensão no aperfeiçoamento moral e o lugar central da benevolência entre as virtudes morais. A sua concepção da justiça é ameaçada pela instabilidade, a não ser que a compreensão e a benevolência sejam ampla e intensamente cultivadas.”


“Além do mais, o reconhecimento público dos dois princípios da justiça confere uma sustentação mais forte à autoestima das pessoas, e esta, por sua vez, aumenta a eficácia da cooperação social. Os dois efeitos são motivos para que se concorde com a adoção desses princípios. É claramente racional que os homens assegurem sua autoestima. O senso de seu próprio valor é necessário para que eles persigam a sua concepção do bem com satisfação e tenham prazer em sua realização. A autoestima não é tanto uma parte de algum plano racional de vida, mas é o senso de que vale a pena realizar esse plano. Mas nossa autoestima geralmente depende do respeito dos outros. A não ser que sintamos que nossos esforços são respeitados por eles, nos é difícil, talvez impossível, manter a convicção de que vale a pena promover nossos objetivos. Assim, por esse motivo, as partes aceitariam o dever natural do respeito mútuo, que exige que as pessoas tratem umas as outras com civilidade e estejam dispostas a explicar os motivos de suas ações, especialmente quando as pretensões dos outros são rejeitadas. Além disso, podemos supor que aqueles que respeitam a si próprios têm muito mais probabilidades de respeitarem uns aos outros, e vice-versa. O desprezo por si próprio conduz ao desprezo pelos outros e ameaça o bem desses outros tanto quanto a inveja. A autoestima se autossustenta reciprocamente.
Assim, uma característica desejável de uma concepção da justiça é que ela expresse publicamente o respeito mútuo entre os homens. Desse modo, eles asseguram um senso de seu próprio valor. Ora, os dois princípios da justiça atingem esse objetivo. Pois, quando a sociedade segue esses princípios, o bem de todos é incluído em um sistema de benefício mútuo e essa afirmação pública, nas instituições, dos esforços de cada homem sustenta a autoestima de todos os homens. O estabelecimento da liberdade igual e a operação do princípio da diferença tendem a produzir esse efeito. Os dois princípios são equivalentes, como já observei, a um compromisso de se considerar a distribuição das habilidades naturais, sob certos aspectos, como um dom coletivo, de modo que os mais afortunados se possam beneficiar apenas de formas que ajudem os menos beneficiados. Organizando-se as desigualdades de modo que haja vantagens mútuas e abstendo-se da exploração das contingências do acaso natural e social dentro de uma estrutura de liberdades iguais, as pessoas expressam sua obrigação com o respeito umas pelas outras na própria constituição de sua sociedade. Desse modo, asseguram seu respeito a si próprios, como é racional que façam.
Um outro modo de colocar a questão é dizer que os princípios da justiça manifestam, na estrutura básica da sociedade, o desejo dos homens de tratar uns aos outros não apenas como meios, mas como finalidades em si mesmos. (...)
Considerar as pessoas como fins em si próprias na concepção básica da sociedade é concordar em abdicar dos ganhos que não contribuem para as expectativas de todos. Em contraste com isso, considerar as pessoas como meios é estar disposto a impor àqueles já menos favorecidos perspectivas ainda mais baixas de vida, em favor das expectativas mais altas de outros.”


“Sempre que uma sociedade decide maximizar a soma dos valores intrínsecos ou o saldo líquido de satisfação dos interesses, corre-se o risco de descobrir que a negação da liberdade para alguns se justifica em nome desse objetivo único. As liberdades de cidadania igual estão inseguras quando fundadas em princípios teleológicos. A argumentação a favor delas se apoia em cálculos tão precários quanto controversos, e em premissas incertas.
Além disso, nada se ganha dizendo que as pessoas têm um valor intrínseco igual, a menos que isso seja simplesmente uma maneira de usar os pressupostos clássicos como se fizessem parte do princípio de utilidade. Isto é, alguém aplica esse princípio como se essas hipóteses fossem verdadeiras. Tal procedimento tem certamente o mérito de reconhecer que depositamos mais confiança no princípio da liberdade igual do que na veracidade das premissas das quais uma visão perfeccionista ou utilitarista derivaria esse princípio. As razões para essa confiança, segundo o entendimento contratualista, estão no fato de que as liberdades têm um fundamento completamente diferente. Elas não são uma maneira de maximizar a soma dos valores intrínsecos ou de se atingir o maior saldo líquido de satisfação. A ideia de maximizar a soma de valores ajustando os direitos dos indivíduos não se apresenta. Em vez disso, esses direitos são atribuídos para satisfazer os princípios de cooperação que os cidadãos reconheceriam quando cada um estivesse representado de forma justa como uma pessoa ética. A concepção definida por esses princípios não é a de maximizar o que quer que seja, exceto no sentido vago de, tudo considerado, melhor satisfazer as exigências da justiça.
Podemos observar neste caso uma analogia com o método de comparações interpessoais de bem-estar. Essas comparações se fundam na lista dos bens primários que alguém pode razoavelmente esperar, entendendo-se por bens primários aqueles que supostamente todos querem. Essa é uma base de comparação com a qual todas as partes podem concordar para os propósitos da justiça social. Não exige estimativas sutis da capacidade humana de felicidade, muito menos do valor relativo de seus planos de vida. Não precisamos questionar a natureza do significado dessas noções; elas, porém, são impróprias para projetar instituições justas. De modo semelhante, as partes consentem com critérios reconhecidos publicamente para determinar o que constitui evidência de que sua liberdade igual está sendo utilizada de maneiras que ofendem o interesse comum na ordem pública e na liberdade de outros. Essas convicções de evidência são adotadas para a busca da justiça; não são concebidas para aplicar-se a todas as questões de significado e verdade. A extensão de sua validade na filosofia e na ciência é uma questão à parte.
O traço característico desses argumentos a favor da liberdade de consciência é que eles se baseiam unicamente numa concepção da justiça. A tolerância não se origina de necessidades práticas ou razões de Estado. A liberdade religiosa e moral decorre do princípio da liberdade igual; e supondo-se a prioridade desse princípio, a única razão para negar as liberdades iguais é a de evitar uma injustiça ou uma perda de liberdade ainda maior. Além disso, a argumentação não se apoia em nenhuma doutrina filosófica ou metafísica específica. Não pressupõe que todas as verdades possam ser estabelecidas mediante opiniões aceitas pelo senso comum; nem sustenta que tudo seja, em algum sentido, uma construção lógica derivada do que se pode observar ou provar através da investigação científica racional. O apelo, na verdade, se dirige ao senso comum, mas está estruturado de tal maneira que pode tornar desnecessárias maiores presunções. Por outro lado, a defesa da liberdade também não implica ceticismo em relação à filosofia ou indiferença religiosa. Talvez se possam apresentar argumentos a favor da liberdade de consciência que tenham uma ou mais dessas doutrinas como premissas. Isso não é motivo de surpresa, já que argumentos diferentes podem levar à mesma conclusão. Mas não precisamos prosseguir nessa questão. A defesa da liberdade é no mínimo tão forte como o mais forte de seus argumentos; os fracos e falaciosos é melhor esquecê-los. Aqueles que gostariam de negar a liberdade de consciência não podem justificar sua posição pela condenação do ceticismo em relação à filosofia e da indiferença religiosa, nem pelo apelo aos interesses sociais e questões de Estado. A limitação da liberdade só se justifica quando for necessária para a própria liberdade, para impedir uma incursão contra a liberdade que seria ainda pior.”


“Podemos partir da convicção de que um regime democrático pressupõe liberdade de expressão e de assembleia, e liberdade de consciência e de pensamento. Essas instituições não são apenas exigidas pelo primeiro princípio da justiça mas, como argumentava Mill, elas são necessárias para que os negócios políticos sejam conduzidos de maneira racional. Embora a racionalidade não seja garantida por essas ordenações, parece que em sua ausência o curso de ação mais razoável será fatalmente rejeitado, em prol de políticas sugeridas por interesses particulares. Para que o fórum público seja livre e aberto a todos, e permaneça em sessão contínua, todos devem poder participar dele. Todos os cidadãos devem ter os meios de informar-se sobre questões políticas. Deveriam ter condições de avaliar como certas propostas afetam seu bem-estar e quais políticas promovem sua concepção do bem público. Além disso, deveriam ter uma oportunidade equitativa de acrescentar à pauta propostas alternativas para a discussão política. As liberdades protegidas pelo princípio da participação perdem muito de seu valor sempre que os detentores de maiores recursos privados têm permissão de usar suas vantagens para controlar o curso do debate público. Pois, no fim, essas desigualdades possibilitarão que aqueles que estão em melhores condições exerçam uma influência maior sobre a evolução da legislação. Com o tempo, eles tendem a conquistar um peso preponderante na decisão de questões sociais, pelo menos no que se refere àqueles assuntos sobre os quais normalmente concordam, isto é, em relação àquilo que favorece suas circunstâncias privilegiadas.
Medidas compensatórias devem, portanto, ser tomadas a fim de se preservar o valor equitativo para todas as liberdades políticas iguais. Pode-se usar uma variedade de recursos. Por exemplo, numa sociedade que permite a propriedade privada dos meios de produção, a propriedade e a riqueza devem ser amplamente distribuídas e verbas públicas devem ser destinados regularmente a encorajar a livre discussão pública. Mais ainda, deve-se tornar os partidos políticos independentes dos interesses econômicos privados, destinando-lhes suficientes recursos provindos da arrecadação para desempenhar seu papel no sistema constitucional. (As subvenções partidárias podem, por exemplo, basear-se em alguma regra que leva em conta o número de votos recebidos em várias eleições recentes, ou em algo semelhante.) O que se requer é que os partidos políticos sejam autônomos no que diz respeito aos interesses privados, isto é, demandas não expressas no fórum público e não discutidas abertamente com referência a uma concepção do bem público. Se a sociedade não arcar com os custos de sua organização e se for necessário levantar fundos para os partidos entre os setores socioeconômicos mais favorecidos, as reivindicações desses grupos fatalmente receberão atenção excessiva. E a probabilidade de isso acontecer é ainda maior quando os membros menos favorecidos da sociedade, após serem efetivamente impedidos de exercer seu grau equitativo de influência devido à carência de bens, se fecham na apatia e no ressentimento.
Historicamente, um dos principais defeitos do governo constitucional tem sido a sua incapacidade de assegurar o valor equitativo da liberdade política. As medidas corretivas necessárias não têm sido tomadas; na verdade, parece que nunca foram consideradas seriamente. Disparidades na distribuição da propriedade e riqueza que em muito excedem o que é compatível com a liberdade política têm sido geralmente toleradas pelo sistema legal. Recursos públicos não têm sido empregados a fim de manter as instituições exigidas para garantir o valor equitativo da liberdade política. A falha reside essencialmente no fato de que o processo político democrático é, na melhor das hipóteses, uma rivalidade regulada; nem sequer teoricamente possui as propriedades desejáveis que a teoria dos preços atribui aos mercados realmente competitivos. Além disso, os efeitos das injustiças no âmbito do sistema político são mais graves e duradouros do que as imperfeições do mercado. O poder político rapidamente se acumula e se torna desigual; e, servindo-se do aparelho coercitivo do Estado e de suas leis, aqueles que conseguem a predominância podem muitas vezes garantir para si mesmos uma posição privilegiada. Assim, as desigualdades do sistema socioeconômico podem solapar qualquer igualdade política que possa ter existido em condições historicamente favoráveis. O sufrágio universal é um contrapeso insuficiente; pois, quando os partidos e as eleições são financiados não por fundos públicos mas por contribuições privadas, o fórum político fica tão condicionado pelos desejos dos interesses dominantes que as medidas básicas necessárias para estabelecer uma regra constitucional justa raramente são apresentadas de modo adequado.”


“Vemos então que, entendido corretamente, o desejo de agir com justiça deriva em parte do desejo de expressar, da maneira mais plena, o que somos ou podemos ser, isto é, seres racionais iguais e livres, com liberdade de escolha. É por essa razão, creio eu, que Kant fala da incapacidade de agir segundo a lei moral como sendo causa de vergonha e não de sentimentos de culpa. E isso é apropriado, uma vez que, para ele, agir injustamente é agir de uma maneira que não expressa a nossa natureza de seres racionais iguais e livres. Tais ações ferem, portanto, o nosso amor-próprio, o senso de nosso valor como pessoas, e a experiência dessa perda causa vergonha. Agimos como se pertencêssemos a uma categoria inferior, como se fôssemos criaturas cujos princípios básicos fossem determinados pelas contingências naturais. Aqueles que pensam na doutrina de Kant como uma doutrina da lei e da culpa fazem dele uma interpretação bastante equivocada. O principal objetivo de Kant é aprofundar e justificar a ideia de Rousseau de que liberdade é agir de acordo com a lei que nós estabelecemos para nós mesmos. E isso conduz não a uma moralidade de comando austero, mas sim a uma ética de autoestima e respeito mútuo.
A posição original pode, então, ser vista como uma interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, e do imperativo categórico, dentro da estrutura de uma teoria empírica. Os princípios que regulam o domínio dos objetivos são os que seriam escolhidos nessa posição, e a descrição dessa posição nos possibilita explicar em que sentido agir com base nesses princípios expressa a nossa natureza de pessoas racionais iguais e livres. Essas noções já não são puramente transcendentes e desprovidas de conexões explicáveis com a conduta humana, pois a concepção procedimental da posição original nos permite estabelecer esses vínculos.”

Uma Teoria da Justiça (Parte I) – John Rawls

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-630-1
Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 736
Sinopse: Segundo John Rawls, cada pessoa tem uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode anular. Por isso, numa sociedade justa, os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à barganha política ou ao cálculo de interesses sociais. Neste livro, o autor tenta dar conta dessas afirmações, que ele acredita expressarem nossas convicções intuitivas da primazia da justiça.

“Outra coisa que agora faria de modo diferente é distinguir com mais precisão a ideia de uma democracia da propriedade privada da ideia de estado do bem-estar social. Essas ideias são bastante diferentes, mas como ambas permitem a propriedade privada de patrimônios produtivos, podemos ser erroneamente levados a considerá-las como sendo essencialmente a mesma coisa. Uma diferença principal é que as instituições básicas da democracia da propriedade privada, com seu sistema de mercados competitivos (viáveis), tenta dispersar a posse de riqueza e capital, e desse modo impedir que uma pequena parte da sociedade controle a economia e, indiretamente, a própria vida política. A democracia da propriedade privada evita isso não pela redistribuição de renda em favor daqueles que têm menos ao fim de cada período, mas sim assegurando a posse amplamente difundida de ativos produtivos e capital humano (qualificações profissionais e habilitações técnicas) no início de cada período, tudo isso sobre uma base de liberdades básicas iguais e igualdade equitativa de oportunidades. A ideia não é simplesmente auxiliar aqueles que malogram devido a um acidente ou a uma falta de sorte (embora isso deva ser feito), mas sim colocar todos os cidadãos em posição de lidar com seus próprios problemas e tomar parte na cooperação social, tendo como sustentáculo o respeito mútuo sob condições apropriadamente iguais.
Notem-se aqui duas concepções muito diferentes do objetivo das instituições políticas através do tempo. Em um estado do bem-estar social, o objetivo é que ninguém fique abaixo de um padrão decente de vida, e que todos possam receber certas proteções contra acidentes e a má sorte, por exemplo, seguro-desemprego e assistência médica. A redistribuição de renda serve a esse propósito quando, ao fim de cada período, aqueles que precisam de assistência podem ser identificados. Esse sistema pode permitir grandes desigualdades hereditárias de riqueza que são incompatíveis com o valor equitativo das liberdades políticas, como também grandes disparidades de ganho que violam o princípio da diferença. Embora se esforce para assegurar a igualdade equitativa de oportunidades, o sistema é insuficiente, ou ainda ineficaz, dadas as disparidades de riqueza e a influência política por elas permitida.
Em contraste, em uma democracia da propriedade particular o objetivo é levar a cabo a ideia de sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo, entre os cidadãos como pessoas livres e iguais. Dessa forma, as instituições básicas devem desde o princípio conceder aos cidadãos em geral, e não apenas a uns poucos, os meios produtivos que lhes permitam ser membros totalmente cooperativos de uma sociedade. A ênfase recai sobre a crescente dispersão, ao longo do tempo, da propriedade de capitais e recursos, por intermédio de direito das sucessões, sobre a igualdade equitativa de oportunidades assegurada por provisões para a educação, treinamentos técnicos e coisas afins, e também sobre as instituições que dão sustentação ao valor equitativo das liberdades políticas. Para termos uma dimensão de toda a força do princípio da diferença, devemos considerá-lo no contexto da democracia da propriedade privada (ou de um regime liberal-socialista) e não no contexto de um estado do bem-estar social: trata-se de um princípio de reciprocidade, ou mutualidade, para a sociedade considerada como um sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais, de uma geração para a outra.
A menção de um regime liberal-socialista me obriga a acrescentar que a justiça como equidade não decide se os seus princípios são realizados com mais sucesso por alguma forma de democracia da propriedade privada ou por um regime liberal-socialista. Deixa-se a questão em aberto, para que seja resolvida pelas condições históricas, tradições, instituições e forças sociais de cada nação. Como uma concepção política, a justiça como equidade não inclui, portanto, nenhum direito natural de propriedade privada dos meios de produção (embora de fato inclua um direito de propriedade pessoal como necessário à independência e à integridade dos cidadãos), nem um direito natural à propriedade e à gestão de empresas pelos trabalhadores. Em vez disso, oferece uma concepção da justiça à luz da qual, dadas as circunstâncias particulares de uma nação, essas questões podem ser resolvidas de forma racional.”


“A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; de forma análoga, uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis.”


“O conceito de justiça se define pela atuação de seus princípios na atribuição de direitos e deveres e na definição da divisão apropriada de vantagens sociais.
A ideia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem regular todos os acordos subsequentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios da justiça eu chamarei de justiça como equidade.”


”Na justiça como equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. E entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção da justiça. Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. Eu até presumirei que as partes não conhecem suas concepções do bem ou suas propensões psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo. Pois dadas as circunstâncias da posição original, a simetria das relações mútuas, essa situação original é equitativa entre os indivíduos tomados como pessoas éticas, isto é, como seres racionais com objetivos próprios e capazes, na minha hipótese, de um senso de justiça. A posição original é, poderíamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcançados são equitativos. Isso explica a propriedade da frase “justiça como equidade”: ela transmite a ideia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é equitativa. A frase não significa que os conceitos de justiça e equidade sejam a mesma coisa, assim como a frase “poesia como metáfora” não significa que os conceitos de poesia e metáfora sejam a mesma coisa.
A justiça como equidade começa, como já disse, com uma das mais genéricas dentre todas as escolhas que as pessoas podem fazer em conjunto, especificamente, a escolha dos primeiros princípios de uma concepção da justiça que deve regular todas as subsequentes críticas e reformas das instituições. Depois de haver escolhido uma concepção de justiça, podemos supor que as pessoas deverão escolher uma constituição e uma legislatura para elaborar leis, e assim por diante, tudo em consonância com os princípios da justiça inicialmente acordados. Nossa situação social será justa se for tal que, por essa sequência de consensos hipotéticos, nos tivermos vinculado por um sistema de regras que a definem. Além disso, supondo que a posição original determine um conjunto de princípios (isto é, que uma concepção particular de justiça seja escolhida), será verdade que, quando as instituições sociais satisfazem esses princípios, os que participam podem afirmar que estão cooperando em termos com os quais eles concordariam se fossem pessoas livres e iguais cujas relações mútuas fossem equitativas. Todos poderiam considerar sua organização como correspondendo às condições que eles aceitariam numa situação inicial que incorpore restrições amplamente aceitas e razoáveis à escolha dos princípios. O reconhecimento geral desse fato forneceria a base para a aceitação pública dos princípios correspondentes da justiça. (...)
Uma vez que os princípios de justiça são considerados como consequências de um consenso original numa situação de igualdade, fica aberta a questão de se saber se o princípio da utilidade seria reconhecido. À primeira vista, parece pouco provável que pessoas que se veem como iguais, com direito a fazer exigências mútuas, concordariam com um princípio que pode exigir para alguns expectativas de vida inferiores, simplesmente por causa de uma soma maior de vantagens desfrutadas por outros. Uma vez que cada um busca proteger seus próprios interesses, sua capacidade de promover sua concepção do bem, ninguém tem razão para aceitar uma perda duradoura para si mesmo a fim de causar um saldo líquido maior de satisfação. Na ausência de impulsos benevolentes fortes e duráveis, um homem racional não aceitaria uma estrutura básica simplesmente porque ela maximizaria a soma algébrica de vantagens, independentemente dos efeitos permanentes que pudesse ter sobre seus interesses e direitos básicos. Assim, parece que o princípio da utilidade é incompatível com a concepção da cooperação social entre iguais para a vantagem mútua. Parece ser inconsistente com a ideia de reciprocidade implícita na noção de uma sociedade bem-ordenada.
Sustentarei, ao contrário, que as pessoas na situação inicial escolheriam dois princípios bastante diferentes: o primeiro exige a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos, enquanto o segundo afirma que desigualdades econômicas e sociais, por exemplo desigualdades de riqueza e autoridade, são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade. Esses princípios excluem instituições que se justificam com base no argumento de que as privações de alguns são compensadas por um bem maior do todo. Pode ser conveniente mas não é justo que alguns tenham menos para que outros possam prosperar. Mas não há injustiça nos benefícios maiores conseguidos por uns poucos desde que a situação dos menos afortunados seja com isso melhorada. A ideia intuitiva é a de que, pelo fato de o bem-estar de todos depender de um sistema de cooperação sem o qual ninguém pode ter uma vida satisfatória, a divisão de vantagens deveria acontecer de modo a suscitar a cooperação voluntária de todos os participantes, incluindo-se os menos bem situados.”


“Afigurou-se a muitos filósofos, e isso parece apoiar-se nas convicções do senso comum, que nós por princípio estabelecemos uma distinção entre as exigências da liberdade e do direito de um lado e, do outro lado, a desejabilidade do aumento do bem-estar social agregado, e que damos uma certa prioridade, quando não um peso absoluto, àquelas exigências. Cada membro da sociedade é visto como possuidor de uma inviolabilidade fundada na justiça, ou, como dizem alguns, no direito natural, que nem mesmo o bem-estar de todos os outros pode anular. A justiça nega que a perda da liberdade para alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. O raciocínio que equilibra os ganhos e as perdas de diferentes pessoas como se elas fossem uma pessoa só fica excluído. Portanto, numa sociedade justa as liberdades básicas são tomadas como pressupostos e os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais.
A justiça como equidade tenta explicar essas convicções do senso comum a respeito da prioridade da justiça, mostrando que são a consequência de princípios que seriam escolhidos na posição original. Esses entendimentos refletem as preferências racionais e a igualdade inicial das partes contratantes.”


“Na justiça como equidade não se tomam as tendências e inclinações dos homens como fatos admitidos, qualquer que seja a sua natureza, e depois se procura a melhor maneira de realizá-las. Pelo contrário, seus desejos e aspirações são restringidos desde o início pelos princípios de justiça que especificam os limites que os sistemas humanos de finalidades devem respeitar. Podemos expressar essa ideia dizendo que na justiça como equidade o conceito de justo precede o de bem. Um sistema social justo define o escopo no âmbito do qual os indivíduos devem desenvolver seus objetivos, e oferece uma estrutura de direitos e oportunidades e meios de satisfação pelos quais e dentro dos quais esses fins podem ser equitativamente perseguidos. A prioridade da justiça se explica, em parte, pela aceitação da ideia de que os interesses que exigem a violação da justiça não têm nenhum valor. Não tendo absolutamente nenhum mérito, eles não podem anular as reivindicações da justiça.”


“Normalmente, a teoria de uma instituição, assim como a de um jogo, toma as regras constitutivas como dadas e analisa o modo pelo qual o poder é distribuído, explicando como aqueles engajados nela provavelmente irão se valer de suas oportunidades. Ao projetar ou reformar as organizações sociais devemos, é claro, examinar os esquemas e táticas que ela permite, e as formas de comportamento que tende a encorajar. Idealmente, as regras devem ser fixadas de modo a fazer com que os homens sejam conduzidos por seus interesses predominantes a agir de modos que promovam fins sociais desejáveis. A conduta dos indivíduos, guiada por seus planos racionais, deve ser coordenada tanto quanto possível para atingir resultados que, embora não pretendidos ou talvez nem mesmo previstos por eles, sejam mesmo assim os melhores do ponto de vista da justiça social. Bentham pensa nessa coordenação como a identificação artificial de interesses; Adam Smith, como o trabalho da mão invisível. Esse é o objetivo do legislador ideal ao elaborar as leis, e o do moralista ao promover as suas reformas. Ainda assim, as estratégias e táticas seguidas pelos indivíduos, apesar de essenciais para a avaliação das instituições, não são parte dos sistemas públicos de regras que as definem.
Podemos também distinguir entre uma única regra (ou grupo de regras), uma instituição (ou uma parte maior dela) e a estrutura básica do sistema social como um todo. A razão para fazermos isso é que essa regra ou essas várias regras de uma ordenação podem ser injustas embora o sistema social como um todo não o seja. Não só existe a possibilidade de que regras e instituições isoladas não sejam em si mesmas suficientemente importantes, mas também a de que dentro de uma estrutura ou sistema social uma aparente injustiça compense uma outra. O todo é menos injusto do que seria se contivesse apenas uma das partes injustas. Além disso, é concebível que um sistema social possa ser injusto mesmo que nenhuma de suas instituições, tomadas separadamente, o seja: a injustiça é uma consequência do modo como elas se combinam em um único sistema. Uma instituição pode encorajar e aparentemente justificar expectativas que são negadas ou ignoradas por outra.”


“Apresentarei agora, de forma provisória, os dois princípios de justiça sobre os quais acredito que haveria um consenso na posição original.
A primeira formulação desses princípios é ainda um esboço. Na medida em que prosseguirmos, deverei considerar várias formulações e me aproximar passo a passo da elaboração final, que será feita bem mais tarde. Tal procedimento permite, creio eu, que a exposição se desenvolva de um modo natural. A primeira afirmação dos dois princípios é a seguinte:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.
Esses princípios se aplicam primeiramente à estrutura básica da sociedade, governam a atribuição de direitos e deveres e regulam as vantagens econômicas e sociais. A sua formulação pressupõe que, para os propósitos de uma teoria da justiça, a estrutura social seja considerada como tendo duas partes mais ou menos distintas, o primeiro princípio se aplicando a uma delas e o segundo princípio à outra. Assim distinguimos entre os aspectos do sistema social que definem e asseguram liberdades básicas iguais e os aspectos que especificam e estabelecem as desigualdades econômicas e sociais. É essencial observar que é possível determinar uma lista dessas liberdades. As mais importantes entre elas são a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito. Segundo o primeiro princípio, essas liberdades devem ser iguais.
Nessa primeira abordagem, o segundo princípio se aplica à distribuição de renda e riqueza e ao escopo das organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e de responsabilidade. Apesar de a distribuição de riqueza e renda não precisar ser igual, ela deve ser vantajosa para todos e, ao mesmo tempo, as posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos. Aplicamos o segundo princípio mantendo as posições abertas, e depois, dentro desse limite, organizando as desigualdades econômicas e sociais de modo que todos se beneficiem.
Esses princípios devem obedecer a uma ordenação serial, o primeiro antecedendo o segundo. Essa ordenação significa que as violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais. Essas liberdades têm um âmbito central de aplicação dentro do qual elas só podem ser limitadas ou comprometidas quando entram em conflito com outras liberdades básicas. Uma vez que podem ser limitadas quando se chocam umas com as outras, nenhuma dessas liberdades é absoluta; entretanto, elas são ajustadas de modo a formar um único sistema, que deve ser o mesmo para todos. É difícil, talvez impossível, fazer uma especificação completa dessas liberdades independentemente das circunstâncias particulares, sociais, econômicas e tecnológicas, de uma dada sociedade. A hipótese é de que a forma geral consiste numa lista que pode ser definida com exatidão suficiente para sustentar essa concepção de justiça. Sem dúvida, liberdades que não constam nessa lista, por exemplo, o direito a certos tipos de propriedade (digamos, os meios de produção), e a liberdade contratual como determina a doutrina do laissez-faire, não são básicas; portanto, não estão protegidas pela prioridade do primeiro princípio. Finalmente, em relação ao segundo princípio, a distribuição de renda e riqueza, e de posições de autoridade e responsabilidade, devem ser consistentes tanto com as liberdades básicas quanto com a igualdade de oportunidades. (...)
Os dois princípios são bastante específicos em seu conteúdo, e sua aceitação se apoia em certas suposições que tentarei ainda explicar e justificar. Por enquanto, devemos observar que esses princípios são um caso especial de uma concepção mais geral de justiça que pode ser expressa como segue:
Todos os valores sociais — liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da autoestima — devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos.
A injustiça, portanto, se constitui simplesmente de desigualdades que não beneficiam a todos. Sem dúvida, essa concepção é extremamente vaga e exige uma interpretação.
Como um primeiro passo, suponhamos que a estrutura básica da sociedade distribua certos bens primários, ou seja, coisas que todo homem racional presumivelmente quer. Esses bens em geral têm uma utilidade, não importam quais sejam os planos racionais de vida de uma pessoa. Para simplificar, suponhamos que os principais bens primários à disposição da sociedade sejam direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza. Esses são os bens primários sociais. Outros bens primários como a saúde e o vigor, a inteligência e a imaginação, são bens naturais; embora a sua posse seja influenciada pela estrutura básica, eles não estão sob seu controle de forma tão direta. Imaginemos, então, uma organização inicial hipotética na qual todos os bens primários sociais são distribuídos igualitariamente: todos têm direitos e deveres semelhantes, e a renda e a riqueza são partilhadas de modo imparcial. Esse estado de coisas fornece um ponto de referência para julgarmos melhorias. Se certas desigualdades de riqueza e diferenças de autoridade colocam todos em melhores condições do que nessa posição inicial hipotética, então elas estão de acordo com a concepção geral. Pelo menos teoricamente, é possível que, pela renúncia a algumas de suas liberdades fundamentais os homens sejam suficientemente compensados através dos ganhos econômicos e sociais resultantes. A concepção geral de justiça não impõe restrições quanto aos tipos de desigualdades permissíveis; apenas exige que a posição de todos seja melhorada. Não precisamos supor nada tão drástico como aceitar uma condição de escravidão. Imaginemos, em vez disso, que os homens pareçam dispostos a renunciar a certos direitos políticos quando as compensações econômicas forem significativas. É esse tipo de permuta que os dois princípios excluem; sendo organizados em ordem serial, eles não permitem permutas entre liberdades básicas e ganhos sociais e econômicos, a não ser em circunstâncias atenuantes. (...)
O princípio afirma que uma configuração é eficiente sempre que é impossível mudá-la de modo a fazer com que algumas pessoas (pelo menos uma) melhorem a sua situação sem que, ao mesmo tempo, outras pessoas (pelo menos uma) piorem a sua.”


“No sistema de liberdade natural a distribuição inicial é regulada pela organização implícita na concepção de carreiras abertas a talentos. Essa organização pressupõe uma base de liberdade igual (especificada pelo primeiro princípio) e uma economia de mercado livre. Ela exige uma igualdade formal de oportunidades, no sentido de que todos têm pelo menos os mesmos direitos legais de acesso a todas as posições sociais privilegiadas. Mas como não há esforço algum para preservar uma igualdade, ou similaridade, de condições sociais, a não ser na medida em que isso seja necessário para preservar as instituições básicas indispensáveis, a distribuição inicial de ativos para cada período de tempo é fortemente influenciada pelas contingências naturais e sociais. A distribuição existente de renda e riqueza, por exemplo, é o efeito cumulativo de distribuições anteriores de ativos naturais — ou seja, talentos e habilidades naturais — conforme eles foram desenvolvidos ou não, e a sua utilização foi favorecida ou desfavorecida ao longo do tempo por circunstâncias sociais e eventualidades fortuitas como pela eventualidade de acidentes ou da boa sorte. Intuitivamente, a mais óbvia injustiça do sistema de liberdade natural é que ele permite que a distribuição das porções seja influenciada por esses fatores tão arbitrários do ponto de vista ético.
O que chamarei de interpretação liberal* tenta corrigir isso acrescentando à exigência de carreiras abertas a talentos a condição adicional de uma equitativa igualdade. A ideia aqui é que as posições não devem estar abertas apenas de um modo formal, mas que todos devem ter uma oportunidade equitativa de atingi-las. À primeira vista, não fica claro o que isso significa, mas podemos dizer que aqueles com habilidades e talentos semelhantes devem ter chances semelhantes na vida. Mais especificamente, supondo que haja uma distribuição de dotes naturais, aqueles que estão no mesmo nível de talento e habilidade, e têm a mesma disposição para utilizá-los, devem ter as mesmas perspectivas de sucesso, independentemente de seu lugar inicial no sistema social. Em todos os setores da sociedade deveria haver, de forma geral, iguais perspectivas de cultura e realização para todos os que são dotados e motivados de forma semelhante. As expectativas daqueles com as mesmas habilidades e aspirações não devem ser afetadas por sua classe social.
A interpretação liberal dos dois princípios busca, então, mitigar a influência das contingências sociais e boa sorte espontânea sobre a distribuição das porções. Para atingir esse objetivo é necessário impor ao sistema social condições estruturais básicas adicionais. Devem ser estabelecidas adaptações do mercado livre dentro de uma estrutura de instituições políticas e legais que regule as tendências globais dos eventos econômicos e preserve as condições sociais necessárias para a igualdade equitativa de oportunidades. Os elementos dessa estrutura são bastante familiares, embora possa ser útil relembrar a importância de se evitarem acúmulos excessivos de propriedade e riqueza e de se manterem iguais oportunidades de educação para todos. As oportunidades de se atingir conhecimento cultural e qualificações não deveriam depender da posição de classe de uma pessoa, e assim o sistema escolar, seja público ou privado, deveria destinar-se a eliminar barreiras de classe.
Embora a concepção liberal pareça claramente preferível ao sistema de liberdade natural, intuitivamente ela ainda parece defeituosa. Em primeiro lugar, mesmo que funcione perfeitamente eliminando a influência das contingências sociais, ela ainda permite que a distribuição de renda e riqueza seja influenciada pela distribuição natural de habilidades e talentos. Dentro dos limites permitidos pelas organizações básicas, a distribuição das frações é decidida pelo resultado da loteria da natureza; e, de uma perspectiva ética, esse resultado é arbitrário. Não há mais motivos para permitir que a distribuição de renda e riqueza obedeça à distribuição de dotes naturais do que para aceitar que ela se acomode à casualidade histórica ou social. Além do mais, o princípio de oportunidades equitativas só pode ser realizado de maneira imperfeita, pelo menos enquanto existir algum tipo de estrutura familiar. A extensão do desenvolvimento e da função das capacidades naturais é afetada por todos os tipos de condições sociais e atitudes de classe. Mesmo a disposição de fazer um esforço, de tentar, e de ser assim merecedor, no sentido comum do termo, em si mesma depende de circunstâncias sociais e familiares felizes. Na prática, é impossível assegurar oportunidades iguais de realização e de cultura para os que receberam dotes semelhantes, e portanto talvez se prefira adotar um princípio que reconheça esse fato e também mitigue os efeitos arbitrários da própria loteria natural. O fato de a concepção liberal fracassar nesse ponto nos encoraja a buscar uma outra interpretação para os dois princípios da justiça.”
*: Faço um pequeno parêntese, para que não se confunda o liberalismo econômico com o político. Quando esta obra, oriunda da tradição anglo-saxônica, se refere à concepção liberal, ela aponta para o liberalismo político, que seria mais bem traduzido para nossa língua como progressista, referindo-se, portanto, ao campo da esquerda.
A palavra liberal deste livro se opõe à conservador – termos pouco usuais em nosso vocabulário político (que usaria expressões como socialdemocrata se opondo à neoliberal, por exemplo).


“A estrutura básica é o objeto primeiro da justiça. Sem dúvida, qualquer teoria ética reconhece a importância da estrutura básica como objeto da justiça, mas nem todas as teorias consideram essa importância do mesmo modo. Na justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para a vantagem de todos. A estrutura básica é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo a cada um certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O que uma pessoa faz depende do que as regras públicas determinam a respeito do que ela tem direito de fazer, e os direitos de uma pessoa dependem do que ela faz. Alcança-se a distribuição que resulta desses princípios honrando os direitos determinados pelo que as pessoas se comprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas.”