domingo, 30 de abril de 2017

Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano (Os Pensadores, Parte I) – Gottfried Wilhelm Leibniz

Editora: Nova Cultural
Tradução: Luiz João Baraúna
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 434
Sinopse: Nestes ensaios, publicados somente em 1765, Leibniz combate a teoria empirista de Locke, que considerava o intelecto como uma “tabula rasa” ou uma folha de papel em branco, a receber seu conteúdo da experiência sensível. Leibniz, ao contrário, retoma e reformula o inatismo. Os empiristas, segundo ele, teriam razão ao afirmar que ideias surgem do contato com o mundo sensível, mas errariam ao esquecer o papel do espírito. Por isso, Leibniz completa a fórmula de Locke – “nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pelos sentidos” – com o adendo: “a não ser o próprio intelecto”. E esclarece: “As ideias e as verdades estão inatas em nós como inclinações, disposições, hábitos ou virtualidade naturais, e não como ações, embora tais virtualidades sejam sempre acompanhadas de alguma ação, muitas vezes insensíveis, que lhes correspondem”.



“Não posso senão elogiar esta religiosidade modesta do nosso célebre autor, que reconhece que Deus pode ir além daquilo que possamos entender, e que pode haver mistérios inconcebíveis nos artigos da fé; entretanto, não gostaria que fôssemos obrigados a recorrer ao milagre no curso comum da natureza e a admitir poderes e operações absolutamente inexplicáveis. Do contrário, deixaremos excessiva liberdade aos maus filósofos, sob pretexto de tudo aquilo que Deus pode fazer com a sua onipotência; admitindo essas virtudes centrípetas ou essas atrações imediatas de longe, sem que seja possível torná-las inteligíveis, não vejo nada que impediria os nossos Escolásticos de afirmar que tudo se faz simplesmente pelas suas faculdades, e defender as suas “espécies” intencionais que vão dos objetos até nós e encontram meios de penetrar até a nossa alma. Se assim for, Omnia iam fient, fieri quae posse negabam. (Tudo aquilo cuja possibilidade eu negava, realizar-se-á).”


“Dentre todos os homens, as crianças, os iletrados e os selvagens são os que têm o espírito menos alterado e menos corrompido pelo costume e pela impressão das opiniões alheias.”


“– A ciência moral (além dos instintos, como o que nos faz abraçar a alegria e evitar a tristeza) é inata da mesma forma que o é a aritmética, pois ela depende também das demonstrações que a luz interna fornece. E, visto que as demonstrações não saltam imediatamente aos olhos, não é de admirar se os homens não se dão conta sempre imediatamente de tudo aquilo que têm em si, e não leem tão logo os caracteres da lei natural, que Deus, segundo São Paulo, gravou nos seus espíritos. Todavia, visto que a moral é mais importante do que a aritmética, Deus deu ao homem instintos que assinalam imediatamente e sem necessidade de raciocínios algo daquilo que a razão ordena. Da mesma forma, andamos segundo as leis da mecânica sem pensar nessas leis, e comemos, não somente porque isto nos é necessário, mas ainda – e mais ainda – porque isto nos dá prazer. Entretanto, esses instintos não levam à ação de maneira invencível; resistimos a eles pelas paixões, obscurecemo-los por preconceitos, alteramo-los por costumes contrários. Todavia, o mais das vezes concordamos com estes instintos da consciência, e seguimo-los mesmo quando são superados por impressões maiores. A parte maior e mais sadia do gênero humano dá testemunho desses princípios. Nisto concordam os orientais, os gregos, os romanos, a Bíblia e o Corão; a polícia dos maometanos costuma punir o que Baumgarten relata, e seria necessário ser tão abrutalhado como os selvagens americanos para aprovar os seus costumes, eivados de uma crueldade que ultrapassa a dos próprios animais. E, no entanto, estes mesmos silvícolas sentem bem o que é a justiça em outras ocasiões; e, embora não haja talvez nenhuma prática má que não seja permitida em algum lugar e em certas ocasiões, poucas há que não sejam condenadas o mais das vezes, e pela maioria dos homens. Ora, isto não aconteceu sem razão; e, não tendo acontecido só em virtude do raciocínio, deve ser atribuído em parte aos instintos naturais. Mesclou-se a isto o costume, a tradição, a disciplina, mas o instinto natural é responsável pelo fato de que o costume se inclinou na maioria dos casos para o lado bom das coisas. É ainda o natural que é responsável pelo fato de que a tradição da existência de Deus tenha chegado até nós. Ora, a natureza dá ao homem, e mesmo à maioria dos animais, uma afeição e doçura em relação aos membros da sua espécie. O próprio tigre parcit cognatis maculis (O animal poupa os seus): daí vem esta bela palavra de um jurisconsulto romano, quia inter omnes homines natura cognationem constituit, unde hominem homini insidiari nefas esse (Uma vez que a natureza instituiu um parentesco entre todos os homens, não é lícito a um homem atrair outro a uma cilada). Só existem praticamente as aranhas que fazem exceção a isto e se entrecomem, até ao ponto de a fêmea devorar o macho após ter desfrutado dele. Depois deste instinto geral de sociedade, que se pode denominar filantropia no homem, existem outros instintos particulares, como a afeição entre o macho e a fêmea, o amor que o pai e a mãe têm para com as crianças, que os gregos denominam storgén, e outras inclinações semelhantes, que constituem este direito natural, ou melhor, esta imagem de direito, a qual segundo os jurisconsultos romanos a natureza ensinou aos animais. No homem, sobretudo, existe certo cuidado da dignidade e da conveniência, que leva a ocultar as coisas que nos rebaixam, a cuidar do pudor, a ter repugnância pelos incestos, a sepultar os cadáveres, a não comer carne humana nem carne de animais vivos. Somos também levados a cuidar da nossa reputação, mesmo além da necessidade e da vida; a sentir os remorsos da consciência e a sentir esses laniatus et ictus, essas torturas e esses incômodos de que fala Tácito, na esteira de Platão; além do temor de um futuro e de um poder supremo, que também ocorrem com naturalidade. Em tudo isto existe realidade; no fundo, porém, essas impressões naturais, quaisquer que possam ser, são apenas auxílios para a razão e indícios da natureza. O costume, a educação, a tradição, a razão contribuem muito para isto, mas a própria natureza humana não deixa de exercer a sua parte. É verdade que sem a razão esses auxílios não seriam suficientes para dar uma certeza completa à moral. Não se negará que o homem é levado naturalmente, por exemplo, a afastar-se das coisas más, sob pretexto de que há pessoas que só têm prazer em falar de orgias; não se negará que existem outros até, cujo tipo de vida os obriga a lidar com os excrementos. Imagino que, no fundo, partilhais da minha opinião no que concerne a esses instintos naturais que inclinam à honestidade, embora talvez digais – como dissestes do instinto que nos inclina para a felicidade e a alegria – que tais impressões não constituem verdades inatas. Entretanto, já respondi que todo sentimento é a percepção de uma verdade, que o sentimento natural é a percepção de uma verdade inata (ainda que muitas vezes confusa, como o são as experiências dos sentidos externos; assim, podemos distinguir as verdades inatas da luz natural, que não contêm nada que não seja distintamente reconhecível), como o gênero deve ser distinguido da sua espécie, visto que as verdades inatas compreendem tanto os instintos como a luz natural.
– Isto seria considerar as coisas de maneira demasiado teórica. Acontece todos os dias que os homens agem contra o seu conhecimento, escondendo a si mesmos tais princípios quando voltam o espírito para outra direção e para seguir as suas paixões: se não fosse assim, não veríamos as pessoas comerem e beberem coisas que sabem causadoras de doença e até da morte. Não negligenciariam os seus negócios; não fariam o que nações inteiras fizeram sob certos aspectos.”


“Cumpre reconhecer que existem pontos importantes nos quais os bárbaros nos ultrapassam, sobretudo no que concerne ao vigor do corpo; quanto à própria alma, pode-se dizer que sob certos aspectos a sua moral prática é superior à nossa, pois não têm a avareza de acumular bens nem a ambição de dominar. Pode-se mesmo acrescentar que o contato com os cristãos os tornou piores em muitas coisas: ensinaram-lhes a bebedeira (dando-lhes aguardente), os juramentos, as blasfêmias e outros vícios que lhes eram pouco conhecidos. Existe entre nós mais bem e mais mal do que entre eles: um mau europeu é pior do que um mau selvagem, pois é refinado no mal. Todavia, nada impediria os homens de unir as vantagens que a natureza dá a esses povos com as que nos são dadas pela razão.”


“Muitas opiniões que passam por verdades não são outra coisa senão efeitos do costume e da credulidade.”


“Gostaria também que os homens se assemelhassem mais aos romanos que construíam belas obras públicas do que àquele rei vândalo ao qual a sua mãe recomendou que, não podendo esperar a glória de igualar essas grandes construções, procurasse destruí-las.”


“As verdadeiras potências nunca são meras possibilidades. Existe sempre nelas tendência e ação.”


“– Peca-se de alguma forma contra certos pensamentos espirituais, se os examinarmos com normas severas da verdade e do bom raciocínio.
– Esta observação é boa; é necessário que os pensamentos espirituais tenham algum fundamento, pelo menos aparente, na razão; todavia, não se deve esquadrinhá-los com demasiado escrúpulo, como não se deve olhar um quadro de muito perto.”


“Um louco universal carece de julgamento em quase todas as ocasiões. Todavia, a vivacidade da sua imaginação pode torná-lo agradável.”


“Não somente a presença de um mal atual, mas também o temor de um mal futuro pode tornar-nos tristes.”


“A liberdade de fato consiste ou no poder de fazer o que se quer, ou no poder de querer como se deve. Vós falais da liberdade de fazer: ela tem os seus graus e as suas variedades. Geralmente aquele que tem mais meios é mais livre de fazer o que quiser: todavia, entende-se a liberdade particularmente do uso das coisas que habitualmente estão em nosso poder e sobretudo do livre uso do nosso corpo. Desta forma a prisão e as doenças, que nos impedem de dar ao nosso corpo e aos nossos membros o movimento que queremos e que podemos ordinariamente dar-lhes, derrogam à nossa liberdade: assim, um prisioneiro não é livre, um paralítico não tem o livre uso dos seus membros. A liberdade de querer se toma em dois sentidos diferentes. Um deles ocorre quando opomos a liberdade à imperfeição ou à escravidão do espírito, que é uma coação ou um constrangimento, porém interno, como o que vem das paixões; o outro sentido se verifica quando opomos a liberdade à necessidade. No primeiro sentido, os Estoicos diziam que só o sábio é livre; com efeito, não temos o espírito livre quando ele é tomado por uma grande paixão, pois neste caso não podemos querer como é necessário, isto é, com a deliberação que se exige. Assim sendo, só Deus é perfeitamente livre, e os espíritos criados só o são na medida em que se sobrepõem às paixões: esta liberdade se relaciona propriamente com o nosso entendimento. Contudo, a liberdade do espírito, oposta à necessidade, se relaciona à vontade nua e enquanto se distingue do entendimento. É o que denominamos o livre-arbítrio, o qual consiste no fato de querermos que as razões ou impressões mais fortes que o entendimento apresenta à vontade não impeçam o ato da vontade de ser contingente e não lhe deem uma necessidade absoluta e, por assim dizer, metafísica. É neste sentido que costumo dizer que o entendimento pode determinar a vontade, segundo a prevalência das percepções e razões, de uma forma que, mesmo quando é certa e infalível, inclina sem obrigar.”


“– A meu juízo a questão não é saber se a vontade é livre (isto seria falar de maneira muito imprópria), mas se o homem é livre. Isso assentado, digo que, enquanto alguém pode, pela direção ou pela escolha do seu espírito, preferir a existência de uma ação à não existência desta ação e vice-versa, isto é, pode fazer com que ela exista ou que não exista segundo o quiser, até ali ele é livre.
– Quando refletimos sobre a liberdade da vontade ou sobre o livre-arbítrio, não perguntamos se o homem pode fazer o que quiser, mas se tem suficiente independência na sua própria vontade. Não perguntamos se tem as pernas livres, ou os cotovelos livres, mas se tem o espírito livre, e em que consiste tal liberdade. Sob este aspecto uma inteligência pode ser mais livre que a outra, e a Suprema Inteligência desfrutará de uma liberdade perfeita, liberdade da qual as criaturas são incapazes.”


“Os Areopagitas absolviam efetivamente aquele homem cujo processo haviam achado excessivamente difícil para ser decidido, adiando-o para bem longe e reservando-se cem anos para refletir.”


“Após uma pesquisa exata, vejo-me forçado a concluir que o bem maior, embora julgados e reconhecidos mortais, não determinam a vontade, a menos que, vindo a desejá-los de uma forma proporcionada à sua excelência, este desejo nos torne inquietos pelo fato de estarmos privados deles. Suponhamos que um homem esteja convencido da utilidade da virtude até o ponto de ver que ela é necessária a quem se propõe algo de grande neste mundo, ou espera ser feliz no outro; todavia, até que este homem não sinta fome e sede de justiça, a sua vontade não será jamais determinada para alguma ação que o leve à busca deste excelente bem, e alguma outra inquietação que sobrevenha arrastará a sua vontade a outras coisas. Por outra parte, suponhamos que um homem dado ao vinho considere que, levando a vida que leva, arruína a sua saúde e dissipa o seu bem, perderá a honra no mundo, atrairá para si enfermidades, e finalmente cairá na indigência, até o ponto de não ter com que satisfazer a esta paixão de beber, que o domina de forma tão intensa. Todavia, as inquietações que ressente continuamente, por estar ausente dos seus companheiros de bebida, o arrastam ao cabaré, nas horas em que costuma lá ir, embora tenha diante dos olhos a perda da sua saúde e do seu bem, e talvez até mesmo a perda da felicidade da outra vida: felicidade que não pode considerar um bem sem importância, pois reconhece ser muito mais excelente que o prazer de beber ou que o tagarelar vão de um grupo de desordeiros. Por conseguinte, não é por não ter diante dos olhos o bem supremo que ele persiste na desordem, visto que tem presente este bem supremo e lhe reconhece a excelência, a ponto de, nas horas vagas entre as bebedeiras, resolver entregar-se à busca deste bem supremo; todavia, quando a inquietação de ser privado do prazer habitual de beber o atormenta, o bem que reconhece mais excelente que a bebida não exerce mais força sobre seu espírito, e é essa inquietação atual que determina a sua vontade à ação à qual está habituado, e que por isso, fazendo maior impressão nele, prevalece na primeira ocasião, embora ali mesmo se comprometa por assim dizer com promessas secretas a não repetir a mesma coisa, e imagine que seja a última vez que agirá contra o seu maior interesse. Assim sendo, ele se vê reduzido a dizer, de tempos em tempos: Video meliora proboque, Deteriora sequor. “Vejo o melhor partido, aprovo-o, porém adoto o pior.” Esta sentença, que se reconhece como verdadeira, e que é absolutamente confirmada por uma experiência constante, se compreende facilmente por este caminho, não sendo talvez inteligível em outros sentidos.”


“FILALETO – (...) Essas precauções são tanto mais necessárias, pelo fato de que a ideia de um bem ausente não pode contrabalançar o sentimento de alguma inquietação ou de algum desprazer que atualmente nos atormenta, até que este bem excite algum desejo em nós. Quantas pessoas existem, às quais se costuma representar as alegrias indizíveis do paraíso por pinturas vivas que reconhecem como possíveis e prováveis, pessoas que, porém, se contentariam de bom grado com a felicidade de que desfrutam neste mundo. É que as inquietações dos seus desejos presentes, vindo a dominar e a dirigir-se rapidamente rumo aos prazeres desta vida, determinam as suas vontades a procurá-los; e durante todo esse tempo, são completamente insensíveis aos bens da outra vida.
TEÓFILO - Isso deriva em parte do fato de que os homens muitas vezes não estão persuadidos; embora o digam, uma incredulidade oculta reina no fundo da sua alma; pois jamais compreenderam as boas razões que comprovam esta imortalidade das almas, digna da justiça de Deus, que é o fundamento da verdadeira religião, ou então não se recordam mais de havê-las compreendido. Poucas pessoas concebem sequer que a vida futura, tal como a verdadeira religião e até a verdadeira razão a ensinam, seja possível; muito menos concebem a sua probabilidade, para não falar da sua certeza. Tudo o que pensam sobre ela não passa de psitacismo ou imagens grosseiras e vãs à la maometana, nas quais eles mesmos enxergam pouco atrativo: pois estão longe de serem estimulados por elas como o estavam – segundo se conta – os soldados do príncipe dos Assassinos, senhor da Montanha. Esses soldados eram transportados, quando estavam profundamente adormecidos, a um lugar repleto de delícias, onde, acreditando estarem no paraíso de Maomé, eram imbuídos, por anjos ou santos disfarçados, de opiniões tais como eram desejadas por esse príncipe. Dali eram, ao depois, reconduzidos ao lugar de onde tinham vindo; isso os estimulava depois a empreender tudo, até a morte dos príncipes inimigos do seu senhor. Não sei se não se fez injustiça a este senhor ou Sênior (Ancião) da Montanha; pois não assinalamos muitos grandes príncipes que ele fez assassinar, embora se possa ver nos historiadores ingleses a carta que se lhe atribui, para escusar o Rei Ricardo I do assassinato de um conde ou príncipe da Palestina, que este senhor da Montanha confessa ter feito matar, por ter sido ofendido por ele. Como quer que seja, a razão seja talvez porque, por um grande zelo pela sua religião, esse príncipe dos Assassinos queria dar às pessoas uma ideia vantajosa do paraíso, ideia que lhes acompanhasse sempre os pensamentos e os impedisse de serem surdos, sem pretender por isso que fossem obrigados a crer que tinham estado no próprio paraíso. Todavia, mesmo supondo que o príncipe tivesse pretendido isso, não se deve estranhar que tais fraudes piedosas tivessem produzido mais efeito do que a verdade maltratada. Entretanto, nada pode ser mais forte do que a verdade, se os homens procurassem conhecê-la bem e fazer-lhe valer os direitos; e haveria sem dúvida meios para conduzir os homens a isso. Quando penso, por menos que seja, de quanto é capaz a ambição e a avareza em todos os que se põem uma vez nesta conduta de vida, quase destituído de atrativos sensíveis e presentes, não desespero de nada, e penso que a virtude produziria infinitamente mais efeito, acompanhada que é de tantos bens sólidos, se alguma feliz revolução do gênero humano a colocasse um dia na moda. É certíssimo que poderíamos habituar os jovens a encontrarem no exercício da virtude o seu maior prazer. Mesmo os adultos poderiam criar para si leis e hábitos de segui-la, hábitos que os levariam a observá-las de maneira tão forte e com tanta inquietação, em caso de se desviarem delas, quanto um beberrão sentiria ao ser impedido de ir ao cabaré. Sinto-me bem à vontade para acrescentar estas considerações sobre a facilidade e até a facilidade de remediar os nossos males, para não contribuir a desencorajar os homens da busca dos verdadeiros bens, expondo apenas as nossas fraquezas.”


“A razão e a vontade nos conduzem à felicidade, ao passo que o sentimento e o apetite só nos levam ao prazer”.


“Também eu sou por esta determinação inteligível da vontade por aquilo que está na percepção e no entendimento. Querer e agir conforme ao último resultado de um exame sincero, é antes uma perfeição do que um defeito da nossa natureza. Não é isso que sufoca ou mitiga a liberdade; pelo contrário, é o que ela possui de mais perfeito e mais vantajoso. Quanto mais deixamos de nos determinar desta maneira, tanto mais nos aproximamos da miséria e da escravidão.”


“É verdade outrossim que honesto deriva o seu nome de honra (honor) ou louvor. Todavia, isso quer dizer, não que a virtude é aquilo que se louva, mas aquilo que é digno de louvor, e isso depende da verdade, não do julgamento dos homens”


“FILALETO – Tendo criado o homem para ser uma criatura sociável, Deus não só lhe inspirou o desejo e o colocou na necessidade de viver com os de sua espécie, mas outorgou-lhe igualmente a faculdade de falar, faculdade que deveria constituir o grande instrumento e o laço comum desta sociedade. É daí que provêm as palavras, as quais servem para representar, e até para explicar as ideias.
TEÓFILO – Alegro-me por constatar que estais longe da opinião do Sr. Hobbes, o qual não concordava com o princípio de que o homem foi feito para a sociedade. Segundo ele o homem é apenas forçado a viver em sociedade em virtude da necessidade e da malícia dos indivíduos da sua espécie. Todavia, o Sr. Hobbes não levava em conta que os melhores homens, isentos de qualquer maldade, se uniriam para melhor atingirem a sua finalidade, da mesma forma que os pássaros se juntam em bandos para melhor viajarem em companhia, da mesma forma que os castores se unem em centenas para construírem grandes diques, coisa que um número reduzido desses animais não lograria realizar; tais diques lhes são necessários para construir desta maneira reservatórios de água ou pequenos lagos, nos quais constroem as suas casas e pescam peixes de que se nutrem. É nisto que reside o fundamento da sociedade entre os animais, e não no medo que têm dos seus semelhantes, o qual não existe nos animais.”


“A linguagem das palavras foi formada e aperfeiçoada progressivamente por pessoas que vivem na simplicidade natural. Todavia, existem povos, por exemplo os chineses, que variam as suas palavras através dos tons e acentos, possuindo apenas um número reduzido de palavras. Em razão disto o célebre matemático e conhecedor de línguas Gólio acreditava que a língua dos chineses é artificial, isto é, inventada por um homem inteligente para estabelecer através das palavras um relacionamento entre muitas nações diferentes que habitavam esse grande país que chamamos China, embora tal língua possa estar hoje alterada, devido ao uso secular.”


“Os grandes, em sua maioria, em geral são excessivamente perturbados pelos prazeres da paz ou pelas preocupações da guerra para avaliarem as coisas que não os atingem de imediato.”


“O nosso conhecimento não vai além das nossas ideias, nem além da percepção da concordância ou discordância das mesmas. Todavia, não duvido de que o conhecimento humano poderia ir muito além, se os homens quisessem procurar com afinco os meios de aperfeiçoar a verdade, com uma completa liberdade de espírito e com toda a diligência e iniciativa que usam para colorir ou para sustentar a verdade, para defender um sistema ao qual aderiram, ou então, certas opiniões e interesses com os quais se comprometeram. Entretanto, ao final o nosso conhecimento não consegue jamais abarcar tudo aquilo que podemos desejar conhecer no tocante às ideias que possuímos.”


“Mostraram a Casaubon a sala de conferências na Sorbonne e lhe disseram: Eis o lugar onde se debateu durante tantos séculos. Ele respondeu: Que é que se concluiu desses debates?”


“Provérbios que estão em uso em todos os povos, via de regra não são outra coisa que máximas com as quais o público concordou.”


“FILALETO – Ora, se bem que a existência de Deus seja a verdade mais fácil de ser demonstrada pela razão, e embora a sua evidência iguale – se não me equivoco – à das demonstrações matemáticas, ela requer atenção. Basta refletir sobre nós mesmos e sobre a nossa própria existência indubitável. Assim, suponho que cada qual conhece que ele é algo que existe atualmente, e que assim existe um ser real. Se existe alguém que possa duvidar da sua própria existência, declaro que não é a ele que falo. Sabemos também, por um conhecimento de simples vista, que o puro nada não pode produzir um ser real. Daqui segue, com evidência matemática, que algo existiu desde toda a eternidade, visto que tudo aquilo que tem um início deve ter sido produzido por alguma outra coisa. Ora, todo ser que tem a sua existência de outro tem também dele tudo o que possui e todas as suas faculdades. Por conseguinte, a fonte eterna de todos os seres é também o princípio de todas as suas potências, de sorte que este ser eterno deve ser também todo-poderoso. Além disso, o homem encontra em si mesmo conhecimento. Logo, existe um ser inteligente. Ora, é impossível que uma coisa absolutamente destituída de conhecimento e de percepção produza um ser inteligente, e é contrário à ideia da matéria, privada de sentimento, produzir-se a si mesma. Consequentemente, a fonte das coisas é inteligente, e houve um ser inteligente desde toda a eternidade. Um ser eterno, muito poderoso e muito inteligente, é o que se denomina DEUS. Se houvesse alguém suficientemente irracional para supor que o homem é o único ser dotado de conhecimento e de sabedoria, e que teria sido formado por puro acaso, e que é este mesmo princípio cego e destituído de conhecimento que conduz todo o resto do universo, eu o advertiria a examinar a censura inteiramente sólida e cheia de ênfase de Cícero (De Legibus, livro 11). Certamente – diz ele – ninguém deveria ser tão totalmente orgulhoso para imaginar que existe dentro dele um entendimento e a razão, e que sem embargo não existe nenhuma inteligência que governe os céus e todo este vasto universo. Do que acabo de dizer segue claramente que possuímos um conhecimento mais certo de Deus do que qualquer outra coisa que exista fora de nós.
– Talvez venha a propósito insistir um pouco sobre esta questão: se um ser pensante pode provir de um ser não pensante e destituído totalmente de razão e conhecimento, tal como poderia ser a matéria. É até bastante evidente que uma parte da matéria é incapaz de produzir qualquer coisa por si mesma e de dar a si mesma movimento; por conseguinte, é necessário, ou que o seu movimento seja eterno, ou que ele lhe seja dado por um ser mais poderoso. Se este movimento fosse eterno, seria sempre incapaz de produzir conhecimento. Podeis dividi-la em tantas pequenas partes quantas quiserdes, como para espiritualizá-la; dai-lhe todas as formas e todos os movimentos que quiserdes, fazei dela um globo, um cubo, um prisma, um cilindro etc., cujo diâmetro não ultrapasse a milionésima parte de um gry, que corresponde a um décimo de uma linha, que é um décimo de uma polegada, a qual é um décimo de um pé filosófico, o qual é um terço de um pêndulo, do qual cada vibração na latitude de 45 graus é igual a um segundo de tempo, esta partícula de matéria, por menor que seja, não agirá de outra forma sobre outros corpos de uma espessura que lhe seja proporcional que os corpos que têm uma polegada ou um pé de diâmetro agem entre si. E podemos esperar com tanta razão produzir sentimento, pensamentos e conhecimento, juntando grandes partes de matéria de certa forma e de certo movimento quanto mediante as menores partes de matéria que existam no mundo. Estas últimas se chocam, se empurram, e resistem umas às outras justamente como as grandes, sendo isto o que podem fazer. Entretanto, se a matéria pudesse haurir de si mesma o sentimento, a percepção e o conhecimento, imediatamente e sem máquina, ou sem o auxílio das figuras e dos movimentos, neste caso deveria ser uma propriedade inseparável da matéria e de todas as suas partes. A isso se poderia acrescentar que, ainda que a ideia geral e específica que temos da matéria nos leve a falar dela como se fosse uma coisa única em número, sem embargo toda a matéria não é propriamente uma coisa individual, que existe como um ser material ou um corpo singular que conhecemos, ou que podemos conceber. Desse modo, se a matéria fosse o primeiro ser eterno pensante, não existiria um ser único eterno, infinito e pensante, mas um número infinito de seres eternos, infinitos, pensantes, que seriam independentes uns dos outros, e cujas forças seriam limitadas e os pensamentos diferentes, e que por conseguinte jamais poderiam produzir esta ordem, esta harmonia e esta beleza que apreciamos na natureza. Donde se infere necessariamente que este primeiro ser eterno não pode ser a matéria.”


“Pretender limitar o que Deus pode fazer àquilo que nós podemos compreender, equivale a atribuir uma extensão infinita à nossa compreensão, ou então, a fazer de Deus um ser finito.”

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