Editora: Domínio Público
Tradução: Líbero Rangel de Tarso
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 459
“Conhece-te a ti mesmo* é excelente preceito, mas
só a Deus é dado pô-lo em prática. Quem mais pode conhecer a própria essência?”
*: Esta inscrição acha-se gravada na fachada do
templo de Delfos.
“Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de
Moisés. O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura. Todos os
castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia a vida
vindoura, por que não expôs expressamente tão importante dogma? E se não a
conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam muitas personagens
ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os homens se reservava
o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina que eles não estavam
em condições de compreender quando no deserto.”
AMOR PRÓPRIO
Um mendigo dos arredores de Madri esmolava
nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão
infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo
dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as
costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a
vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não
suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um
faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e
deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe
davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos
espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. –
Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no
outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor
de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em
toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto.
Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é
o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação
da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos. E cumpre ocultá-lo.”
“Parece-me que Bayle devia antes examinar qual o
mais nocivo, se o fanatismo, se o ateísmo. O fanatismo é certamente mil vezes
mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária. O
ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça.”
“Como disse um autor conhecido, o catequista
anuncia Deus às crianças e Newton o demonstra aos sábios.”
“A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma
árvore que não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre da mesma
natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará de ser
carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo
o plasmaria a bel prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma
coisa? Não recebemos tudo? Experimentai animar o indolente de contínua
atividade, inspirar gosto à música a quem careça de gosto e de ouvido. Não
tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença.
Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos estereogravou a natureza.
Não há, porém, alterar-lhe a obra.
Direis a um criador: – O Sr. tem peixe demais nesse
viveiro; assim eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim
não dá, os animais emagrecerão.
Com isso deixa o nosso homem que as solhas lhe
comam metade das carpas, e os lobos metade dos carneiros. Os restantes
engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas
paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não
parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos que,
encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes colérico:
“Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.”
“Não suporto principalmente a demência das seitas.
De um lado vejo Lao Tsé concebido pela união do céu e da terra e cuja mãe o
carregou no ventre durante oitenta anos. Não tenho mais fé em sua doutrina do
aniquilamento e da renúncia universal que nos cabelos brancos com que nasceu ou
na vaca preta que montou para ir pregar sua doutrina. Não creio mais no deus
Fo, ainda que tenha tido por pai um elefante branco e prometa a vida eterna.”
“Um coração puro é o mais sublime dos templos, como
dizia o grande imperador Hiao.”
“Não há virtude que não ofereça seus riscos. Por
isso mesmo é belo abraçá-las.”
“O trabalho moderado é propiciador
de saúde do corpo e da alma.”
“Assim como não sabemos o que seja espírito,
ignoramos o que seja corpo. Percebemo-lhe apenas propriedades. Mas que é o ente
em que residem tais propriedades? Tudo é corpo, dizia Demócrito e Epicuro. Não
existem corpos, contravinham os discípulos de Zênon de Eléia.
Berkeley, bispo de Cloyne, foi o último que, por
cem sofismas capciosos, pretendeu provar que os corpos não existem. Eles não
têm, disse, nem cor, nem odor, nem calor. Tudo isso está em vossas sensações e
não nos objetos. O Sr. Berkeley podia ter-se poupado ao trabalho de demonstrar
semelhante verdade: conhecemo-la de sobejo. Mas daí passa à extensão, à
solidez, que são essências do corpo, e julga provar não haver extensão num
retalho de pano verde porque em verdade o pano não é verde. A sensação do verde
acha-se tão somente em vós: por conseguinte a impressão de extensão não está
também senão em vós. Após destruir a extensão, conclui que a solidez cai
consequentemente por si mesma, e que portanto nada existe além das nossas ideias.
De sorte que, segundo esse doutor, dez mil homens trucidados por dez mil balas
de canhão não passam em suma de dez mil apreensões da nossa alma.”
“Há muitos indivíduos que nasceram para raciocinar
mal, outros para não raciocinar e outros para perseguir os que raciocinam.”
“– E que Lhe pedes?
– Agradeço-Lhe os bens de que gozo e os males com
que lhe apraz provar-me. Abstenho-me porém de pedir-lhe seja o que for. Melhor
que nós sabe ele o que nos falta. Demais poderia dar-se que quando eu pedisse
bom tempo meu vizinho pedisse chuva.”
“— Julgo, – disse o brâmane – que não deve haver
sobre a terra senão pouquíssimas repúblicas. Raramente são os homens dignos de
se governar por si mesmos. Tal felicidade não deve pertencer senão a povos
pequenos, que se insulem em ilhas ou entre montanhas, como coelhos a se
esconderem dos carnívoros. Mas sempre acabam sendo descobertos e devorados.”
“Fanatismo é para a superstição o que o delírio é
para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões,
que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um
entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático.”
“Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo?
Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o
raio da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em
quase toda a terra.
Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se
em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima
apropriado a sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro.
Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o
ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada
e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs
e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante
virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves
e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo
em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de
nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo
de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte
que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas
medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se
não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o
homem ao homem – O verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco
importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é
servir um ao outro.”
“Quando cheguei, fui a Versalhes para alguns
negócios; vi passar uma bela mulher seguida de grande número de outras também
belíssimas. “Quem é essa mulher?” perguntei ao meu advogado no parlamento, que
viera comigo: pois tinha um processo no parlamento de Paris, em virtude dos
hábitos que adquiri nas Índias, e desejava ter constantemente meu advogado
comigo. “É a filha do rei, – disse ele: – é encantadora e caridosa; é uma
grande pena que, em caso algum, jamais possa ser rainha de França.
– Como, – disse-lhe eu – se tivéssemos a desgraça
de perder todos os seus parentes e príncipes de sangue (o que Deus não
permita!) ela não poderia herdar o reino de seu pai? – Não, – disse o advogado –
a lei sálica se opõe formalmente a isso. – E quem fez essa lei? – perguntei ao
advogado. – Nada sei a esse respeito, – disse ele; – mas costuma-se dizer que
um antiquíssimo povo chamado sálicos, que não sabiam ler nem escrever, tiveram
um tempo uma lei escrita a qual dizia que em terra sálica nenhuma filha podia
herdar; e essa lei foi adotada em terras não sálicas. – Pois eu – respondi –
casso-a por minha conta; afirmastes-me que essa princesa é encantadora e
caridosa; portanto ela teria um direito incontestável à coroa se a infelicidade
a tornasse única remanescente do sangue real: minha mãe herdou de seu pai e eu
quero que a princesa herde do seu”.
No dia seguinte o meu processo foi julgado numa das
câmaras do parlamento: perdi por unanimidade; explicou-me o meu advogado que eu
teria ganho também por unanimidade numa outra câmara. “Eis uma coisa bem cômica
– disse-lhe eu; – de modo que, cada câmara, cada lei. – Sim, – disse ele – há
vinte e cinco comentários sobre a lei municipal de Paris; isto é, provou-se
vinte e cinco vezes que a lei municipal de Paris está errada; e se houvesse
vinte e cinco câmaras de juízes haveria também vinte e cinco jurisprudências
diferentes. Temos, – continuou ele – a quinze léguas de Paris uma província
chamada Normandia, onde seríeis julgado de forma muito diferente daqui”.
Isto deu-me vontade de ver a Normandia. Para lá me
dirigi com um de meus irmãos. Encontramos no primeiro hotel um jovem que se
lamentava, desesperado; perguntando-lhe em qual a causa de sua desgraça,
respondeu-me que era ter um irmão mais velho.
— Em que consiste pois a grande desgraça de ter um
irmão mais velho? – perguntei-lhe; – meu irmão é mais velho do que eu e no
entanto vivemos muito bem juntos.
— Ah! senhor, – disse-me ele, – a lei aqui tudo
concede aos primogênitos sem nada deixar aos caçulas.
— Tendes razão – disse-lhe eu – de estar zangado;
em nossa cidade repartimos igualmente, e nem sempre os irmãos se estimam melhor
por isso.”
Essas pequenas aventuras proporcionaram-me belas e
profundas reflexões sobre as leis, e verifiquei serem elas como nossos trajes:
em Constantinopla fui obrigado a usar um dólman, em Paris um gibão.
Se todas as leis humanas são apenas convenções,
disse eu, o que vale é fazer-se um bom contrato. Os burgueses de Deli e Agra
dizem ter feito um péssimo contrato com Tamerlão; os burgueses de Londres
felicitam-se pelo ótimo ajuste que fizeram com o rei Guilherme de Orange.
Um cidadão de Londres dizia-me certo dia: “É a
necessidade que faz as leis, e a força as faz observar”. Perguntei-lhe se a
força não fazia também leis em algumas ocasiões, e se Guilherme, o Bastardo e o
Conquistador, não lhes havia dado ordens sem estabelecer contrato algum.
“Sim", – disse ele – “nesse tempo éramos uns bois; Guilherme nos colocou
uma canga e nos fez caminhar a golpes de aguilhão; depois nos transformamos em
homens, porém os cornos nos ficaram e com eles maltratamos todos os que
pretendem que trabalhemos para eles e não para nós mesmos”.
Tomado de todas estas reflexões comprazia-me em
pensar que existe uma lei natural, independente de todas as convenções humanas:
o fruto de meu trabalho deveria ser meu; devia honrar meu pai e minha mãe; não
tenho direito algum sobre a vida do meu próximo e meu próximo não o tem sobre a
minha, etc. (...)
Reuni os agricultores simples e tranquilos de um
lado a outro da terra; todos eles convirão em que deve ser permitido vender aos
vizinhos o excedente do seu trigo e que a lei contrária é inumana e absurda;
que as moedas representativas dos gêneros deverão ser tão puras como os frutos
da terra; que um pai de família deverá ser dono de sua casa; que a religião
deve reunir os homens a fim de os unir e não para fazer deles fanáticos e
perseguidores; que os que trabalham não devem ser privados dos frutos de seu
trabalho com o fim de alimentar a superstição e a ociosidade: eles farão numa
hora trinta leis desta espécie, todas úteis ao gênero humano.
Chegue porém Tamerlão e subjugue a Índia; então não
vereis senão leis arbitrárias. Uma asfixiará uma província para enriquecer um
rendeiro de Tamerlão; outra transformará num crime de lesa majestade o ter
falado mal da mulher do primeiro camarista de um raja; a terceira apoderar-se-á
da metade da colheita do agricultor, contestando-lhe o resto; enfim existirão
leis mediante as quais um bedel tártaro virá arrancar vossos filhos do berço,
fará do mais robusto um soldado e do mais fraco um eunuco, deixando o pai e a
mãe sem consolo.
Ora, que vale melhor ser: o cão de Tamerlão ou seu
súdito? É claro que a regalia do seu cão é muito superior.”
“Vossa vontade não é livre mas vossas ações o são.
Tendes a liberdade de fazer quando tendes o poder de fazer.
MAU
Vivem a gritar-nos que a natureza humana é
essencialmente perversa, que o homem nasceu mau e filho do diabo. Nada menos
ponderado: porque, meu amigo, tu que me dizes que toda gente nasceu perversa,
tu me advertes pois de que nasceste tal, que é preciso que eu desconfie de ti
como de uma raposa ou de um crocodilo. — Oh! nada disso! — dizes, — eu me
regenerei, não sou nem herege nem infiel, podeis fiar-vos em mim. — Mas o resto
do gênero humano, que é ou herege ou o que chamas infiel, não será pois um conjunto
de monstros? E todas as vezes que falares a um luterano ou a um turco deverás
estar certo de que te roubarão ou assassinarão: pois são filhos do diabo;
nasceram ruins; um nada tem de regenerado e o outro é degenerado. Seria muito
mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens: Nascestes bons; vede quão
afrontoso seria corromper a pureza do vosso ser. Seria de mister proceder com o
gênero humano como procedemos com os homens em particular. Se um cônego leva
uma vida escandalosa, nós lhe dizemos: “É possível que desonreis a dignidade de
cônego?” Faz-se lembrar a um magistrado que ele tem a honra de ser conselheiro
do rei e que deve dar o exemplo. Diz-se a um soldado a fim de encorajá-lo:
“Recorda que pertences ao regimento de
Champagne” Dever-se-ia dizer a todo indivíduo: “Lembra-te de dignidade de homem”.
E, com efeito, não obstante a possuirmos, temos
sempre necessidade dela: pois que quer dizer esta frase frequentemente
empregada em todos os povos, concentrai-vos em vós mesmos? Se houvésseis nascido
filho do diabo, se vossa origem fosse criminosa, se vosso sangue fosse composto
de um licor infernal, esta expressão concentrai-vos
em vós mesmos significaria: consultai, segui vossa natureza diabólica, sede
impostor, assassino, é a lei de vosso pai.
O homem não é ruim de nascimento; torna-se depois,
assim como adoece. Alguns médicos se lhe apresentam e dizem: “Nascestes já
doente.” Pile está perfeitamente certo de que esses médicos, por mais que
façam, não o curarão se sua doença é inerente a sua natureza; esses próprios
argumentadores são bem doentes.
Reuni todas as crianças do universo, e não vereis
nelas senão inocência, doçura e timidez; se houvessem nascido más, malfeitoras,
cruéis, mostrariam algum sinal, tal como as serpentezinhas procuram morder e os
tigrinhos arranhar.
Mas a natureza não concedeu ao homem mais armas
ofensivas do que aos coelhos e aos pássaros, não lhes pode dar um instinto que
os conduza à destruição.
Portanto o homem não é mau de nascimento. Por que
então existe tão grande número de infetados por essa peste da ruindade? É que
aqueles que os dirigem, sendo colhidos pela doença, comunicam-na ao resto dos
homens, como uma mulher atacada do mal que Cristóvão Colombo trouxe da América
espalha esse veneno de extremo a outro da Europa. O primeiro ambicioso
corrompeu a terra.
Ides dizer-me que esse primeiro monstro desenvolveu
o germe do orgulho, da rapina, da fraude, da crueldade, que existe em todos os
homens. Sei muito bem que em geral a maioria de nossos irmãos pode adquirir
esses defeitos; estará porém toda gente contaminada pela febre pútrida, pelos
cálculos renais, apenas por que todos estão expostos?
Existem nações inteiras completamente boas: os
filadélfios, os banianos nunca mataram pessoa alguma; os chineses, os povos de
Tonquim, de Lao, de Siam, do próprio Japão, durante várias centenas de anos não
conheceram a guerra. Apenas de dez em dez anos é possível ver um desses crimes
que comovem a natureza humana nas cidades de Roma, Veneza, Paris, Londres,
Amsterdã, cidades onde, de feito, a cupidez, mãe de todos os crimes, é extensa.
Se os homens fossem essencialmente maus, se
nascessem completamente submetidos a um ser tão malfeitor como infeliz, que
para se vingar de seus suplícios lhes inspirasse todos os seus furores,
ver-se-iam todas as manhãs maridos assassinados por suas mulheres e pais por
seus filhos, como podemos contemplar no alvorecer do dia frangos estrangulados
por uma doninha que lhes sugou o sangue.
Se houver um bilhão de homens sobre a terra será
muito; isto dá aproximadamente quinhentos milhões de mulheres que costuram, que
cozinham, que alimentam seus filhos, que tomam conta da casa ou cabana própria,
e que falam um certo mal de suas vizinhas. Não vejo que grande mal essas pobres
inocentes fazem sobre a terra. Sobre esse número de habitantes do globo há
duzentos milhões de crianças no mínimo, que com toda certeza não saqueiam nem
matam, e cerca de outro tanto de velhos e doentes que o não podem fazer.
Restarão quando muito cem milhões de jovens robustos e capazes de praticar o
crime. Desses cem milhões noventa estão continuamente ocupados em forçar a
terra, mercê de um trabalho prodigioso, a fim de que esta lhes dê alimentos e
roupas; esses não têm igualmente tempo para fazer o mal.
Nos dez milhões restantes estão compreendidos os
ociosos que prezam a boa companhia das mesas, que desejam viver doce e
tranquilamente, os homens de talento ocupados com suas profissões, os
magistrados, os padres, visivelmente interessados em levar uma vida pura, ao
menos na aparência. Como verdadeiros maus, portanto, apenas restarão alguns
políticos, amadores ou profissionais, e alguns milhares de vagabundos que lhes
alugam os seus serviços. Ora, impossível seria atuar um milhão de bestas ferozes
ao mesmo tempo; e nesse número estão incluídos os assaltantes das estradas
reais. Tendes, pois, quando muito, sobre a terra, nos tempos mais borrascosos,
um homem sobre mil a quem se pode chamar mau.
Há pois infinitamente menos mal sobre a terra do que
se diz e pensa. E é ainda muito, sem dúvida: assistimos a desgraças e crimes
horríveis; porém o prazer de se lamentar e exagerar é tão grande que à mínima
arranhadela seríeis capaz de bradar que a terra regurgita de sangue. Fostes
enganado, todos os homens são perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma
injustiça vê o universo coberto de danados, como um jovem voluptuoso ceando com
sua dama, ao sair da Ópera, não acredita na existência de infelizes.
“Pois bem, o que será melhor – que vossa pátria
seja um estado monárquico ou um estado republicano? Há quatro mil anos se
discute essa questão. Perguntai a solução aos ricos, eles preferem a
aristocracia; interrogai o povo, ele quer a democracia: apenas os reis preferem
a realeza. Como, portanto, é possível que quase toda a terra seja governada por
monarcas? Perguntai-o aos ratos que propuseram pendurar uma campainha no
pescoço do gato*. Mas, na verdade, a verdadeira razão é, como se disse, que os
homens são mui raramente dignos de se governar por si próprios.
É deplorável que quase sempre para ser bom patriota
deva-se ser inimigo do resto dos homens. O velho Catão, esse ótimo cidadão,
dizia sempre no senado:
“Tal é minha opinião, e que se arruine Cartago”.
Ser bom patriota é desejar que sua cidade se enriqueça pelo comércio e seja
poderosa pelas armas. É claro que um país não pode ganhar sem que outro perca e
que não pode vencer sem fazer desgraçados. Tal é, pois, a condição humana, que
desejar a grandeza do seu país é desejar mal aos seus vizinhos. Aquele que
pretendesse que a sua pátria não fosse jamais nem menor nem maior, nem mais
rica nem mais pobre, seria o cidadão do universo.”
*: La Fontaine, livro II, fábula II.
“Casaubon não podia aprovar a maneira por que Pedro
tratou o bom Ananias e Safira, sua mulher. Com que direito, diz Casaubon, um
judeu escravo dos romanos pende ordenar ou admitir que todos os que
acreditassem em Jesus deveriam vender suas herdades e trazer o resultado de sua
venda a seus pés? Se algum anabatista, em Londres ordenasse a mesma coisa a
seus irmãos, não seria preso como sedutor sedicioso, como ladrão que não se
deixaria de enviar a Tyburn? Não é horrível fazer Ananias morrer porque, tendo
vendido seus fundos e dado o dinheiro a Pedro, reteve para si e sua mulher
alguns escudos a fim de não morrer de fome? Apenas Ananias foi morto, sua
mulher chegou. Pedro, em vez de adverti-la caridosamente de que acabava de
matar seu marido de apoplexia por haver guardado alguns óbulos e de lha
recomendar que tomasse cuidado consigo própria, deixa-a cair numa armadilha.
Pergunta-lhe se seu marido deu todo seu dinheiro aos santos. A boa mulher
responde que sim e recebe morte instantânea. Isso é duro.
Conríngio pergunta por que Pedro, que matou assim
esses que lhe deram todos os seus bens, não mandou antes matar todos os
doutores que fizeram Jesus Cristo morrer e que o fustigaram a ele próprio mais
de uma vez? Ó Pedro! fazeis morrer dois cristãos que vos deram sua esmola e
deixais viver aqueles que crucificaram vosso Deus!
Por muito que pareça que Conríngio não estava em
país de inquisição ao fazer esses quesitos ousados. Erasmo, a propósito de
Pedro, acentuou uma coisa bem singular: que o chefe da religião cristã começou
seu apostolado por renegar Jesus Cristo, e que o primeiro pontífice dos judeus
começara seu ministério por construir um bezerro de ouro e adorá-lo.”
“Depois da nossa santa religião, que sem dúvida
alguma é a única boa, qual será a menos má?
Não seria a mais simples? Não seria aquela que
ensinasse muita moral e pouquíssimos dogmas? A que tendesse a tornar os homens
justos sem os tornar absurdos? A que não ordenasse absolutamente crer em coisas
impossíveis, contraditórias, injuriosas à Deidade e perniciosas ao gênero
humano, e que não ousasse ameaçar com as penas eternas os que tivessem o senso
comum? Não seria aquela que não sustentasse sua crença por intermédio de
tribunais nem inundasse a terra de sangue por causa de sofismas ininteligíveis?
Aquela que de um equívoco, um jogo de palavras e duas ou três cartas
sobrepostas não fizesse um soberano, e um Deus de um padre frequentemente
incestuoso, homicida e envenenador? A que não submetesse os reis a esse padre?
A que não ensinasse senão a adoração de um Deus, a justiça, a tolerância e a
humanidade?”
“Os tempos mais supersticiosos foram sempre os dos
crimes mais horríveis.”
“Que é a tolerância? É o apanágio da humanidade.
Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente
nossas tolices, é a primeira lei da natureza.”
“É claro que todo indivíduo que persegue um homem,
seu irmão, porque não é da sua mesma opinião, é um monstro.”