segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline

Editora: Companhia de bolso

ISBN: 978-85-359-1455-9

Tradução: Rosa Freire D’Aguiar

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 536

Sinopse: Obra-prima de Louis-Ferdinand Céline, romancista genial mas até hoje maldito, esse monumento da literatura do século XX denuncia com rara virulência o sofrimento de viver e a fragilidade da condição humana.

“O romance é pensado e realizado como um panorama do absurdo da vida, de suas crueldades, seus embates e suas mentiras, sem saída nem luz de esperança. Um suboficial atormentando os soldados antes de sucumbir junto com eles; uma ricaça americana que passeia sua futilidade pelos hotéis europeus; funcionários coloniais franceses animalizados pela cupidez; Nova York e sua indiferença automática pelos indivíduos sem dólares, sua arte de sugar os homens até o último centavo; de novo Paris: o mundinho mesquinho e invejoso dos eruditos, a morte lenta, humilde e resignada de um garotinho de sete anos; a tortura de uma menina; pequenos aposentados virtuosos que por economia matam a mãe; um padre de Paris e um padre dos confins da África dispostos, um e outro, a vender o próximo por algumas centenas de francos - um, aliado a aposentados civilizados, o outro, a canibais... De capítulo em capítulo, de página em página, fragmentos de vida se juntam num absurdo imundo, sangrento e digno de um pesadelo. Uma visão passiva do mundo com uma sensibilidade à flor da pele, sem desejo do futuro.” (Liev Trótski, 10 de maio de 1933).



“A raça, o que você chama de raça, não passa dessa grande corja de fodidos de minha espécie, catarrentos, pulguentos, espezinhados, que vieram parar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelas doenças e pelo frio, os vencidos dos quatro cantos do mundo. Não podiam ir mais longe por causa do mar. A França é isso e os franceses são isso.”

 

 

“O amor é o infinito posto ao alcance dos cachorrinhos.”

 

 

“Por toda a estrada e tão longe quanto se podia enxergar havia dois pontos pretos, no meio, feito nós, mas eram dois alemães empenhadíssimos em atirar, já fazia uns bons quinze minutos.

Ele, nosso coronel, vai ver que sabia por que que aquelas duas pessoas estavam atirando, os alemães vai ver que também sabiam, mas eu realmente não sabia. Tão longe quanto eu escavava na minha memória, nunca tinha feito nada contra os alemães. Sempre fui muito amável e bem-educado com eles. Eu os conhecia um pouco, os alemães, tinha até estado na escola na terra deles, quando era pequeno, nos arredores de Hanover. Tinha falado a língua deles. Eram então uma cambada de boboquinhas barulhentos, com olhos pálidos e furtivos como os dos lobos; íamos juntos bolinar as garotas depois da escola, nos bosques das redondezas, onde também atirávamos com balestra e pistola que comprávamos por quatro marcos. Bebíamos cerveja açucarada. Mas daí a, agora, nos atirarem nas fuças, sem nem virem conversar primeiro e bem no meio da estrada, havia uma distância, e até mesmo um abismo. Diferença demais.

A guerra em suma era tudo aquilo que a gente não compreendia. Isso não podia continuar.

Quer dizer que alguma coisa de extraordinário teria acontecido com aquelas pessoas? Que não teria acontecido comigo? Não devo ter percebido...

Meus sentimentos em relação a eles nunca haviam mudado nada. Eu tinha apesar de tudo vontade de tentar compreender a brutalidade deles, mas eu tinha ainda mais vontade de ir embora, tremendamente, imensamente, de tal forma tudo aquilo me parecia de repente como o resultado de um fantástico erro.”

 

 

“Na época eu era uma criança, ela me metia medo, a prisão. É que eu ainda não conhecia os homens.”

 

 

“Logo depois, pensei no segundo-sargento Barousse que acabava de explodir, conforme o outro nos informara. Era uma boa notícia. Antes isso! foi o que imaginei na mesma hora, assim: “É um canalha de menos no regimento!”. Ele quis que eu fosse julgado pelo Conselho por causa de uma lata de conserva. “Cada um com sua guerra!”, pensei com meus botões. Quanto a isso, é preciso reconhecer, de vez em quando ela parecia servir para alguma coisa, a guerra!”

 

 

“Quando não se tem imaginação, morrer não é nada; quando se tem, morrer é demais. É essa minha opinião. Nunca eu compreendera tantas coisas ao mesmo tempo.”

 

 

“No entanto, tínhamos de estar em algum lugar enquanto esperávamos pela manhã, em algum lugar na noite. Não podíamos evitar tudo. Desde essa época sei o que devem sentir os coelhos soltos no mato.”

 

 

“É difícil chegar ao essencial, mesmo no que diz respeito à guerra, a fantasia resiste muito tempo.

Os gatos ameaçados demais pelo fogo acabam mesmo é se jogando n’água.”

 

 

“A pé, os retardatários atrás da forja e do pão e prisioneiros nossos, deles também, algemados, condenados a isso, a aquilo, misturados, presos pelos pulsos ao estribo dos guardas, alguns para serem fuzilados amanhã, não mais tristes do que os outros. Também comiam, esses aí, suas rações daquele atum tão difícil de digerir (não daria tempo), à espera de que o comboio tornasse a partir, no acostamento da estrada – e o mesmo último pão com um civil acorrentado neles, que diziam ser um espião, e que não sabia de nada. Nós tampouco.

A tortura do regimento continuava então sob a forma noturna, às cegas pelas ruelas de calombos do vilarejo sem luz e sem rosto, curvando-se debaixo de sacos mais pesados do que homens, de uma granja desconhecida para outra, repreendidos, ameaçados, de uma à outra, abestalhados, positivamente sem esperança de acabarem de outra maneira senão sob ameaça, na bosta e com o horror de terem sido torturados, enganados até o sangue por uma horda de loucos depravados subitamente incapazes de outra coisa, já que ali estavam, a não ser matarem e serem retalhados sem saber por quê.”

 

 

“A maioria das pessoas só morre no último instante; outras começam e a isso se dedicam com vinte anos de antecedência e até mais. São os infelizes da terra.”

 

 

“Quanto a mim, eu não era dos mais ajuizados, não, mas me tornara bastante prático, porém, para ser irremediavelmente covarde. Eu devia dar, por causa dessa resolução, a impressão de grande calma. O fato é que inspirava, tal como era, uma confiança paradoxal a nosso capitão, o Ortolan em pessoa, que decidiu naquela noite me confiar uma missão delicada. Tratava-se, explicou-me confidencialmente, de ir trotando antes da aurora a Noirceur-sur-la-Lys, cidade de tecelões, situada a catorze quilômetros da aldeia onde estávamos acampados. Eu devia me certificar no próprio local sobre a presença do inimigo. A esse respeito, desde a manhã os enviados só conseguiam se contradizer. O general Des Entrayes andava impaciente. Por ocasião desse reconhecimento, permitiram-me escolher um cavalo entre os menos purulentos do pelotão. Fazia um bom tempo que eu não ficava sozinho. De repente, pareceu-me sair de viagem. Mas a libertação era fictícia.

Quando peguei a estrada, por causa do cansaço não consegui imaginar direito, por mais que tentasse, minha própria morte com suficientes pormenores e exatidão. Eu ia avançando de árvore em árvore, com minha barulheira de ferragens. Só o meu belo sabre equivalia, pelo latão, a um piano. Talvez eu inspirasse pena, mas seja como for certamente eu era grotesco.

Em que pensava afinal o general Des Entrayes me despachando assim para aquele silêncio, todo vestido de címbalos? Não em mim, obviamente.

Os astecas estripavam correntemente, segundo se conta, em seus templos do sol oitenta mil crentes por semana, oferecendo-os assim ao Deus das nuvens, a fim de que lhes mandasse a chuva. São coisas em que a gente custa a crer antes de ir para a guerra. Mas quando aí estamos, tudo se explica, tanto os astecas quanto seu desprezo pelo corpo alheio, é o mesmo que devia ter por minhas humildes tripas nosso general Céladon des Entrayes, supracitado, que se tornara por causa das promoções uma espécie de deus infalível, ele também uma espécie de pequeno sol de uma exigência atroz.

Só me restava um tiquinho de esperança, a de ser feito prisioneiro. Era minguada essa esperança, um fiapo. Um fiapo na noite, pois as circunstâncias não se prestavam nem um pouco às cortesias preliminares. Um tiro de fuzil chega mais depressa até você do que um gesto de tirar o chapéu numa hora dessas. Aliás, o que eu encontraria para lhe dizer a esse militar hostil por princípio, e vindo expressamente para me assassinar do outro lado da Europa?... Se ele vacilasse um segundo (que me bastaria), o que eu lhe diria?... E para início de conversa, quem seria ele de fato? Um caixeiro de loja? Um realistado profissional? Um coveiro, talvez? Na vida civil? Um cozinheiro?... Os cavalos, esses aí é que têm um bocado de sorte, pois se também sofrem com a guerra, feito nós, ninguém lhes pede para subscrevê-la, para darem a impressão de acreditar nela. Pobres mas livres cavalos! O entusiasmo, que desgraça! é só para nós, esse filho da puta!”

 

 

“As mães, ora enfermeiras, ora mártires, não se separavam mais de seus compridos véus escuros, nem tampouco do pequeno diploma que o ministro mandava lhes entregar a tempo pelo funcionário da Prefeitura. Em suma, as coisas se organizavam.

Nos enterros de luxo a gente também fica muito triste, mas mesmo assim pensa na herança, nas próximas férias, na viúva que é bonitinha e que é muito fogosa, dizem, e em ainda vivermos, nós mesmos, por contraste, muito tempo, em talvez não morrermos nunca... Quem sabe?

Quando acompanhamos o enterro todos nos cumprimentam tirando o chapéu. O que nos alegra. Numa hora dessas temos de nos comportar bem, fazer cara séria, não rir muito alto, nos alegrar apenas por dentro. Isso é permitido. Tudo é permitido por dentro.”

 

 

“Na época de que estou falando, todo mundo em Paris queria ter seu uniformezinho. Só havia mesmo os neutros e os espiões que não tinham um, e estes eram quase os mesmos. Lola tinha o seu uniforme oficial, e um de verdade, muito engraçadinho, realçado por cruzinhas vermelhas por todo lado, nas mangas, em seu quepinho de polícia, marotamente sempre colocado de banda sobre seus cabelos ondulados. Tinha vindo nos ajudar a salvar a França, conforme contava ao gerente do hotel, na medida de suas fracas forças, mas com todo o seu coração! Nos entendemos de cara, não porém de todo, porque os arroubos do coração haviam se tornado para mim tremendamente desagradáveis. Eu preferia os do corpo, mais simplesmente. É preciso desconfiar imensamente do coração, haviam me ensinado, e como!, na guerra. E eu não estava prestes a esquecer.

O coração de Lola era meigo, fraco e entusiasta. O corpo era agradável, muito amável, e tive de julgá-la em seu conjunto, tal como era. Era uma moça simpática, Lola, só que havia a guerra entre nós, essa desgraçada imensa fúria que impelia a metade dos humanos, amantes ou não, a enviar a outra metade para o matadouro. Então, isso atrapalhava as relações, necessariamente, uma mania dessas. Para mim, que esticava minha convalescença tanto quanto possível e que não fazia a menor questão de retomar meu turno no cemitério ardente das batalhas, o ridículo de nosso massacre me aparecia, barulhento, a cada passo que eu dava na cidade. Uma esperteza gigantesca espalhava-se por toda parte.

Entretanto, minhas chances de escapar eram poucas, eu não tinha nenhuma das relações indispensáveis para me safar da guerra. Só conhecia gente pobre, isto é, gente cuja morte não interessa a ninguém. Quanto a Lola, eu não devia contar com ela para me esconder. Enfermeira como era, não se podia imaginar, tirante talvez Ortolan, criatura mais combativa do que essa criança encantadora. Antes de ter eu cruzado a mixórdia lamacenta dos heroísmos, seu jeitinho Joana d’Arc talvez me tivesse excitado, convertido, mas agora, desde meu alistamento da praça Clichy, eu me tornara fobicamente rebarbativo diante de qualquer heroísmo verbal ou real. Estava curado, bem curado.”

 

 

“A França tinha seu lugar em nossas conversas. Para Lola, a França permanecia uma espécie de entidade cavalheiresca, de contornos pouco nítidos no espaço e no tempo, mas naquele momento perigosamente ferida e, por causa disso mesmo, muito excitante. Quanto a mim, quando me falavam da França, eu pensava de maneira irresistível em minhas tripas, então, era inevitável, mostrava-me muito mais reservado no que dizia respeito ao entusiasmo. Cada um com seu terror. Entretanto, sendo ela condescendente no sexo, eu a escutava sem jamais contradizê-la. Mas em matéria de alma, não a contentava nem um pouco. Era todo vibrante, todo radiante que ela gostaria que eu fosse e eu, de meu lado, não via de jeito nenhum por que deveria ficar naquele estado, sublime, ao contrário eu enxergava mil razões, todas irrefutáveis, para ficar de humor exatamente contrário.

Lola afinal apenas divagava sobre a felicidade e o otimismo, como todas as pessoas que estão do lado certo da vida, este dos privilégios, da saúde, da segurança, e que ainda têm muito tempo para viver.”

 

 

“Minha conclusão era que os alemães podiam chegar aqui, massacrar, devastar, incendiar tudo, o hotel, os sonhos, Lola, as Tulherias, os ministros, seus amiguinhos, a Academia Francesa, o Louvre, os Grandes Magazines, despencar sobre a cidade, aprontar um bafafá dos diabos, o fogo do inferno nessa baderna pútrida à qual já não se podia realmente acrescentar nada de mais sórdido, e que eu, eu não tinha porém de verdade nada a perder, nada, e tudo a ganhar. Não se perde muita coisa quando pega fogo a casa do proprietário. Sempre virá um outro, se é que não é sempre o mesmo, alemão ou francês, ou inglês ou chinês, para trazer, é ou não é, seu recibo do aluguel quando se apresentar a ocasião... Em marcos ou francos? Já que é preciso pagar...”

 

 

“Mentir, foder, morrer. Acabava de ser proibido realizar outra coisa. Mentia-se com uma fúria além do imaginário, muito além do ridículo e do absurdo, nos jornais, nos cartazes, a pé, a cavalo, de carro. Todo mundo se pôs a mentir. Cada um mentia mais enormemente do que o outro. Em breve, não houve mais verdade na cidade.

O pouco que dela se encontrava em 1914 era, agora, de dar vergonha. Tudo o que se tocava era adulterado, o açúcar, os aviões, os chinelos, as geleias, as fotografias; tudo o que se lia, engolia, chupava, admirava, proclamava, refutava, defendia, tudo isso não passava de fantasmas execráveis, falsificações e farsas. Os próprios traidores eram falsos. O delírio de mentir e de acreditar se pega como a sarna.”

 

 

“Quem demonstra um belo atrevimento não precisa de mais nada, quase tudo passa a ser permitido para você, absolutamente tudo, temos a maioria a nosso favor e é a maioria que decreta o que é loucura e o que não é.”

 

 

“Adubar os sulcos do lavrador anônimo é o verdadeiro futuro do verdadeiro soldado!”

 

 

“O amor é como o álcool, quanto mais somos fracos e bêbados, mais nos acreditamos fortes e espertos, e convencidos de nossos direitos.”

 

 

“Perdemos a maior parte de nossa juventude por conta das inabilidades. Saltava aos olhos que ela ia me abandonar, minha bem-amada, de vez e em breve. Eu ainda não havia aprendido que existem duas humanidades muito diferentes, a dos ricos e a dos pobres. Precisei, como tantos outros, de vinte anos e da guerra para aprender a me manter na minha categoria, para perguntar o preço das coisas e dos seres antes de tocá-los, e em especial antes de desejá-los.”

 

 

“Existem para o pobre neste mundo duas grandes maneiras de morrer, seja pela indiferença absoluta de seus semelhantes em tempos de paz, seja pela paixão homicida dos mesmos quando chega a guerra. Se se põem a pensar em você, é na sua tortura que pensam logo, os outros, e só nisso. Não os interessamos a não ser sangrando, a esses canalhas!”

 

 

“É verdade que também nada parece mais idiota e irrita mais do que um espectador inerte que sobe ao palco por acaso. Quem está ali em cima, é ou não é?, precisa encontrar o tom, animar-se, representar, se decidir ou então cair fora. As mulheres sobretudo é que exigiam espetáculos e eram implacáveis, as filhas da puta, com os amadores desajeitados. A guerra, é inconteste, mexe com os ovários, elas exigiam heróis, e os que não tinham nada de herói deviam se apresentar como tais ou se prepararem para suportar o destino mais ignominioso.”

 

 

“Quando o ódio dos homens não comporta nenhum risco, a tolice deles deixa-se rapidamente convencer, os motivos surgem sozinhos.”

 

 

“Enquanto o militar não mata, é uma criança. É fácil diverti-lo. Não tendo o costume de pensar, basta você conversar com ele para que seja obrigado, a fim de tentar compreendê-lo, a fazer exaustivos esforços.”

 

 

“Não há vaidade inteligente. É um instinto. Tampouco há homem que não seja antes de mais nada um vaidoso.”

 

 

“A verga acaba por cansar quem a maneja, ao passo que a esperança de se tornarem poderosos e ricos, com a qual os brancos se empanturram, isso não custa nada, rigorosamente nada. Que não nos venham mais louvar o Egito e os tiranos tártaros! Eles não passavam, esses antigos amadores, de pequenos vigaristas pretensiosos na arte suprema de arrancar do animal vertical seu mais belo esforço no batente. Não sabiam, esses primitivos, chamá-lo de “senhor”, o escravo, e fazê-lo votar de vez em quando, nem lhe pagar o jornal, nem sobretudo levá-lo à guerra, para que passassem suas paixões. Um cristão de vinte séculos, e eu sei do que estou falando, já não se contém quando à sua frente calha de passar um regimento. Isso lhe faz brotar ideias demais.”

 

 

“Em alguns dias fiquei sabendo de poucas e boas a respeito do meu próprio diretor! A respeito de seu passado repleto de mais crapulices do que uma prisão de porto de guerra. Descobria-se de tudo no seu passado e inclusive, suponho, magníficos erros judiciários. É verdade que já a cara depunha contra ele, inegável, angustiante figura de assassino, ou melhor, para não acusar ninguém, de homem imprudente, imensamente apressado em se realizar, o que dá no mesmo.”

 

 

“Era por sinal boa pessoa, Alcide, prestativo e generoso e tudo. Compreendi-o mais tarde, um pouco tarde demais. Sua formidável resignação o oprimia, essa qualidade de base que torna os pobres coitados do exército ou de outro lugar tão fáceis de serem mortos quanto de ficarem vivos. Nunca, ou quase nunca, perguntam o porquê, os humildes, de tudo o que suportam. Odeiam-se uns aos outros, isso basta.”

 

 

“Minha mãe, da França, me encorajava a cuidar de minha saúde, como na guerra. Debaixo da lâmina da guilhotina, minha mãe me teria repreendido por eu ter me esquecido do lenço.”

 

 

“Ter confiança nos homens já é se deixar matar um pouco.”

 

 

“Como se eu soubesse aonde ia, dei a impressão de desviar mais uma vez e mudei de caminho, peguei à minha direita uma outra rua, mais bem iluminada, broadway que ela se chamava. O nome eu li numa placa.

Era igual a uma chaga triste a rua que não acabava mais, conosco no fundo, nós, de uma calçada a outra, de um sofrimento a outro, rumo ao fim que nunca se enxerga, o fim de todas as ruas do mundo.

Os carros não passavam, só gente e ainda mais gente.

Era o bairro precioso, foi o que me explicaram mais tarde, o bairro para o ouro: Manhattan. Só se entra ali a pé, que nem na igreja. É o coração propriamente dito em matéria de Banco no mundo de hoje. Mas tem gente que cospe no chão passando por ali. Tem que ser muito descarado.

É um bairro que está abarrotado de ouro, um verdadeiro milagre, e a gente pode até escutá-lo, o milagre, pelas portas com seu barulho de dólares que são amassados, ele sempre muito leve, o Dólar, um verdadeiro Espírito Santo, mais precioso do que sangue.

Tive tempo de ir vê-los e inclusive entrei para falar com eles, com esses funcionários que guardavam as espécies. São tristes e mal pagos.

Quando os fiéis entram no seu Banco, não se pense que podem ir se servindo assim, não, segundo seus caprichos. De jeito nenhum. Falam com Dólar murmurando-lhe coisas através de uma gradezinha, quer dizer, se confessam. Nada de muito barulho, abajures bem suaves, um guichê minúsculo entre os altos arcos, mais nada. Eles não a engolem, a Hóstia. Botam-na em cima do coração.”

 

 

“Eu tinha visto coisas demais suspeitas demais para estar feliz. Eu sabia demais e não sabia o suficiente.”

 

 

“O que é pior é que a gente fica pensando como que no dia seguinte vai encontrar força suficiente para continuar a fazer o que fizemos na véspera e já há tanto tempo, onde é que encontraremos força para essas providências imbecis, esses mil projetos que não levam a nada, essas tentativas para sair da opressiva necessidade, tentativas que sempre abortam, e todas elas para que a gente se convença uma vez mais que o destino é invencível, que é preciso cair bem embaixo da muralha, toda noite, com a angústia desse dia seguinte, sempre mais precário, mais sórdido.

É a idade também que está chegando talvez, a traidora, e nos ameaça com o pior. Já não temos muita música dentro de nós para fazer a vida dançar, é isso. Toda a juventude já foi morrer no fim do mundo no silêncio de verdade. E aonde ir lá fora, pergunto a vocês, quando não temos mais em nós a soma suficiente de delírio? A verdade é uma agonia que não acaba. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher, morrer ou mentir. Eu, eu nunca pude me matar.

O melhor portanto era sair para a rua, esse pequeno suicídio. Cada um possui seus pequenos dons, seu método para conquistar o sono e comer. Eu tinha de qualquer jeito de conseguir dormir para recuperar forças suficientes e ganhar meu pão no dia seguinte. Reencontrar a energia, só o bastante para achar um trabalho no dia seguinte e transpor imediatamente, enquanto isso, o desconhecido do sono. Não se creia que é fácil adormecer quando se começou a duvidar de tudo, por causa especialmente dos tantos medos que lhe meteram.”

 

 

“Quase todos os desejos do pobre são punidos com a prisão.”

 

 

“De onde eu estava (quarto do hotel em andar elevado) podia muito bem gritar para cima deles tudo o que quisesse. Experimentei. Todos me davam nojo. Eu não tinha o topete de lhes dizer durante o dia, quando ficava na frente deles, mas de onde estava não corria nenhum risco, gritei “Socorro! Socorro!”, só para ver qual seria a reação deles. Nada que isso causava. Empurravam a vida e a noite e o dia para a frente, os homens. Ela tudo lhes esconde, a vida, dos homens. No barulho de si mesmos, não ouvem nada. São indiferentes. E quanto maior for a cidade e quanto mais alta for mais são indiferentes. Ouçam o que estou dizendo. Experimentei. Não vale a pena.”

 

 

“Durante a juventude, as mais áridas indiferenças, as mais cínicas grosserias, conseguimos encontrar-lhes desculpas de manias passionais e também sei lá eu de que sinais de um inexperiente romantismo. Mais tarde, porém, quando a vida lhe mostrou muito bem tudo o que é capaz de exigir de cautela, de crueldade, de malícia para ser apenas, mal ou bem, mantida a trinta e sete graus, é que você percebe, você está pronto, bem colocado para compreender todas as porcarias que um passado contém. Basta, no final das contas, se contemplar escrupulosamente, a si mesmo, e aquilo em que nos transformamos em matéria de imundície. Acaba-se o mistério, acaba-se a imbecilidade, toda a nossa poesia foi por nós devorada, já que vivemos até aquele momento.”

 

 

“Enquanto eu discorria assim com o artifício e o convencional, não pude deixar de perceber mais claramente ainda outras razões além da malária para a depressão moral e física que eu sofria. Tratava-se de uma mudança de hábitos, eu tinha que aprender mais uma vez a reconhecer novos rostos num novo ambiente, outros modos de falar e mentir. A preguiça é quase tão forte quanto a vida. A banalidade da nova farsa que você tem de representar o esmaga, e no fundo você ainda precisa de mais covardia do que de coragem para recomeçar. É isso o exílio, o estrangeiro, essa inexorável observação da existência tal como ela é realmente durante essas poucas horas lúcidas, excepcionais na trama do tempo humano em que os hábitos do país anterior o abandonam, sem que os outros, os novos, ainda o tenham embrutecido.

Tudo nesses momentos vem se somar ao seu horrendo desespero para forçá-lo, você, fraco, a ver as coisas, as pessoas e o futuro tais como eles são, isto é, esqueletos, nada a não ser uns nadas, que no entanto será preciso amar, prezar, defender, animar como se existissem.”

 

 

“Era verdade também o que ela dizia de que eu tinha mudado bastante. A existência, ela lhe torce e lhe esmaga o rosto. O dela também tinha sido esmagado, o rosto, mas menos, bem menos. Os pobres são uns privilegiados. A miséria é gigantesca, utiliza para limpar as imundícies do mundo a sua cara, como um pano de chão. Nunca falta.”

 

 

“Os homens se afeiçoam a suas escabrosas recordações, a todas as suas desgraças e não se pode afastá-los delas. Isso lhes ocupa a alma. Vingam-se da injustiça de seu presente remexendo o futuro no fundo de si mesmos junto com a merda. Justos e covardes que são bem no fundo. É a natureza deles.”

 

 

“Os ricos não precisam matar uns aos outros para comer. Botam os outros para trabalhar, como dizem. Não cometem o mal eles mesmos os ricos. Pagam. A gente faz tudo para agradá-los e todos ficam muito felizes. Enquanto suas mulheres são bonitas, as dos pobres são feias. É consequência dos séculos, toaletes à parte. Lindas teteias, bem nutridas, bem lavadas. Desde que dura, a vida só chegou a isso.”

 

 

“Já que não passamos de recintos de tripas mornas e não totalmente podres, sempre teremos dificuldades com os sentimentos. Apaixonar-se não é nada, o difícil é ficar junto. Quanto à imundície, ela não tenta durar nem crescer. Aqui, neste aspecto somos bem mais infelizes do que a merda, essa sanha de perseverarmos em nossa condição constitui a inacreditável tortura.”

 

 

“Com meu diploma eu podia me estabelecer em outro lugar, lá isso era verdade... Mas não seria outra parte nem mais agradável nem pior... Um pouco melhor o lugar no início, fatalmente, porque as pessoas sempre precisam de algum tempo para chegarem a conhecer você e porem mãos à obra e descobrirem a maneira de prejudicá-lo. Enquanto ainda estão procurando o detalhe que o faz sofrer de maneira mais fácil, você tem um pouco de sossego, mas assim que descobrem o segredo, aí tudo volta a ser a mesma coisa, em qualquer lugar. Em suma, é o pequeno lapso de tempo em que somos desconhecidos em cada novo local que é o mais agradável. Depois, é a mesma canalhice que recomeça. É a natureza das pessoas. O importante é não ficar esperando que os companheiros aprendam direitinho a nossa fraqueza. Tem que se esmagar os percevejos antes que voltem para as rachaduras.”

 

 

“Os homens, ele tinha que sobretudo apresentá-los às tolerantes e às apreciadoras para as suas manias apaixonadas. Os clientes tinham amor para dar e vender, para compartilhar, tanto quanto os de madame Herote. Chegava, só pelo carteiro da manhã, à agência Pomone suficiente amor insaciado para extinguir de vez todas as guerras deste mundo. Mas aí é que está, esses dilúvios sentimentais nunca vão mais longe do que a bunda. Isso é que é a desgraça!”

 

 

“Amores contrariados pela desgraça e as grandes distâncias são como amores de marinheiro, não há jeito, são irrefutáveis e são um sucesso. Primeiro, quando a gente não tem ocasião de se encontrar frequentemente, não pode brigar, e isso já é uma grande coisa. Como a vida não passa de um delírio abarrotado de mentiras, quanto mais longe estivermos e quanto mais pudermos botar mentiras ali dentro, mais então ficaremos felizes, é natural e é sempre assim. A verdade não é comestível.”

 

 

“Somos abjetos. Não se pode pôr a culpa em ninguém. Gozar e felicidade em primeiro lugar. É minha opinião. De mais a mais, quando começamos a nos esconder dos outros é sinal de que temos medo de nos divertir com eles. É uma doença em si. Seria preciso saber por que teimamos em não nos curarmos da solidão. Um outro camarada que encontrei durante a guerra no hospital, um cabo, tinha ele me falado um pouco desses sentimentos aí. Pena que nunca mais o revi, esse rapaz! “A terra está morta”, me explicou... “Não passamos de vermes em cima dela, vermes em cima de seu infecto cadáver imenso, a lhe comer o tempo todo as tripas e unicamente seus venenos... Não há o que fazer conosco. Somos todos podres de nascença... E estamos conversados!””

 

 

“A juventude verdadeira, a única, padre, é amar a todos sem distinção, só isso é verdade, só isso é jovem e novo.”

 

 

“Viver sozinho é se exercitar para a morte.”

 

 

“Talvez ainda não se trate de loucura completa no caso do seu amigo... Não! Talvez seja apenas uma convicção exagerada... Mas sou craque em matéria de demências contagiosas... Nada é mais grave do que a convicção exagerada!...”

 

 

“Cada um tem suas razões para fugir da própria miséria íntima e cada um de nós para isso envereda, ao acaso das circunstâncias, por algum engenhoso caminho. Felizes daqueles para quem o bordel é suficiente!”

 

 

“Não era nada mau que Baryton me considerasse no meu conjunto com certo desprezo. Um patrão sempre fica relativamente sossegado diante da ignomínia de seus funcionários. O escravo deve ser, custe o que custar, um pouco e inclusive muito desprezível. Um conjunto de pequenas taras crônicas morais e físicas justifica a sina que o oprime. A Terra gira melhor assim, já que cada um se encontra ali em cima no seu merecido lugar.

A criatura de quem nos servimos deve ser reles, humilde, destinada às decadências, isso é um alívio, tanto mais que ele nos pagava muitíssimo mal, Baryton. Nesses casos de avareza aguda os patrões ficam um pouco desconfiados e inquietos. Fracassado, depravado, desgarrado, dedicado, tudo se explicava, se justificava e se harmonizava, em suma. Não o teria desagradado, a Baryton, que eu fosse meio procurado pela polícia. É isso que torna dedicado.”

 

 

“Das coisas às quais você era mais apegado você resolve um belo dia falar cada vez menos, se esforçando, quando não tem escapatória. Não aguentamos mais nos escutarmos sempre falando... Resumimos... Desistimos... Faz trinta anos que conversamos... Não fazemos mais questão de ter razão. Até a vontade de guardar o lugarzinho que você reservou entre os prazeres o abandona... Nos enfastiamos... Doravante basta comer um pouco, criar um pouco de calor em torno de si e dormir o mais possível no caminho para lugar nenhum. Precisaríamos, para recobrar interesse, descobrir novas caretas a fazer diante dos outros... Mas já não temos força para mudar o repertório. Empacamos. Ainda procuramos uns assuntos e uns pretextos para permanecer ali com eles, os companheiros, mas a morte também está ali, fedorenta, ao nosso lado, o tempo todo agora e menos misteriosa do que uma partida de bisca. Continuam a nos ser preciosas apenas as pequenas tristezas, esta de não termos tido tempo enquanto ele ainda vivia de ir ver o velho tio em Bois-Colombes, cuja musiquinha se apagou para sempre numa noite de fevereiro. Foi tudo o que conservamos da vida. Esse pequeno arrependimento um tanto atroz, o resto vomitamos mais ou menos bem pelo caminho afora, com grandes esforços e sofrimento. Não somos mais do que um velho lampião de lembranças na esquina de uma rua onde já não passa quase mais ninguém.”

 

 

“É segundo o cansaço que percebemos mais ou menos que chegamos.”

 

 

“Nesses momentos, é um pouco desagradável ter se tornado tão pobre e tão duro como nos tornamos. Falta-nos quase tudo o que seria necessário para ajudar alguém a morrer. Só temos dentro de nós coisas úteis para a vida de todos os dias, a vida do conforto, a vida nossa apenas, a patifaria. Perdemos a confiança no meio do caminho. Expulsamos, rejeitamos a piedade que nos restava cuidadosamente no fundo do corpo como uma pílula infecta. Empurramos a piedade para o final do intestino junto com a merda. Ela está bem ali, pensamos.”

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