sexta-feira, 14 de outubro de 2016

A Cidade de Deus (Livros IX-XV), de Santo Agostinho

Editora: Fundação Calouste Gulbenkian

ISBN: 978-9723105438

Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições: J. Dias Pereira

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 630

Sinopse: Ver Parte I



“Efetivamente, o ser animado ou animal é composto de alma e corpo. Destes dois, o melhor é, sem dúvida, a alma, mesmo que viciosa e doente seja ela, e perfeitamente são e vigoroso o corpo. É que a sua natureza é de ordem mais elevada; a mácula dos vícios não a faz descer abaixo do corpo. E assim como o ouro, que, mesmo impuro, tem maior valor do que a prata e o chumbo mais puros.”

 

 

“Não devem ser ouvidos os que negam que Deus invisível possa fazer milagres visíveis. Nem mesmo esses podem negar que este mesmo Deus fez o mundo que, não há dúvida, é visível. Tudo o que de maravilhoso acontece neste mundo é, com certeza, menos do que o mundo no seu todo, isto é, do que o Céu e a Terra e tudo o que encerram — obras que, indubitavelmente, foi Deus quem as fez. Mas tal como Aquele que as fez, assim também o modo como as fez, se conserva oculto e incompreensível ao homem. Talvez os milagres das naturezas visíveis tenham perdido o seu valor devido a tantas vezes terem sido observados. Todavia, se encararmos com olhos de ver, veremos que são superiores aos mais extraordinários e mais raros. Realmente, o homem é um milagre maior do que qualquer milagre feito por um homem.

É por isso que Deus, que fez o Céu e a Terra visíveis, não desdenha fazer no Céu e na Terra milagres visíveis para estimular a alma, ainda presa às coisas visíveis, a adorá-lo a Ele invisível. Mas “onde” e “quando” os fará — é n’Ele o objeto dum desígnio imutável em cuja disposição se encontram já presentes os tempos futuros. É que Ele move as coisas temporais e não se move no tempo. Para Ele, conhecer o que se vai fazer e o que está feito é tudo o mesmo; nem atende os que o invocam de forma diferente dos que o hão-de invocar. Mesmo quando são os anjos que atendem, é Ele ainda quem neles atende como no seu verdadeiro templo que não é feito pelas mãos dos homens. O mesmo ocorre com os seus homens santos. E os preceitos realizam-se no tempo em conformidade com a lei eterna.”

 

 

“Por isso o verdadeiro Mediador, que, ao tomar a forma de escravo, se tornou mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus-Cristo, sob a forma de Deus, aceita o sacrifício com o Pai, com o qual é um só Deus; mas, sob a forma de escravo, preferiu ser sacrifício a aceitá-lo, para que ninguém aproveitasse esta oportunidade para sacrificar a qualquer criatura. É por isto que Ele é sacerdote: é Ele quem oferece, é Ele a oblação.”

 

 

“São, pois, vencidos (os demônios) em nome d’Aquele que assumiu a condição humana e levou uma vida sem pecado, para que a remissão dos pecados se operasse n’Ele, sacerdote e sacrifício, mediador entre Deus e os homens, o Homem Jesus Cristo por quem, purificados dos pecados, somos reconciliados com Deus. Efetivamente só os nossos pecados separam os homens de Deus. Nesta vida não é por virtude nossa mas por misericórdia de Deus, não é por poder nosso mas por indulgência d’Ele, que se opera em nós a purificação dos pecados. A própria virtude, seja ela qual for, que chamamos nossa, foi-nos concedida pela sua bondade. E muito atribuiríamos a esta carne se não vivêssemos por permissão d’Ele até a deixarmos. Também a graça nos é concedida pelo mediador para que, maculados pela carne do pecado, fiquemos limpos pela semelhança da Carne do pecado. Por esta graça de Deus, pela qual Ele nos mostra a sua grande misericórdia, somos governados, mediante a fé nesta vida; e, depois desta vida, seremos levados pela própria beleza da verdade imutável à plenitude da perfeição.”

 

 

“Não é sem motivo que nós hoje chamamos felizes àqueles que vemos viverem na justiça e na piedade com a esperança da imortalidade, sem qualquer crime a roer-lhes a consciência, obtendo facilmente a misericórdia divina para os seus pecados de fragilidade presente. Embora estejam seguros de que serão recompensados da sua perseverança, estão, porém, inseguros da própria perseverança. Que homem é que, efetivamente, sabe se perseverará até ao fim na prática e no progresso da justiça, a não ser que obtenha a garantia por uma revelação d’Aquele que, sem enganar ninguém, não revela a todos, acerca deste ponto, o seu justo e secreto juízo? Também a respeito do gozo de um bem presente, o primeiro homem era mais feliz no Paraíso do que qualquer justo na debilidade desta vida mortal. Mas quanto à esperança de um bem futuro, qualquer homem, seja ele quem for, por muitos sofrimentos corporais que tenha de suportar, se sabe, não como provável, mas como verdade certa, que gozará sem fim, ao abrigo de toda a prova, da sociedade dos anjos na íntima união com Deus Soberano, — qualquer homem é mais feliz do que o primeiro homem inseguro da sua sorte na grande felicidade do Paraíso.”

 

 

“Uma malícia que vicia supõe indubitavelmente uma natureza anterior não viciada. Mas o vício é de tal modo contra a natureza que só pode ser nocivo à natureza. Não seria, portanto, um vício separar-se de Deus se, para a natureza de que esta separação constitui um vício, não fosse melhor estar unido a Deus. É por isso que mesmo a vontade má presta poderoso testemunho a favor da natureza boa. Mas Deus, assim como é o criador excelente das naturezas boas, assim é também o ordenador justíssimo das vontades más. E quando estas abusam, para o mal, das naturezas boas, serve-se mesmo das naturezas más para o bem. Fez, portanto, com que o Diabo, bom pela sua criação, mau pela sua vontade, fosse atirado para o grupo dos seres inferiores para ser entregue às mofas dos seus anjos, no sentido de que os santos tirem proveito das próprias tentações pelas quais ele procurava ser-lhes nocivo.”

 

 

“Nós cremos, mantemos e pregamos com fidelidade que o Pai gerou o Verbo, isto é, a Sabedoria pela qual tudo foi feito, seu Filho único: que Ele, o Uno, gerou o Único, o Eterno, o Coeterno, o soberamente bom, o igualmente bom; e que o Espírito Santo é simultaneamente o Espírito do Pai e do Filho, Ele mesmo consubstancial e coeterno a ambos; que tudo isto é Trindade por causa da propriedade de pessoas e Deus único por causa da sua inseparável divindade, assim como é único Onipotente por causa da sua inseparável onipotência. De tal maneira, porém, que, se alguém se interrogar acerca de cada um, deve contentar-se em saber que cada um é Deus e onipotente; e se se interrogar acerca dos três conjuntamente, a resposta será que não há três deuses ou três onipotentes, mas um só Deus onipotente, tão grande é na sua Trindade a inseparável unidade que desta maneira se quis manifestar.

O que não tenho medo de dizer é que o Espírito Santo é a santidade das duas outras Pessoas, não como qualidade de uma e de outra, mas como sendo ele também substância e terceira Pessoa na Trindade. O que mais provavelmente me leva a esta opinião é o seguinte: o Pai é espírito e o Filho é espírito, o Pai é santo e o Filho é santo — todavia, o Espírito Santo é que é propriamente assim chamado como sendo a Santidade substancial e consubstancial de ambos.”

 

 

“A diferença parece consistir em que — “fruir” se diz de uma coisa que nos agrada por si mesma sem estar relacionada com outra, “utilizar” se diz de uma coisa que se procura para outra. (Por isso, mais que fruir, convém utilizar os bens temporais para se merecer o gozo dos bens eternos; não como os perversos que querem gozar do dinheiro e utilizar-se de Deus. Porque não é por causa de Deus que empregam o seu dinheiro — é antes por causa do dinheiro que prestam culto a Deus).”

 

 

“O vício só é justo objeto de censura porque desonra uma natureza digna de louvor. (...)

Na realidade, nenhum mal prejudica a Deus, mas todo o mal prejudica as naturezas mutáveis e corruptíveis que são, apesar disso, boas, como o demonstram os próprios vícios. Se não fossem boas, os vícios não as poderiam prejudicar. Que prejuízo, com efeito, lhes farão senão o de lhes tirarem a integridade, a beleza, a saúde, a virtude e todos os bens naturais que o vício costuma destruir ou diminuir? Se nada houvesse, o vício, nada de bom retirando, já não causaria prejuízo e, portanto, já não seria um vício, pois não pode ser vício sem prejudicar. Segue-se daí que, apesar da sua impotência para causar prejuízo ao bem imutável, o vício a nada pode causar prejuízo senão ao bem, porque não está senão onde causa prejuízo. Isto mesmo também pode ser assim formulado: tanto é impossível ao vício estar no Bem Supremo como não estar em algum outro bem. Os bens podem estar sós em qualquer parte; os males, não podem estar sós em parte alguma. É que, mesmo as próprias naturezas, que a sua má vontade viciou desde a origem, só são más enquanto viciadas, mas boas enquanto naturezas. E quando uma natureza viciosa é castigada, além de ser uma natureza, tem isto de bom: não é impune. Efetivamente, isto é justo e tudo o que é justo é, sem dúvida, um bem. Na verdade, ninguém é punido pelas suas faltas naturais, mas pelas suas faltas voluntárias. O próprio vício que o progresso de um longo hábito arreigou fortemente como uma natureza, teve a sua origem na vontade. Estamos agora a falar dos vícios duma natureza dotada de espírito que capta a luz inteligível, com que pode distinguir o justo do injusto.”

 

 

“Os que, embora criados bons, são agora maus, o são por sua má vontade própria, que não é devida à sua natureza boa, mas à sua falta espontânea relativamente ao bem: a causa do mal não é o bem, mas a falta de bem.”

 

 

“Nem os leões alguma vez desencadearam entre si guerras semelhantes às dos homens.”

 

 

“A vontade está em todos os movimentos, ou melhor, todos eles mais não são que vontades. Realmente, que é o desejo ou a alegria senão a vontade que consente no que queremos? Que é o temor ou a tristeza senão a vontade que nos desvia do que recusamos? Chama-se desejo quando no desejo estamos de acordo com o que queremos. Também quando a nossa recusa recai sobre o que não desejaríamos experimentar, esta forma de vontade chama-se medo; e, quando recai sobre o que experimentamos a nosso pesar, esta forma de vontade é a tristeza. Em suma: a vontade do homem é atraída ou repelida conforme a diversidade dos objetos que procura ou evita e assim se muda ou transforma nestes diferentes afetos. Por isso o homem que vive, não em conformidade com o homem, mas em conformidade com Deus, tem de amar a Deus. E como ninguém é mau por natureza, mas por vício, o que vive em conformidade com Deus deve ter para com os maus um perfeito ódio, sem, todavia, odiar o homem por causa do vício nem amar o vício por causa do homem: deve apenas odiar o vício e amar o homem. Assim, uma vez curado o vício, tudo o que ele deve amar permanecerá e nada permanecerá do que deve odiar.”

 

 

“A vontade não goza verdadeiramente de livre arbítrio senão quando não é escrava dos vícios e dos pecados.”

 

 

“A humildade que nos torna submissos a Deus exalta-nos.”

 

 

“Pois que não podes fazer o que queres, procura querer o que possas.” (Terêncio)

 

 

“Mas se se examinarem mais profundamente estas questões, elas geram múltiplas e multímodas discussões que teriam de constar de mais livros do que os que permitem esta obra e o tempo de que dispomos, muito curto para nos demorarmos em todas as questões que as pessoas ociosas e meticulosas, mais dispostas a interrogar do que capazes de compreender, podem pôr.”

Um comentário:

Sugestão de Livros disse...

Alguns pontos interessantes.