quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica (Parte I) – Eduardo Arens

Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-2770-3
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: A Bíblia como documento fundacional da comunidade cristã (e, antes dela, da comunidade hebraica), a Palavra de Deus como manifestação do Espírito a partir do fundamento do texto, o problemático texto, antigo, de centenas de anos, a mensagem nova pra cada pessoa e para cada dia; esses são os aspectos sobre os quais esta obra centra sua atenção. A abordagem dos problemas de contexto cultural e religioso dos textos bíblicos, com senso crítico e apoio das ciências históricas, permite respeitá-los e valorizá-los com aquilo que são: testemunhos de vida e de fé que procedem de numerosas comunidades de crentes, capazes de alimentar hoje nossa própria vivência.



“A Bíblia é um livro vivo, e o estudo de suas origens não pretende fixar sua estrutura fundamental, assim como as origens de uma pessoa não podem determinar toda a sua história, embora a condicionem.”
(Horacio Simian-Yofre)


“Afirmar a origem divina da Bíblia em forma estrita e absoluta, como se tivesse caído do céu ou como se Deus mesmo a tivesse escrito, utilizando certas pessoas como instrumentos seus, e assim negar a dimensão humana, é um indício da incompreensão da natureza da Bíblia. Por outra parte, reconhecer e afirmar a humanidade dos escritos bíblicos não é negar seu caráter divino, mas antes situá-los cabalmente dentro das coordenadas de onde surgiram: a história dos homens.”


“O termo “testamento é uma tradução equívoca do original hebraico berit, que significa “aliança”, “pacto”. Não se referia à última vontade, mas ao conceito de aliança, aquela aliança feita com Moisés, que é o coração do Antigo Testamento e, depois, aquela que foi selada com a morte de Jesus (Lc 22,20; 2Cor 11,25). Traduzido este vocábulo para o grego (diatheke), começou-se a entender em sua acepção de última vontade, de testamento, e assim se traduziu para o latim (testamentum).”


“Há algo mais que nunca devemos esquecer: os compositores dos diversos escritos da Bíblia escreveram para um grupo de pessoas concretas, para seu povo ou sua comunidade de então, daquele tempo. Isto significa que não escreveram pensando em nós. Quando Isaías falou e escreveu, o fez para os judeus do séc. VIII a.C., e quando Paulo escreveu sua carta aos Romanos, foi para os cristãos de Roma da década de 50, respondendo a seus problemas e necessidades de esclarecimento que nem sempre são os nossos. Hoje em dia, falariam e escreveriam de outra maneira e a respeito de outros problemas. Mas o que escreveram é em certa medida aplicável ainda hoje, a mensagem central continua válida, pois o ser humano é basicamente o mesmo: suas perguntas, atitudes, angústias, alegrias, esperanças continuam acontecendo hoje.”


“O normativo ou autorizado, obviamente, não é a linguagem empregada, mas o que por meio dela se quer comunicar: a mensagem. A própria mensagem pode ser comunicada com diferentes linguagens, e cada cultura o faz em sua linguagem. Frequentemente se confunde o meio (linguagem) com o fim (mensagem), e a linguagem se torna mais importante do que a mensagem, tomando-a ao pé da letra (literalismo). Por exemplo, quando se quis afirmar que Deus é o criador do homem, o povo de Israel usou a imagem do oleiro, e assim em Gn 2,7 lemos que “Deus modelou o homem da argila da terra, soprou em seu nariz alento de vida, e o homem tornou-se um ser vivente”. O importante não é como Deus fez o homem (o que leio em uma linguagem de imagens empregadas), mas o fato de que Deus é seu criador (a mensagem). Por isso, em Gn 1,26s, onde também se fala da criação do homem (e da mulher!), Deus não se apresenta como oleiro, mas simplesmente se afirma que “Deus fez o homem à sua imagem; à imagem de Deus o fez, homem e mulher”. Consequentemente, é ingênua e fora de lugar toda discussão sobre a maneira como Deus teria feito os seres humanos, baseando-se em Gênesis: não era essa sua mensagem, mas o fato de que é Deus, e nenhum outro, que está no “ponto inicial”. Explicar-nos o como se deu é uma questão que compete aos cientistas; não é assunto de fé teológica.
Os fundamentalistas tomam ao pé da letra a linguagem, consideram-na sagrada e não levam a sério o fato de que é somente um meio e que, portanto, não deve ser absolutizada. Tampouco levam a sério o fato de que a linguagem empregada na Bíblia é de uma cultura e de um tempo distantes. Repito: o importante é compreender o que é que mediante essa linguagem se queria comunicar. Por isso, é necessário ter um mínimo de familiaridade com a maneira de pensar, com as imagens, com o vocabulário e com a maneira que os autores dos escritos bíblicos tinham de entender o homem e o mundo. (...)
Os escritos da Bíblia comunicam experiências e acontecimentos, não simples informação histórica ou outra (o que se passou); são produtos de reflexões sobre algo vivido ou acontecido (o que significa o que se passou). O que se comunica nos escritos bíblicos não é somente o que talvez se passou, mas a importância ou significação daquilo que se comunica; não tanto o “dado”, mas sua interpretação. Precisamente por isso se comunica, porque é significativo para o emissor. É importante recordar isto, porque se tende a pensar mais na informação como tal do que se passou, e se esquece que o que se queria comunicar era o seu significado. Assim, por exemplo, a recorrente pergunta “por que não se relatou nos Evangelhos algo a respeito dos anos de juventude de Jesus”? deve-se à incompreensão do que acabo de sublinhar. Não se relatou, porque não se considerou importante ou significativo, pois os evangelistas não pretenderam escrever uma biografia de Jesus (e menos ainda em sentido moderno), mas antes destacar a significação de sua pessoa e da missão que cumpriu – sua atenção era teológica, não cronística.”


“No transcurso de sua transmissão, algumas tradições se mesclaram com outras semelhantes ou relacionadas. Um claro exemplo é o relato do “sacrifício de Isaac”, em Gênesis 22: é o resultado da fusão de duas tradições e uma ulterior reinterpretação. Originalmente, existia uma tradição que explicava a origem do nome de certo monte que era o centro de sacrifícios religiosos, lugar chamado Iahweh-yreh (“Deus proverá”: v. 8 e 14). Outra tradição (diferente) explicava por que em Israel não se sacrificam os primeiros nascidos (e as pessoas humanas em geral), como em outros povos, mas se substituem pelo sacrifício de algum animal (cf. v. 13). Ambas as tradições se fundiram em algum momento com base em um denominador comum: o sacrifício a Deus de uma vítima – de Isaac substituído por um carneiro no monte de culto Iahweh-yreh (veja v. 2 e 14). Posteriormente, pela natureza mesma do relato, foi acrescentado o tema da fé de Abraão, o pai do povo, e por conseguinte ele foi convertido em fundamento e modelo para Israel: projetou-se sobre a pessoa de Abraão a fé de todo um povo (do qual é pai). “Atualizou-se” o relato, centrado agora em Abraão, não em Isaac. Para isso, foram introduzidos os vv. 1-11s e 15ss (note-se como o anjo fala como se fosse Deus mesmo), e se retocou o relato. Isto aconteceu provavelmente no tempo do exílio babilônico: por falta de uma fé como a de Abraão, sofreram as perdas das promessas feitas por Deus a ele; se agora têm uma fé como a sua, serão merecedores outra vez dessas promessas: veja v. 15-18 (cf. Gn 12,1 3; 17,4-8).”


“Como se pode observar, as tradições não foram consideradas como uma espécie de verdades eternas, mas como expressões de vida e sobreviviam à medida que foram significativas para a vida. O interesse não estava tanto no passado, mas no presente, não tanto na recordação, mas naquilo que o narrado tem de relevante para o hoje daquele que fala ou escreve ao seu auditório, e esse “hoje” pode mudar. A tradição sobre o êxodo do Egito foi retomada e reinterpretada à luz da experiência da deportação para a Babilônia no séc. VI por Isaías (43,14-21; 48). A Babilônia tomou o lugar do Egito, país de escravidão para o povo de Deus. No séc. IV, o autor de Crônicas reinterpretará a história de Israel a partir do ponto de vista da importância que agora tinham o culto e a Lei: Crônicas é uma reflexão piedosa da história narrada nos livros de Samuel e Reis. Os Evangelhos segundo Mateus e Lucas são reinterpretações e adaptações do Evangelho segundo Marcos, que lhes serviu como fonte principal.”


“Mais ainda, enquanto um grupo pequeno não está firmemente estabelecido e não toma consciência de sua “identidade”, não se interessará em escrever seu passado, sua história e experiências: vive mormente ocupado com o presente. Enquanto o grupo não se projeta para um futuro mais distante do que o de seus filhos, tampouco se interessará em escrever sua história. Assim sendo as coisas, as tradições que se encontram em Gênesis, aquela sobre Moisés, as gestas heroicas dos Juízes, de Josué e de outros personagens, as atividades de Jesus de Nazaré, foram relatadas primeiro oralmente em pequenos grupos, e começaram a ser escritas somente quando o grupo tomou consciência de sua identidade própria, e com isso se interessou por sua história pretérita como fundamento de seu presente e de sua projeção para o futuro. Enquanto os cristãos eram poucos e dispersos e sua identidade estava bastante clara, e não se projetavam para um futuro distante (pois esperavam o pronto retorno de Jesus e com isso “o fim do mundo”), não se escreveram os Evangelhos – o mais antigo é o Evangelho segundo Marcos, escrito por volta do ano 70.
Somente quando um grupo humano cresceu, está firmemente assentado e se projeta para o futuro, então começa a ser importante para ele a questão de sua identidade. Isto é mais certo, quando este grupo trata de distinguir-se de outros, para o que destaca aquilo que o caracteriza seja como povo ou raça, seja como cultura ou religião. Consciência de identidade própria e história são aspectos inseparáveis: a identidade, aquilo que o distingue de outros, deve-se à própria história do grupo em questão. Portanto, não se deve estranhar que a história de Israel – baseada em suas tradições e nas recordações mais próximas – começa a ser escrita somente quando o povo está firmemente estabelecido na Palestina e já é um reino, sentindo a necessidade de destacar sua identidade em contraste com os povos e reinos que o rodeavam. Esta necessidade tomou especial força quando os Assírios destruíram e dispersaram os habitantes do reino de Israel (Norte) – foi então que se colocaram por escrito oráculos de profetas como Amos, Oséias, Miquéias e Isaías (cap. 1-39) –, e muito mais ainda quando, século e meio mais tarde, o caos foi completo devido à aniquilação do reino de Judá (Sul) sob os Babilônios, com o que se havia perdido o total domínio sobre a terra prometida. A capital e o Templo foram destruídos, dois símbolos de identidade. Muitos foram deportados, e outros mais se dispersaram, de modo que se perdeu a unidade como povo. O povo entendeu a deportação para a Babilônia como um exílio, não como deportação, trazendo à memória e revivendo espiritualmente a situação de antigamente no Egito. É assim que os elementos mais estáveis, como a escritura, códigos firmes de conduta e formalização de instituições e estruturas sociais (sinagoga?), e graças ao fato de que os deportados eram a elite intelectual e culta, incluídos profetas, afirmaram sua identidade como povo escolhido de Deus. Eram o povo “de Judá” em exílio e serão conhecidos como “judeus”. Sentiram imperativo afirmar e assegurar sua identidade agora quando muitos viviam dispersos em terras estrangeiras. De fato, a partir do exílio no séc. VI a. C., começaram a ser escritas as grandes obras do Antigo Testamento: a história (Samuel, Reis), que fazem remontar às origens do mundo (Gn 1-11), passando pelos pais do povo (Gn 12-50), para deter-se em uma recordação do êxodo e das leis fundamentais (Êxodo-Juízes). Ao mesmo tempo, foram colocados por escrito oráculos e discursos dos profetas importantes (especialmente Isaías, Jeremias, Ezequiel), assim como textos que ajudassem a manter viva a religião como tal (Salmos). Em Jeremias 36, lemos que o profeta chamou Baruc para que aja como secretário de um extenso texto que lhe vai ditar, texto que se leu no Templo; depois de ser queimado o rolo por ordem do rei, Jeremias voltou a ditar o texto.”


“Como vemos, não somente foram alteradas as tradições orais, mas também as fontes escritas. De fato, quando um texto escrito é usado por outra pessoa, toma-se da mesma maneira que o material herdado em forma oral, quer dizer, volta de certo modo à sua oralidade. De fato, os textos bíblicos foram escritos para ser escutados, não para ser lidos em particular. Em poucas palavras, o redator é emissor de uma mensagem para sua comunidade em seu tempo. (...)
Não nos esqueçamos de que cada livro foi composto independentemente dos outros: os autores não escreveram com o propósito de que suas obras fizessem parte de uma coleção (que se fez somente muito mais tarde). Cada livro era uma unidade completa e autônoma. Quando Jesus foi à sinagoga em Nazaré, lhe passaram somente o rolo de Isaías (Lc 4,17), que existia como obra independente das demais, e não toda uma biblioteca. Quando Paulo escreveu suas cartas, ele não tinha ideia de que mais tarde elas seriam juntadas e que nós as iríamos ler, dois mil anos mais tarde, como parte da Bíblia. (...)
A fixação escrita de tradições orais, embora se tenha convertido em uma comodidade para a liturgia, para o transporte e para o estudo pessoal, entre outros, foi também uma perda para muitas tradições orais. A transmissão viva, a partir do coração e da mente do comunicador, que mantém vivas as tradições em um perene “hoje”, o do emissor do texto, viu-se recortada ao ser fixada por escrito. A forma escrita permitia referir-se ao texto com caráter de norma, o que o rodeava de uma sacralidade que a forma oral não tinha; por isso, o texto era lido nas assembleias e estudado. No entanto, a comunicação oral manteve a primazia durante muito tempo. De fato, os textos que foram fixados por escrito deviam ser lidos em voz alta, o mais possível diante da comunidade, e comentados, quer dizer, atualizados. Jesus nem escreveu nem mandou escrever, e fica por demonstrar-se que os apóstolos tivessem feito diferentemente: a pregação e as memórias eram transmitidas oralmente. E a fixação escrita, como vimos, não significava de maneira alguma para eles o fim da oralidade. Como São Paulo com suas cartas, a escritura era uma maneira de comunicar-se pela impossibilidade da presença física e pela comunicação oral direta (cf. 1Cor 11,34; 2Cor 13,10; Gl 4,20). Os rabinos mantinham o caráter oral da maioria de suas tradições, e quando as fixaram por escrito foi em forma abreviada, para obrigar seu retorno à comunicação viva oral e provocar a interação com a mensagem à luz do momento atual, e em sintonia com outras tradições. Por isso, o rabinismo não se restringe ao texto bíblico, mas o faz “avançar” com as tradições orais vivas.”


“Eu interpreto a Bíblia desde o momento em que a leio. E ela também me interpreta! Mas a Bíblia mesma já vem interpretada, pois o texto que leio é produto de um autor que interpretou o que recebeu como tradição ou, pelo menos, os acontecimentos ou circunstâncias sobre as quais escreveu. Quando os hebreus pensavam que Deus era como um rei ou como um chefe de um clã, falavam dele nesses termos. E com esse modelo, quando estavam em guerra, falavam de Deus como se fosse um líder vingador, até sanguinário, tal como se lê em Juízes e em Josué. Por sua parte, Jesus tinha uma ideia diferente de Deus; falava dele predominantemente como pai. São Paulo interpretou o que acontecia em Corinto segundo a informação que lhe trouxeram os de Cloé (1Cor 1,11s) e, com base nisso, escreveu sua carta. Lucas interpretou Marcos quando escreveu, anos depois deste, sua própria versão do Evangelho, usando-o como uma de suas fontes de informação. Já antes, a pessoa de Jesus e o que ele fazia e dizia era interpretado de diferentes maneiras por seus discípulos (favoravelmente), por seus adversários (negativamente) e pelas multidões, cada um segundo suas ideias, preconceitos e interesses inconscientes. (...)
A execução de Jesus, por exemplo, pode ser interpretada como produto de inveja (Mc 15,10), como resultado da “segurança do Estado” diante de um revolucionário (Jo 11,48ss; 18,30), como vontade de Deus (At 2,23; 4,28) ou por causa de nossos pecados (Rm 4,25). Sua morte pode ser interpretada como absurda, como trágica, como salvífica, como redentora, como expiatória, como sacrifical. As diferenças devem-se ao prejulgamento daquele que interpreta, à sua ideologia, ao seu nível cultural, às suas experiências de vida, à sua teologia etc. Um enfermo, por exemplo, pode interpretar seu sofrimento como um castigo de Deus, mas o médico o interpretará como resultado de algum mau funcionamento, ou de uma deficiência, ou de um agente externo. Um mesmo acontecimento ou discurso é interpretado diferentemente segundo os modelos políticos, sociológicos, filosóficos, religiosos ou outros que os intérpretes possam ter.”


“As interpretações que se oferecem na Bíblia sobre os diversos acontecimentos estão diretamente relacionadas ao nível de conhecimento e ao grau de cultura dos diversos intérpretes. Enfermidades mentais e neurológicas eram interpretadas como resultado de possessões demoníacas. Em Mc 9,14-29, narra-se a cura de um jovem que, segundo seu pai, “está possuído de um espírito mudo e, quando se apodera dele, o lança por terra, e o menino lança espuma e range os dentes e fica rígido” (v. 17s). Quando vê Jesus, “o espírito imediatamente agitou o jovem com violentas convulsões, o qual, caindo por terra, se revolvia lançando espumas” (v. 20). Trata-se do que agora conhecemos como epilepsia. Qualquer tipo de deficiência visual era qualificado como “cegueira”, e o que chamamos de “lepra” não era outra coisa que alguma enfermidade cutânea contagiosa (varicela, varíola, sarampo, sarna). Por isso mesmo, as diferentes leis que se encontram, por exemplo, no Pentateuco provêm do nível cultural de um povo nômade, das experiências acumuladas ou da influência de diversas culturas. Não causa estranheza, então, que bom número de leis se assemelhem, por exemplo, ao famoso código de Hamurabi. Mas não somente as enfermidades eram interpretadas segundo o grau de cultura e de conhecimentos, mas também a vida mesma em sua relação com Deus se entendia segundo sua ideia de Deus, suas experiências religiosas, sua antropologia. Por isso, a visão do “reino de Deus” que Jesus pregava chocava com a ideia de Deus que especialmente os fariseus tinham. E, não por último, a apreciação (interpretação) de Jesus por parte de Marcos é diferente da que teve o autor do Evangelho segundo João – e continua reverberando a pergunta de Jesus: “Quem dizem vocês que eu sou?” (Mc 8,29).
Tudo isto implica que nem tudo o que se encontra na Bíblia deve ser absolutizado e considerado indefectivelmente correto e válido para todos os tempos. A interpretação é relativa à medida que depende do nível cultural e cognitivo, tanto do emissor como do receptor.
Por isso mesmo, a interpretação das passagens da Bíblia está orientada pela ideia que se tem dela mesma, de sua origem, de sua natureza, de seus alcances e limites, além da ideia que se tem a respeito de Deus, do mundo, do homem e da relação entre estes. Distinta será nossa interpretação de narrações, se as entendermos como reportagens históricas imparciais ao invés de entendê-las como interpretações religiosas por parte de seus narradores. Igualmente acontece com as partes de corte legal: se entendermos as leis, mandatos e preceitos que estão na Bíblia como ordens de origem diretamente divina, as interpretaremos e aplicaremos como leis eternas, mas se os entendermos como ordens surgidas de determinados momentos culturais e históricos, compreenderemos seus alcances, sua atualidade e suas eventuais limitações (até sua vigência), como fez Jesus com relação à lei de Moisés e as tradições.”


“De fato, um dos graves problemas do fundamentalismo e da leitura literalista é que simples e redondamente ignora o que isso implica, ou reduz os gêneros literários existentes na Bíblia a uns poucos, especialmente considera qualquer narração como sendo do gênero literário histórico, de modo que tomam tudo ao pé da letra, confundindo os gêneros literários lenda, mito, epopeia e história e reduzindo-os a história; profecia e apocalipse são reduzidos a vaticínios sobre o futuro, preceitos e exortações são tomados como sendo do gênero jurídico etc. Leem a Bíblia como leem as notícias e informações dos jornais.
Sabemos diferenciar os gêneros literários que são correntes em nosso meio e, por isso, sabemos também qual é seu propósito. Sabemos distinguir uma fatura de uma receita, uma novela de uma biografia, e sabemos qual é o propósito típico de cada um destes gêneros literários. Mas, quando nos encontramos com gêneros literários que não conhecemos bem, como acontece com certa frequência quando lemos a Bíblia, instintivamente tendemos a pensar que esse gênero deve ser semelhante a algum que conhecemos, pensamos que é daqueles correntemente usados hoje. Por conseguinte, pensamos que a mensagem (e propósito) do autor bíblico deve ser esta ou aquela, quando na realidade é outra. Assim, por exemplo, o fato de não conhecer o gênero apocalíptico (pois não é dos empregados hoje) conduz a pensar que se trata do gênero de vaticínios ou anúncios futuristas que conhecemos pelo gênero moderno de ciência-ficção e, consequentemente, se pensa que o propósito do Apocalipse é o de informar a respeito dos acontecimentos que sucederão antes do fim do mundo. No entanto, este gênero literário era comum quando seu autor o empregou e teria por finalidade animar os perseguidos por sua fé a permanecer fiéis a Deus até o final, porque, embora pareça que Deus os abandonou, no final os premiará; não triunfarão as forças do mal, mas Deus e os seus. Para comunicar esta mensagem, os autores do livro de Daniel (caps. 7-12) e do Apocalipse empregaram um gênero literário muito conhecido em seu tempo, mas em desuso hoje. O mesmo acontece com o livro de Jonas, o qual costuma ser tomado como história, quando, na realidade, é um grandioso relato pedagógico. Outro tanto ocorre com os escritos dos profetas: o gênero profético, apesar de sua aparência de vaticínios, não se propõe revelar o que sucederá em um futuro distante (para seus autores), mas antes para advertir que, se não se converterem a Deus, ele os castigará – seu fim é exortar à conversão, não vaticinar.”


“A confusão de gêneros literários observa-se claramente na maneira como muitos interpretam o relato da tentação de Eva no paraíso, em Gn 3. Trata-se de um mito, mas costuma ser tratado como se fosse história – como fazem com os dois relatos da criação. Nele, se relata em linguagem de imagens a origem da tendência dos seres humanos a erigir-se em divindade e em juiz único de suas ações (árvore do conhecimento do bem e do mal), quer dizer, querer ser “como Deus” (v. 5). Mas tudo isso foi frequentemente interpretado como se fosse história, como se se tratasse de duas pessoas reais que cometeram um pecado em um tempo e em um lugar igualmente reais, e que a partir deles todos estamos condenados a sofrer, a trabalhar, a morrer e tudo por culpa alheia, por culpa de Adão e de Eva. São Paulo, como todo judeu de seu tempo, acreditava assim: Rm 5,12ss. No entanto, a realidade é que não se trata de história (quem o teria relatado? Desde quando uma serpente fala? Etc.), mas de uma explicação dessa atitude de soberba dos homens que se explicita nos mitos que seguintes de Caim e Abel, de Noé e da torre de Babel.”


“O que hoje se explica em termos de leis da natureza antigamente explicava-se como intervenções divinas. O que em uma época parecia extraordinário hoje não o é, e tem uma explicação natural. A epilepsia antigamente era considerada produto de possessão demoníaca; hoje sabemos que é uma desordem neurológica.
Para os hebreus (e isso inclui os cristãos), Deus é o criador, o Senhor do universo, e tudo está em suas mãos. Portanto, a Providência rege o curso da natureza. Deus pode intervir quando desejar, e isso nada tem em si de sobrenatural. O admirável é o momento preciso e o efeito de sua intervenção. Por isso, não falavam de milagres, mas de sinais e de portentos. Sinais, porque evidenciam a presença salvífica de Deus; portento, porque são expressões impressionantes do poder divino. E isso é questão de fé; não é demonstrável objetivamente. Milagres não se demonstram: acredita-se neles. É o crente que vê “milagres”. Portanto, não são “provas”, mas sinais (para o que crê) da presença divina. É assim que Jesus entendia a história de Jonas: como um “sinal” (Lc 1,29). E é assim que João apresenta e designa em seu Evangelho os “milagres” de Jesus: como sinais (semeia; cf. 2,11.24; 4,54).
Nós perguntamos: “O que é isto?”. Na antiguidade, perguntavam antes: “O que significa isto?”. Nós cotejamos o fato com a ciência; na Antiguidade era com a mensagem. Quer dizer, nós colocamos em primeiro plano o sobrenatural do fato, enquanto antigamente a atenção estava fixada na experiência da presença ou proximidade divina que, por ser mais intensa e explícita, produz admiração. O milagre era entendido como sinal dessa presença divina.”


“O gênero profético com frequência é mal-entendido, pois ingenuamente costuma-se definir em termos de vaticínios sobre algo que acontecerá. Para compreender este gênero, deve-se entender qual era o papel dos profetas, em cuja boca aparecem as profecias. O profeta falava em nome de Deus, como seu porta-voz, e também fazia as vezes da consciência de Israel. Os profetas falavam com base em suas observações de determinadas situações que seu povo vivia, e as interpretavam a partir de sua fé e das exigências da aliança com Deus. Por isso, com frequência referiam-se às injustiças que se cometiam, às idolatrias, às alianças feitas com povos pagãos, quer dizer, às infidelidades para com a aliança com Deus. Ao deduzir as consequências fatais que a conduta infiel a Deus traria, os profetas chamavam a atenção desesperadamente à conversão. Esse era seu tema constante: conversão, fidelidade absoluta a Deus. Os profetas falavam a partir do presente e para o presente de seu auditório, não para além de vinte séculos adiante. Quando se referiam ao futuro, anunciando catástrofes, não era para predizer o que de qualquer maneira haveria de acontecer, mas para pressionar a uma conversão: era o método da intimidação, que não tinha outra finalidade que a de alcançar a conversão agora, já, como um pai faria com seu filho desobediente: “Se não fizeres isto (se não te converteres)... então cairás”. Isso não quer dizer que de qualquer maneira cairá sobre ele o castigo – por isso muitos “vaticínios” não se cumpriram – ou que, por ser desobediente, não lhe fale outra vez, em lugar de castigá-lo (por isso, se repetem as advertências e as ameaças). Em outras palavras, os profetas não eram anunciadores ou vaticinadores do que irremediavelmente aconteceria por predeterminação divina e, menos ainda, muitos séculos adiante (a quem interessa o que acontecerá muitos séculos mais tarde?). O propósito de grande proporção dos pronunciamentos proféticos era denunciar os males existentes e exortar à conversão a Deus; para isso ameaçavam com algum castigo divino possível ou prometiam a salvação. Certamente, também encontramos expressões de paz e de libertação, de reconstrução e de esperança, mas sempre se referiam a um futuro imediato, não distante.”

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