terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crítica da filosofia do direito de Hegel – Karl Marx

Editora: Boitempo
ISBN: 978-857-559-333-2
Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 176
Sinopse: Publicado originalmente em 1843, a Crítica da filosofia do direito de Hegel é um divisor de águas na obra marxiana: marca a transição da chamada fase “juvenil” para a fase adulta e a consolidação dos pressupostos que irão orientar a produção do seu pensamento até sua maturidade. Ao investigar Hegel, Marx associaria definitivamente a compreensão das relações jurídicas na sociedade com as suas condições materiais; o pensar em função do ser e a alienação do povo; o “Estado real” em relação ao Estado moderno que o segrega e o burocratiza na qualidade de “sociedade civil”.
O autor também repensa o papel da teoria crítica, estabelecendo que esta não se completa apenas no campo teórico das filosofias da religião e da ciência, mas tem um indispensável campo prático na política. Se por um lado visava superar os fundamentos estabelecidos por Hegel para o Estado alemão, por outro visava, através da associação entre a reflexão e a prática, ir além do trabalho teórico de crítica da religião de Feuerbach, uma forte influência neste trabalho.
Marx provoca um salto sobre os debates da época em torno da obra de Hegel, para uma visão mais ampla dos fundamentos do direito na Alemanha, seu anacronismo que não permite concessões, suas relações com as classes sociais e com o estágio de desenvolvimento nacional. Uma defesa radical da verdadeira democracia, da máxima generalização do Estado, com a participação de cada cidadão para superar a divisão entre política e sociedade.
No seu próximo trabalho, nos Anais franco-alemães, Marx identificaria a origem da alienação na propriedade privada. Como escreve Enderle na apresentação: “A gênese da alienação política será detectada no seio da sociedade civil, nas relações materiais fundadas na propriedade privada. Consequentemente, não se tratará mais de buscar uma resolução política para além da esfera do Estado abstrato, mas sim uma resolução social para além da esfera abstrata da política.
Na Crítica, Marx encontrou seu objeto. Faltava desvendar sua “anatomia”.

§ 262. A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude, para ser, a partir da idealidade delas, Espírito real e infinito para si, divide, por conseguinte, nessas esferas, a matéria dessa sua realidade, os indivíduos como a multidão, de maneira que, no singular, essa divisão aparece mediada pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação.
Racionalmente, as sentenças de Hegel significam apenas que:
A família e a sociedade civil são partes do Estado. Nelas, a matéria do Estado é dividida “pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria da determinação”. Os cidadãos do Estado são membros da família e membros da sociedade civil.
“A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude” (portanto: a divisão do Estado em família e sociedade civil é ideal, isto é, necessária, pertence à essência do Estado; família e sociedade civil são partes reais do Estado, existências espirituais reais da vontade; elas são modos de existência do Estado; família e sociedade civil se fazem, a si mesmas, Estado. Elas são a força motriz. Segundo Hegel, ao contrário, elas são produzidas pela Ideia real. Não é seu próprio curso de vida que as une ao Estado, mas é o curso de vida da Ideia que as discerniu de si; e, com efeito, elas são a finitude dessa Ideia; elas devem a sua existência a um outro espírito que não é o delas próprio; elas são determinações postas por um terceiro, não autodeterminações; por isso, são também determinadas como “finitude”, como a finitude própria da “Ideia real”. A finalidade de sua existência não é essa existência mesma, mas a Ideia segrega de si esses pressupostos “para ser, a partir da idealidade delas, espírito real e infinito para si”, quer dizer, o Estado político não pode ser sem a base natural da família e a base artificial da sociedade civil; elas são, para ele, conditio sine qua non. Mas a condição torna-se o condicionado, o determinante torna-se o determinado, o produtor é posto como o produto de seu produto. A Ideia real só se degrada, rebaixa-se à “finitude” da família e da sociedade civil, para, por meio da suprassunção destas, produzir e gozar sua infinitude); ela divide, por conseguinte (para alcançar sua finalidade), nessas esferas, a matéria dessa sua realidade finita (dessa qual? Essas esferas são, de fato, a “sua realidade finita”, sua “matéria”?), os “indivíduos como a multidão” (“os indivíduos, a multidão” são aqui matéria do Estado, “deles provém o Estado”, essa sua procedência se expressa como um ato da Ideia, como uma “distribuição” que a Ideia leva a cabo com sua própria matéria. O fato é que o Estado se produz a partir da multidão, tal como ela existe na forma dos membros da família e dos membros da sociedade civil. A especulação enuncia esse fato como um ato da Ideia, não como a ideia da multidão, senão como o ato de uma ideia subjetiva e do próprio fato diferenciada), “de maneira que essa divisão, no singular (antes, o discurso era apenas o da divisão dos singulares nas esferas da família e da sociedade civil), pelas circunstâncias, pelo arbítrio etc. aparece mediada”. A realidade empírica é, portanto, tomada tal como é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico. O real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro conteúdo a não ser esse fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a finalidade lógica: “ser espírito real para si infinito”. Nesse parágrafo, encontra-se resumido todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em geral.”


“O importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da “disposição política”, faz o predicado.”


“A democracia é a verdade da monarquia, a monarquia não é a verdade da democracia. A monarquia é necessariamente democracia como inconsequência contra si mesma, o momento monárquico não é uma inconsequência na democracia. Ao contrário da monarquia, a democracia pode ser explicada a partir de si mesma. Na democracia nenhum momento recebe uma significação diferente daquela que lhe cabe. Cada momento é, realmente, apenas momento do dêmos inteiro. Na monarquia, uma parte determina o caráter do todo. A constituição inteira tem de se modificar segundo um ponto fixo. A democracia é o gênero da constituição. A monarquia é uma espécie e, definitivamente, uma má espécie. A democracia é conteúdo e forma. A monarquia deve ser apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo.
Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo. A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último. A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem; poder-se-ia dizer que, em um certo sentido, isso vale também para a monarquia constitucional, mas a diferença específica da democracia é que, aqui, a constituição em geral é apenas um momento da existência do povo e que a constituição política não forma por si mesma o Estado.
Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. A democracia, em um certo sentido, esta para as outras formas de Estado como o cristianismo para as outras religiões. O cristianismo é a religião χατεξοχην (preferencialmente), a essência da religião, o homem deificado como uma religião particular. A democracia é, assim, a essência de toda constituição política, o homem socializado como uma constituição particular; ela se relaciona com as demais constituições como o gênero com suas espécies, mas o próprio gênero aparece, aqui, como existência e, com isso, como uma espécie particular em face das existências que não contradizem a essência. A democracia relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com seu velho testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia.
Todas as demais formas estatais são uma forma de Estado precisa, determinada, particular. Na democracia, o princípio formal é, ao mesmo tempo, o princípio material. Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira unidade do universal e do particular. Na monarquia, por exemplo, na república como uma forma de Estado particular, o homem político tem sua existência particular ao lado do homem não político, do homem privado. A propriedade, o contrato, o matrimônio, a sociedade civil aparecem, aqui (Hegel desenvolve de modo bastante correto estas formas abstratas de Estado, mas ele crê desenvolver a ideia de Estado), como modos de existência particulares ao lado do Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se relaciona como forma organizadora, como entendimento que determina, limita, ora afirma, ora nega, sem ter em si mesmo nenhum conteúdo. Na democracia, o Estado político na medida em que ele se encontra ao lado desse conteúdo e dele se diferencia, é ele mesmo um conteúdo particular, como uma forma de existência particular do povo. Na monarquia, por exemplo, este fato particular, a constituição política, tem a significação do universal que domina e determina todo o particular. Na democracia o Estado, como particular, é apenas particular, como universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos. Os franceses modernos concluíram, daí, que na verdadeira democracia o Estado político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado político, como constituição, deixa de valer pelo todo.
Em todos os Estados que diferem da democracia o que domina é o Estado, a lei, a constituição, sem que ele domine realmente, quer dizer, sem que ele penetre materialmente o conteúdo das restantes esferas não políticas. Na democracia, a constituição, a lei, o próprio Estado é apenas uma autodeter minação e um conteúdo particular do povo, na medida em que esse conteúdo é constituição política.
Ademais, é evidente que todas as formas de Estado têm como sua verdade a democracia e, por isso, não são verdadeiras se não são a democracia.
Nos Estados antigos o Estado político constituiu o conteúdo estatal por exclusão das outras esferas; o Estado moderno é um compromisso entre o Estado político e o não político.
Na democracia o Estado abstrato deixou de ser o momento preponderante. A luta entre monarquia e república é, ela mesma, ainda, uma luta no interior do Estado abstrato. A república política é a democracia no interior da forma de Estado abstrata. A forma de Estado abstrata da democracia é, por isso, a república; porém, aqui, ela deixa de ser a constituição simplesmente política.
A propriedade etc., em suma, todo o conteúdo do direito e do Estado é, com poucas modificações, o mesmo na América do Norte assim como na Prússia. Lá, a república é, portanto, uma simples forma de Estado, como o é aqui a monarquia. O conteúdo do Estado se encontra fora dessas constituições. Por isso Hegel tem razão, quando diz: O Estado político é a constituição; quer dizer, o Estado material não é político. Tem-se, aqui, apenas uma identidade exterior, uma determinação recíproca. Dentre os diversos momentos da vida do povo, foi o Estado político, a constituição, o mais difícil de ser engendrado. A constituição se desenvolveu como a razão universal contraposta às outras esferas, como algo além delas. A tarefa histórica consistiu, assim, em sua reivindicação, mas as esferas particulares não têm a consciência de que seu ser privado coincide com o ser transcendente da constituição ou do Estado político e de que a existência transcendente do Estado não é outra coisa senão a afirmação de sua própria alienação. A constituição política foi reduzida à esfera religiosa, à religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em contraposição à existência terrena de sua realidade. A esfera política foi a única esfera estatal no Estado, a única esfera na qual o conteúdo, assim como a forma, foi o conteúdo genérico, o verdadeiro universal, mas ao mesmo tempo de modo que, como esta esfera se contrapôs às demais, também seu conteúdo se tornou formal e particular. A vida política, em sentido moderno, é o escolasticismo da vida do povo. A monarquia é a expressão acabada dessa alienação. A república é a negação da alienação no interior de sua própria esfera. Entende-se que a constituição como tal só é desenvolvida onde as esferas privadas atingiram uma existência independente. Onde o comércio e a propriedade fundiária ainda não são livres nem independentes, também não o é a constituição política. A Idade Média foi a democracia da não liberdade.
A abstração do Estado como tal pertence somente aos tempos modernos porque a abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A abstração do Estado político é um produto moderno.
Na Idade Média havia servos, propriedade feudal, corporações de ofício, corporações de sábios, etc.; ou seja, na Idade Média a propriedade, o comércio, a sociedade, o homem são políticos; o conteúdo material do Estado é colocado por intermédio de sua forma; cada esfera privada tem um caráter político ou é uma esfera política; ou a política é, também, o caráter das esferas privadas. Na Idade Média, a constituição política é a constituição da propriedade privada, mas somente porque a constituição da propriedade privada é a constituição política. Na Idade Média, a vida do povo e a vida política são idênticas. O homem é o princípio real do Estado, mas o homem não livre. É, portanto, a democracia da não-liberdade, da alienação realizada. A oposição abstrata e refletida pertence somente ao mundo moderno. A Idade Média é o dualismo real, a modernidade é o dualismo abstrato.”


“O momento objetivo para a sua destinação àquelas tarefas (a saber, as tarefas do Estado) é o conhecimento (o arbítrio subjetivo carece deste momento) e a demonstração de sua aptidão – demonstração que assegura ao Estado aquilo de que ele necessita e, como única condição, assegura simultaneamente, a cada cidadão, a possibilidade de se dedicar ao estamento universal.
Essa possibilidade de cada cidadão se tornar servidor público é, portanto, a segunda relação afirmativa entre sociedade civil e Estado, a segunda identidade. Ela é de natureza muito superficial e dualística. Todo católico tem a possibilidade de se tornar padre (isto é, de separar-se dos leigos, do mundo). Com isso, o clero, como potência externa, opõe-se menos ao católico? Que cada um tenha a possibilidade de adquirir o direito de uma outra esfera, demonstra apenas que sua própria esfera não é a realidade desse direito.”


“Não se deve condenar Hegel porque ele descreve a essência do Estado moderno como ela é, mas porque ele toma aquilo que é pela essência do Estado. Que o racional é real, isso se revela precisamente em contradição com a realidade irracional, que, por toda parte, é o contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é.”


“O mais profundo em Hegel é que ele percebe a separação da sociedade civil e da sociedade política como uma contradição. Mas o que há de falso é que ele se contenta com a aparência dessa solução e a faz passar pela coisa mesma, enquanto as “tais teorias”, por ele desprezadas, exigem a “separação” entre estamentos sociais e políticos, e com razão, pois elas exprimem uma consequência da sociedade moderna: nesta, o elemento político-estamental não é, precisamente, outra coisa senão a expressão fática da relação real de Estado e sociedade civil, a sua separação.”


“A constituição estamental, quando não é uma tradição da Idade Média, é a tentativa de lançar, em parte, o homem, dentro da própria esfera política, na limitação de sua esfera privada; de fazer da sua particularidade a sua cons ciência substancial e, como a distinção estamental existe politicamente, de também fazê-la novamente uma distinção social.
O homem real é o homem privado da atual constituição do Estado.
O estamento tem, geralmente, o significado de que a distinção, a separação, é a existência do indivíduo. O modo de vida, atividade etc. deste último, em lugar de fazer dele um membro, uma função da sociedade, faz dele uma exceção da sociedade, é o seu privilégio. Que essa distinção não seja apenas uma distinção individual, mas se concretize como comunidade, estamento, corporação, isso não apenas não suprime a sua natureza exclusiva, como é, antes, somente sua expressão. Em vez de ser função da sociedade, a função individual se converte em uma sociedade para si.
O estamento não só se baseia, como lei geral, na separação da sociedade, como também separa o homem de seu ser universal, faz dele um animal que coincide imediatamente com sua determinidade. A Idade Média é a história animal da humanidade, sua zoologia.
A era moderna, a civilização, comete o erro inverso. Ela separa do homem o seu ser objetivo, como um ser apenas exterior, material. Ela não toma o conteúdo do homem como sua verdadeira realidade.”


“Hegel, que tudo inverte, faz do poder governamental o representante, a emanação do príncipe. Porque, na Ideia, cuja existência tem de ser o príncipe, Hegel vê não a ideia real do poder governamental, não o poder governamental na sua idealidade, mas sim o sujeito que é a Ideia absoluta, que existe corporeamente no príncipe; então o poder governamental se torna um prolongamento místico da alma existente em seu corpo – no corpo do príncipe.
O príncipe deveria, por conseguinte, fazer-se, no poder legislativo, de termo médio entre o poder governamental e o elemento estamental; porém, o poder governamental é justamente o termo médio entre ele e a sociedade estamental, e esta é o termo médio entre ele e a sociedade civil! Como deveria ele mediar aqueles de quem ele tem necessidade, como seu termo médio, para não ser um extremo unilateral?
Aqui se evidencia todo o absurdo desses extremos, que desempenham alternadamente ora o papel de extremos, ora o de termo médio. São cabeças de Jano, que ora se mostram de frente, ora de costas, e que de frente têm um caráter diverso do de costas. Aquilo que se determina primeiramente como termo médio entre dois extremos comporta-se, então, ele mesmo, como extremo, e um dos dois extremos, que através daquele era mediado com o outro, mostra-se, agora, como extremo (porque em sua distinção com o outro extremo) entre o seu extremo e o seu termo médio. É uma complementação recíproca. Tal como um homem que se encontra entre dois litigantes e, então, um destes, por sua vez, coloca-se entre o intermediário e o outro litigante. É a história do homem e da mulher que brigavam e do médico que queria servir de conciliador entre eles, com o que, então, a mulher devia se colocar entre o médico e o marido e, este, entre a mulher e o médico. Tal como o leão no Sonho de uma noite de verão, que exclama: “Eu sou um leão e não sou um leão, eu sou Marmelo”. Assim, cada extremo é, aqui, ora o leão da oposição, ora o Marmelo da mediação. Quando um extremo grita: “agora eu sou o meio”, os outros dois não podem tocar nele, mas apenas golpear aquele que, antes, era o extremo. Trata-se de uma sociedade belicosa em seu âmago, mas que tem muito medo das manchas roxas para se bater realmente, e os dois, que querem brigar, se ajustam de tal modo que o terceiro, que se encontra entre eles, deva receber as pancadas; mas, então, um dos dois apresenta-se novamente como o terceiro, e, diante de tamanha precaução, eles não chegam a qualquer decisão. Esse sistema também é feito de tal forma que o mesmo homem que quer espancar seu oponente deve, por outro lado, protegê-lo das pancadas do outro oponente, e, nessa dupla ocupação, não atinge a realização de sua tarefa. É notável que Hegel, que reduz esse absurdo da mediação à sua expressão abstrata, lógica, por isso não falseada, intransigível, o designe, ao mesmo tempo, como o mistério especulativo da lógica, como a relação racional, como o silogismo racional. Extremos reais não podem ser mediados um pelo outro, precisamente porque são extremos reais. Mas eles não precisam, também, de qualquer mediação, pois eles são seres opostos. Não têm nada em comum entre si, não demandam um ao outro, não se completam. Um não tem em seu seio a nostalgia, a necessidade, a antecipação do outro. (Mas quando Hegel trata a universalidade e a singularidade, os momentos abstratos do silogismo, como opostos reais, é esse precisamente o dualismo fundamental da sua lógica. O resto sobre isso pertence à crítica da lógica hegeliana.)”


“A falsa identidade, a identidade fragmentária, parcial, entre natureza e espírito, corpo e alma, aparece como encarnação. Como o nascimento só dá ao homem a existência individual e o põe, em primeiro lugar, apenas como indivíduo natural e, todavia, já que as determinações do Estado, como o poder legislativo, etc. são produtos sociais, nascidos da sociedade e não do indivíduo natural, então o chocante, o milagre é precisamente a identidade imediata, a coincidência imediata entre o nascimento individual e o indivíduo como individuação de uma determinada posição e função sociais, etc. Nesse sistema, a natureza faz, imediatamente, reis, ela faz, imediatamente, pares, etc., assim como faz olhos e narizes. O chocante é ver como produto imediato do gênero físico o que é somente produto do gênero autoconsciente. Eu sou humano por nascimento, sem o consentimento da sociedade; mas é apenas por meio do consentimento geral que esse nascimento determinado se torna nascimento de um par ou de um rei. Somente o consentimento faz do nascimento dessa pessoa o nascimento de um rei; assim, é o consenso e não o nascimento que faz o rei. Se é o nascimento, diferentemente das outras determinações, que dá imediatamente ao homem uma posição, então é seu corpo que faz dele este funcionário social determinado. Seu corpo é seu direito social. Nesse sistema, a dignidade corporal do homem ou a dignidade do corpo humano (o que pode, em pormenor, ser assim concebido: a dignidade do elemento natural, físico, do Estado) aparece de modo que as dignidades determinadas e, em verdade, as mais altas dignidades sociais, são as dignidades de corpos determinados, predestinados por nascimento. Por isso, é natural, na nobreza, o orgulho do sangue, da ascendência, em suma, da biografia de seu corpo; e é naturalmente essa concepção zoológica que tem na heráldica a sua ciência correspondente. O segredo da nobreza é a zoologia.”


“Na Alemanha, a crítica da religião esta, no essencial, terminada; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica.
O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si mesmo, já não será tentado a encontrar apenas a aparência de si, o inumano, lá onde procura e tem de procurar sua autêntica realidade.
Este é o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo.
A supressão da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche. A crítica da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo.
Portanto, a tarefa da história, depois de desaparecido o além da verdade, é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é, depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienação humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política.”


“O moderno ancien régime alemão é apenas o comediante de uma ordem mundial cujos heróis reais estão mortos. A história é sólida e passa por muitas fases ao conduzir uma forma antiga ao sepulcro. A última fase de uma forma histórico-mundial é sua comédia. Os deuses da Grécia, já mortalmente feridos na tragédia Prometeu acorrentado, de Ésquilo, tiveram de morrer uma vez mais, comicamente, nos diálogos de Luciano. Por que a história assume tal curso? A fim de que a humanidade se separe alegremente do seu passado.”


“A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, portanto, de sua energia prática, é o fato de ela partir da superação positiva da religião. A crítica da religião tem seu fim com a doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem, portanto, com o imperativo categórico de subverter todas as relações em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível. Relações que não podem ser mais bem retratadas do que pela exclamação de um francês acerca de um projeto de imposto sobre cães: “Pobres cães! Querem vos tratar como homens!”.”


“Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção porque pôs no seu lugar a servidão por convicção. Quebrou a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da religiosidade o homem interior. Libertou o corpo dos grilhões, prendendo com grilhões o coração.”


“A teoria só é efetivada num povo na medida em que é a efetivação de suas necessidades.”


“O sonho utópico da Alemanha não é a revolução radical, a emancipação humana universal, mas a revolução parcial, meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Em que se baseia uma revolução parcial, meramente política? No fato de que uma parte da sociedade civil se emancipa e alcança o domínio universal; que uma determinada classe, a partir da sua situação particular, realiza a emancipação universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa facilmente adquirir dinheiro e cultura.
Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar esse papel sem despertar, em si e nas massas, um momento de entusiasmo em que ela se confraternize e misture com a sociedade em geral, confunda-se com ela, seja sentida e reconhecida como sua representante universal; um momento em que suas exigências e direitos sejam, na verdade, exigências e direitos da sociedade, em que ela seja efetivamente o cérebro e o coração sociais. Só em nome dos interesses universais da sociedade é que uma classe particular pode reivindicar o domínio universal. Para alcançar essa posição emancipatória e, com isso, a exploração política de todas as esferas da sociedade no interesse de sua própria esfera, não bastam energia revolucionária e autossentimento espiritual. Para que a revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular da sociedade civil coincidam, para que um estamento se afirme como um estamento de toda a sociedade, é necessário que, inversamente, todos os defeitos da sociedade sejam concentrados numa outra classe, que um determinado estamento seja o do escândalo universal, a incorporação das barreiras universais; é necessário que uma esfera social particular se afirme como o crime notório de toda a sociedade, de modo que a libertação dessa esfera apareça como uma autolibertação universal. Para que um estamento seja par excellence o estamento da libertação é necessário, inversamente, que um outro estamento seja o estamento inequívoco da opressão. O significado negativo-universal da nobreza e do clero francês condicionou o significado positivo-universal da classe burguesa, que se situava imediatamente ao lado deles e os confrontava.
Na Alemanha, porém, faltam a todas as classes particulares não apenas a consistência, a penetração, a coragem e a intransigência que delas fariam o representante negativo da sociedade. A todos os estamentos faltam, ainda, aquela grandeza de alma que, mesmo que por um momento apenas, identifica-se com a alma popular, aquela genialidade que anima a força material a tornar-se poder político, aquela audácia revolucionária que lança ao adversário a frase desafiadora: não sou nada e teria de ser tudo. A cepa principal da moralidade e da honradez alemãs, não apenas das classes como dos indivíduos, é formada por aquele modesto egoísmo que afirma sua estreiteza e deixa que ela seja afirmada contra si mesmo. A relação entre as diferentes esferas da sociedade alemã não é, portanto, dramática, mas épica. Cada uma delas começa a conhecer a si mesma e a se estabelecer ao lado das outras com suas reivindicações particulares, não a partir do momento em que é oprimida, mas desde o momento em que as condições da época, sem qualquer ação de sua parte, criam um novo substrato social que ela pode, por sua vez, oprimir. Até mesmo o autossentimento moral da classe média alemã assenta apenas sobre a consciência de ser o representante universal da mediocridade filistina de todas as outras classes. Por conseguinte, não são apenas os reis alemães que sobem ao trono inoportunamente; cada esfera da sociedade civil sofre uma derrota antes de alcançar sua vitória, cria suas próprias barreiras antes de ter superado as barreiras que ante ela se erguem, manifesta sua essência mesquinha antes que sua essência generosa tenha conseguido se manifestar e, assim, a oportunidade de desempenhar um papel importante desaparece antes mesmo de ter existido, de modo que cada classe, tão logo inicia a luta contra a classe que lhe é superior, enreda-se numa luta contra a classe inferior. Por isso, o principado entra em luta contra a realeza, o burocrata contra o nobre, o burguês contra todos eles, enquanto o proletário já começa a entrar em luta contra os burgueses. A classe média dificilmente ousa conceber a ideia da emancipação a partir de seu próprio ponto de vista, e o desenvolvimento das condições sociais, assim como o progresso da teoria política, já declaram esse ponto de vista como antiquado ou, no mínimo, problemático.”


“Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis a nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano, que não se encontre numa oposição unilateral às consequências, mas numa oposição abrangente aos pressupostos do sistema político alemão; uma esfera, por fim, que não pode se emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas – uma esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado.”
O que constitui o proletariado não é a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza produzida artificialmente, não a massa humana mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a massa que provém da dissolução aguda da sociedade e, acima de tudo, da dissolução da classe média.
Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem mundial até então existente, ele apenas revela o mistério de sua própria existência, uma vez que ele é a dissolução fática dessa ordem mundial. Quando o proletariado exige a negação da propriedade privada, ele apenas eleva a princípio da sociedade o que a sociedade elevara a princípio do proletariado, aquilo que nele já está involuntariamente incorporado como resultado negativo da sociedade. Assim, o proletário possui em relação ao mundo que está a surgir o mesmo direito que o rei alemão possui em relação ao mundo já existente, quando este chama o povo de seu povo ou o cavalo de seu cavalo. Declarando o povo como sua propriedade privada, o rei expressa, tão somente, que o proprietário privado é rei.
Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais, e tão logo o relâmpago do pensamento tenha penetrado profundamente nesse ingênuo solo do povo, a emancipação dos alemães em homens se completará.”

2 comentários:

Doney disse...

Para melhor compreensão e contextualização da presente obra, recomendo fortemente – antes da leitura – as palestras:
https://www.youtube.com/watch?v=rGHPolphKIg e/ou https://www.youtube.com/watch?v=7bM4y9hsJS4
*
Os trechos da obra de Hegel à qual Marx responde, podem ser vistos aqui:
http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2016/09/principios-da-filosofia-do-direito.html

Sugestão de Livros disse...

Trechos densos.