terça-feira, 27 de setembro de 2016

Confissões / De Magistro (Parte II) – Santo Agostinho

Editora: Nova Cultural
ISBN: 85-13-00848-6
Tradução: J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (Confissões) e Ângelo Ricci (De Magistro)
Consultor da Introdução: José Américo Motta Pessanha
Opinião: Confissões: ★★★★☆ / De Magistro: ★☆☆☆☆
Páginas: 416
Sinopse: Confissões – ver Parte I / De magistro: Este diálogo didático entre o autor e seu filho, Adeodato, foi escrito depois de seu batismo, em 389. Utilizando o método de Sócrates, Agostinho demonstra a seu filho, que morrerá dois anos mais tarde, que não são as palavras do mestre que nos conduzem à verdade: estas podem ser mal interpretadas e não passam de um meio para expressar a verdade que está dentro de nós. Para julgar sobre a veracidade das palavras do mestre é preciso envolver-se na verdade interior inspirada por Deus. Cada homem está assim envolvido por esta palavra divina, na qual deve reconhecer seu único mestre.



“Assim como as adulações dos amigos nos pervertem, do mesmo modo as censuras dos inimigos nos reformam.”


“Próximo já do dia em que minha mãe, Mônica, ia sair desta vida — dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos —, sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos.
Falávamos a sós, muito docemente, “esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro¹”. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, “que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou²”. Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste “da Vossa fonte, a fonte da Vida³”, que está em Vós, para que, aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.
Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam, e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça menção.
Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até o próprio céu, donde o Sol, a Lua e as estrelas iluminam a terra. Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela ter sido, nem haver de ser, pois simplesmente “é”, por ser eterna. Ter sido e haver de ser não são próprios do Ser eterno.
Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração. Suspiramos e deixamos lá agarradas “as primícias do nosso espírito4”. Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo, que subsiste por si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando?
Dizíamos pois: Suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu. Suponhamos que ela guarda silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.
Imaginemos que nessa mesma alma existe o silêncio completo porque, se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: “Não nos fizemos a nós mesmos, fêz-nos O que permanece eternamente5”. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Deus sozinho fala, não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.
Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabamos de experimentar, atingindo, num relance de pensamento, a Eterna Sabedoria, que permanece imutável sobre todos os seres. Se esta contemplação se continuasse e se todas as outras visões de ordem muito inferior cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a absorvesse, de tal modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo, pelo qual suspiramos: não seria isto a realização do “entra no gozo do teu Senhor6”? E quando sucederá isto? Será quando todos “ressuscitarmos”?
Mas então não “seremos todos transformados7”?
Ainda que isto disséssemos, não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis, naquele dia, quando assim conversávamos. Minha mãe então disse: Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto, nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar um pouco mais a vida: para ver-te católico antes de morrer. Deus concedeu-me esta graça superabundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servires ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?
Não me lembro bem do que lhe respondi a respeito destas palavras. Dentro de cinco dias ou pouco mais, recolhia-se ao leito, com febre. Num daqueles dias da sua doença perdeu os sentidos e, durante um curto espaço de tempo, não dava acordo dos presentes.
Enfim, no nono dia da doença, aos cinquenta e seis anos de idade, e no trigésimo terceiro de minha vida, aquela alma piedosa e santa libertou-se do corpo8.”
1: Flp 3, 13. / 2: 1 Cor 2, 9. / 3: Sl 30, 10. / 4: Rom 8, 23. / 5: Sl 99, 3, 5. / 6: Mt 25, 21. / 7: 1 Cor 15,51. / 8:  Mônica recebeu da Igreja e da tradição cristã o título de santa. O seu corpo foi sepultado na cripta da Igreja de Santa Áurea, em Óstia, onde foi descoberto em 1430 e trasladado para Roma, primeiro para a Igreja de São Trifão e mais tarde para a igreja que lhe foi dedicada. (N. do T.)


“Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos conheça como de Vós sou conhecido.”


“Que a vossa misericórdia supere a vossa justiça.” (Tg 2, 13)


Quem é Deus?
A minha consciência, Senhor, não duvida, antes tem a certeza de que Vos amo. Feristes-me o coração com a vossa palavra e amei-Vos. O céu, a terra e tudo o que neles existe dizem-me por toda parte que Vos ame. Não cessam de o repetir a todos os homens, para que sejam inescusáveis. Compadecer-Vos-eis mais profundamente daquele de quem já Vos compadecestes, e concedereis misericórdia àquele para quem já fostes misericordioso. De outro modo, o céu e a terra só a surdos cantariam os vossos louvores.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus.
Quem é Deus?
Perguntei-o à terra e disse-me: “Eu não sou”. E tudo o que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e os répteis animados e vivos e responderam-me: “Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com os seus habitantes respondeu-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou o teu Deus”. Interroguei o céu, o Sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: “Nós também não somos o Deus que procuras”. Disse a todos os seres que me rodeiam as portas da carne: “Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos, alguma coisa d’Ele”. E exclamaram com alarido: “Foi Ele quem nos criou¹”.
A minha pergunta consistia em contemplá-las; a sua resposta era a sua beleza.
Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei-me: “E tu, quem és?” “Um homem” respondi. Servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra interior. Destas duas substâncias, a qual deveria eu perguntar quem é o meu Deus, que já tinha procurado com o corpo, desde a terra ao céu, até onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos? À parte interior, que é a melhor. Na verdade, a ela é que os mensageiros do corpo remetiam, como a um presidente ou juiz, as respostas do céu, da terra e de todas as coisas que neles existem, e que diziam: “Não somos Deus; mas foi Ele quem nos criou”. O homem interior conheceu esta verdade pelo ministério do homem exterior. Ora, eu, homem interior — alma —, eu conheci-a também pelos sentidos do corpo. Perguntei pelo meu Deus à massa do Universo, e respondeu-me: “Não sou eu; mas foi Ele quem me criou”.
Mas não se manifesta esta beleza a todos os que possuem sentidos perfeitos? Porque não fala a todos do mesmo modo? Os animais, pequenos ou grandes, veem a beleza, mas não a podem interrogar. Não lhes foi dada a razão — juiz que julga o que os sentidos lhe anunciam. Os homens, pelo contrário, podem-na interrogar, para verem as perfeições invisíveis de Deus, considerando-as nas obras criadas². Submetem-se todavia a estas pelo amor, e, assim, já não as podem julgar. Nem a todos os que as interrogam respondem as criaturas, mas só aos que as julgam. Não mudam a voz, isto é, a beleza, se um a vê simplesmente, enquanto outro a vê e a interroga. Não aparecem a um duma maneira e a outro doutra... Mas, aparecendo a ambos do mesmo modo, para um é muda e para outro fala. Ou antes, fala a todos, mas somente a entendem aqueles que comparam a voz vinda de fora com a verdade interior.
Ora, a verdade diz-me: “O teu Deus não é o céu, nem a terra, nem corpo algum”. E a natureza deles exclama: “Repara que a matéria é menor na parte que no todo”. Por isso te digo, ó minha alma, que és superior ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo, dando-lhe vida, o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo. Além disso, o teu Deus é também para ti vida da tua vida.
1: Sl 99,3. / 2: Rom 1, 20.


“Por que é que a verdade gera o ódio¹? Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz, que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa querem que o que amam seja a verdade. Como não querem ser enganados, não se querem convencer de que estão em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa daquilo que amam em vez da verdade. Amam-na quando os ilumina, e odeiam-na quando os repreende². Não querendo ser enganados e desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e odeiam-na quando os descobre. Porém a verdade castigá-los-á, denunciando todos os que não quiserem ser manifestados por ela. Mas nem por isso ela se lhes há de mostrar.
É assim, é assim, é assim também a alma humana: cega, lânguida, torpe e indecente, procura ocultar-se e não quer que nada lhe seja oculto. Em castigo, não se pode ocultar à verdade, mas oculta-se-lhe. Apesar de ser tão infeliz, antes quer encontrar a alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Será feliz quando, liberta de todas as moléstias, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.”
1: Terêncio, Ândria, 68. / 2: Jo 5, 35; 3, 20.


“Ó Verdade, Vós em toda parte assistis a todos os que Vos consultam e ao mesmo tempo respondeis aos que Vos interrogam sobre os mais variados assuntos. Respondeis com clareza, mas nem todos Vos ouvem com a mesma lucidez. Todos Vos consultam sobre o que desejam, mas nem sempre ouvem o que querem. O Vosso servo mais fiel é aquele que não espera nem prefere ouvir aquilo que quer, mas se propõe aceitar, antes de tudo, a resposta que de Vós ouviu.”


“Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.”


“Daqui se vê claramente quanto a volúpia e curiosidade agem em nós pelos sentidos: o prazer corre atrás do belo, do harmonioso, do suave, do saboroso, do brando; a curiosidade, porém, gosta às vezes de experimentar o contrário dessas sensações, não para se sujeitar a enfados dolorosos, mas para satisfazer a paixão de tudo examinar e conhecer.
Que gosto há em ver um cadáver dilacerado, a que se tem horror? Apesar disso, onde quer que esteja, toda a gente lá acorre, ainda que, vendo-o, se entristeça e empalideça. Depois, até em sonhos temem vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado a ir examiná-lo, quando estavam acordados, ou como se qualquer anúncio de beleza os tivesse persuadido a lá irem.
O mesmo se dá com os outros sentidos. Iríamos longe se os percorrêssemos a todos. Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se no teatro cenas monstruosas de superstição. Dela nasce o desejo de perscrutar os segredos preternaturais, que afinal nada nos aproveita conhecer, e que os homens anseiam saber, só por saber.
É ainda a curiosidade que, com o mesmo intuito de alcançar uma ciência perversa, faz o homem recorrer às artes mágicas. Enfim é ela que, até na religião, nos arrasta a tentar a Deus, pedindo-lhe milagres e prodígios, não porque os exija a salvação das almas, mas só porque se deseja fazer a experiência.”


“Uma coisa é levantar-me após a queda, e outra coisa é não cair nunca.
De tais misérias está repleta a minha vida. A minha única esperança é a vossa infinita misericórdia. Como o nosso coração é recipiente de todas estas misérias e porque traz essa imensa multidão de vaidades, muitas vezes as nossas orações interrompem-se e perturbam-se.
Enquanto na vossa presença elevamos até junto dos vossos ouvidos a voz da nossa alma, não sei donde provêm tantos pensamentos fúteis, que se despenham sobre nós e nos cortam a atenção em coisa tão importante.”


“Que Vos hei de eu, Senhor, confessar, neste gênero de tentações? Que me deleito muito com os louvores? Mas ainda me deleito mais com a verdade do que com os louvores! Pois, se me dessem à escolha ou ser um doido que se engana em todas as coisas, mas que é louvado por todos, ou ser um homem seguríssimo da verdade, mas por toda gente escarnecido, bem sei o que escolheria. Portanto, não quereria que o louvor saído duns lábios alheios aumentasse o gosto que experimento pela boa obra, seja ela qual for. Porém, tenho de confessar que não só o louvor lhe aumenta o deleite, mas também que o vitupério lho diminui.
Quando me perturbo com esta minha miséria, penetra-me na mente uma desculpa cuja natureza Vós conheceis, meu Deus. Torno-me duvidoso e perplexo ante ela.
Pois Vós não só nos ordenastes a continência, que nos ensina que coisas devemos afastar da nossa afeição, mas também preceituastes a justiça, que nos ensina para onde havemos de dirigir o nosso amor. Não quisestes que nos amássemos somente a nós, mas também ao próximo. Ora, muitas vezes, quando retamente me deleito no louvor que é dado por uma pessoa inteligente, parece que me comprazo no aproveitamento e nas esperanças de que dá mostras. E, pelo contrário, entristeço-me com a sua maldade, quando a ouço censurar o que ignoro ou o que é bom.
Algumas vezes também me contristo com os louvores que me dirigem, quando enaltecem em mim coisas que me desagradam, ou quando apreciam bens somenos e transitórios, com maior estima do que merecem. Mas, repito de novo, como hei de eu saber se este sentimento me aflige por causa de eu não querer que o meu admirador pense a meu respeito de modo diverso do que eu penso?
Será, não porque me deixe arrastar pelo valor e utilidade desse meu admirador, mas porque aqueles bens que em mim me agradam me são mais saborosos quando agradam também aos outros? De certo modo, não sou louvado quando a minha opinião, a meu respeito, não é elogiada, porque ou enchem de encômios as coisas que me desagradam, ou louvam ainda mais as coisas que menos me comprazem. Sobre este ponto não sou eu um enigma para comigo mesmo?”


“Por isso, patenteamos o nosso amor para convosco, confessando-Vos as nossas misérias e as vossas misericórdias, a fim de que ponhais termo à obra já começada da nossa libertação e sejamos felizes em Vós, cessando de ser miseráveis em nós.”


“Quem afirma tais coisas, ó “Sabedoria de Deus¹”, Luz das inteligências, ainda não compreendeu como se realiza o que se faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volita ao redor das ideias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão.
A esse, quem o poderá prender e fixar, para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo, que nunca para? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros.
Ora, estes não podem alongar-se simultaneamente.
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve explicar isto? Poderá a atividade da minha língua conseguir pela palavra realizar empresa tão grandiosa?”
Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a vossa eternidade sempre presente². Dominais todo o futuro porque está ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. “Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os vossos anos não morrem”. Os vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos vão e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os vossos anos são como um só dia³, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se cotidiano, mas é um perpétuo “hoje”, porque este vosso “hoje” não se afasta do “amanhã”, nem sucede ao “ontem”. O vosso “hoje” é a eternidade. Por isso gerastes coeterno o vosso Filho, a quem dissestes: “Eu hoje te gerei4”. Criastes todos os tempos e existis antes de todos os tempos. Não é concebível um tempo em que possa dizer-se que não havia tempo.”
1: Ef 3, 10. / 2: Sl 101, 28. / 3: 2 Pdr 3, 8. / 4: Sl 2,7; Hbr 5,5.


O que é o tempo?
Não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo.
Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.


“Por isso, na maior parte dos casos, a pobreza da inteligência humana manifesta-se na abundância de palavras, porque a investigação é mais loquaz no buscar do que no descobrir, o pedir demora mais do que o obter e a mão, batendo à porta, cansa-se mais do que recebendo. Mas temos a vossa promessa, e quem a destruirá? “Se Deus é por nós, quem contra nós¹?” “Pedi e recebereis; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Com efeito, todo aquele que pede recebe; o que busca, encontra; e a quem bate, abrir-se-á².”
Estas são as vossas promessas. Quem temerá ser iludido, quando é a própria Verdade quem promete?”
1: Gên 1, 1. / 2: Rom 8,3l.


“Os soberbos amam somente o próprio parecer, não por ser verdadeiro, mas por ser o deles. Se assim não fosse, estimariam igualmente a opinião dos outros quando é verdadeira, assim como eu estimo o que eles dizem, quando afirmam a verdade, e, por esse motivo, já não é um bem exclusivo deles. Se amam essa opinião por ser a verdade, pertence-lhes a eles e a mim. É um bem comum, pertencente a todos os amantes da verdade.”


“Quando, porém, lemos que o homem “julga todas as coisas”, isto significa que tem poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais domésticos e feras, sobre toda a terra, e sobre os répteis que “pela terra se arrastam¹”. Este poder, exerce-o por meio da inteligência, pela qual percebe o que é do Espírito de Deus. Mas o “homem, posto em lugar de honra, não entendeu a sua grandeza e igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles²”. Por isso, na vossa Igreja, meu Deus, tanto os que presidem como os que obedecem julgam pelo Espírito segundo a graça que a cada um concedestes, porque “somos obra vossa e criados para obras boas³”. Desse modo formastes a criatura humana, o homem e a mulher na vossa graça espiritual, sem que no entanto houvesse na ordem do espírito distinção de sexo entre eles, porque “não há judeu, nem grego, nem escravo, nem homem livre4”.
Portanto, os “espirituais”, quer os que presidem, quer os que obedecem, julgam espiritualmente. A sua inteligência não se exerce sobre os pensamentos intelectuais que brilham no firmamento, pois não lhes pertence formular juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam da vossa Escritura, ainda que esta contenha obscuridades, porque lhe devemos sujeitar a inteligência. Temos como certo ainda mesmo o que permanece velado à nossa compreensão, e acreditamos que isso não foi dito com justiça e com verdade.
Deste modo o homem, se bem que já espiritual e renovado “no conhecimento de Deus, segundo a imagem d’Aquele que o criou5”, deve ser cumpridor e não juiz da lei6.”
1: Gên I, 26. / 2: Sl 48,21 / 3: Ef 2, 10. / 4: Col 3, 11. / 5: Col 3, 10. / 6: Tg 4, 11.


“Contudo, Vós, meu Deus e único Bem, nunca deixastes de nos beneficiar. Com a vossa graça algumas obras realizamos; mas estas não são eternas. Depois de as termos praticado, esperamos repousar na vossa grande santificação. Vós sois o Bem que de nenhum bem precisa. Estais sempre em repouso, porque sois Vós mesmo o vosso descanso.
Quem dos homens poderá dar a outro homem a inteligência deste mistério? Que anjo a outro anjo? Que anjo ao homem? A Vós se peça, em Vós se procure, à vossa porta se bata. Deste modo, sim, deste modo se há de receber, se há de encontrar e se há de abrir a porta do mistério.”

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De Magistro

“Ver a virtude e não a ter é um suplício.”


“Diz o profeta: “Se não credes, não entendereis¹”; certamente não diria isto se não julgasse necessário pôr uma diferença entre as duas coisas. Portanto, creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço. E não ignoro quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço, utilidade que encontro também na história dos três jovens². Pois, não podendo saber a maioria das coisas, sei porém quanto é útil acreditar nelas. No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior³, isto é: a virtude incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido pela sua própria boa ou má vontade. E se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que nos é permitido distingui-las.”
1: Is 7, 9. / 2: Hananias, Misael e Azarias se recusaram a adorar um ídolo, e por isso foram jogados na fornalha ardente, mas escaparam milagrosamente ilesos. / 3: São Paulo, Ef 3, 16, 17.

2 comentários:

Sugestão de Livros disse...

Interessante, mas não tocante.

Anônimo disse...

Perfeito! Muito obrigada!