segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Monstros e Monstrengos do Brasil: Ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII (Parte I) – Afonso de Escragnolle Taunay

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-7164-792-3

Organização: Mary del Priore

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 270

Sinopse: Um peixe que tem pedras no lugar dos miolos, um peixe-monstro que não tem intestinos, um molusco que menstrua como as mulheres, um gambá cujo fedor deixa um homem ou um cavalo desacordado durante três ou quatro horas, os porcos monteses que têm o umbigo nas costas e que cometem suicídio coletivo, um lagarto que se alimenta de vento, um lagarto que envenena as frutas a um simples toque, um filhote de onça que rasga o útero materno ao nascer, uma onça marinha que é metade jaguar e metade peixe, os javalis que respiram por um buraco no dorso: as feras são muitas e assustadoras.

Afonso d’Escragnolle-Taunay (1876-1958) apresenta em Monstros e monstrengos do Brasil uma compilação paciente e detalhista da fauna fantástica brasileira. Sua fonte é a literatura que se escreveu sobre o Brasil desde o descobrimento, incluindo clássicos como os Diálogos das grandezas do Brasil, documento anônimo do século XVII, e livrinhos como a Narrativa impressionadora das extraordinárias aventuras e sofrimentos de seis desertores da artilharia da guarnição de Santa Helena no ano de 1799, escrito por um certo John Brown.

O trabalho de Taunay tem um mérito em especial: transformar o “imaginário sobre o Brasil em instrumento superior de conhecimento”, como escreve Mary Del Priore, organizadora deste volume.

Distantes da corrente que na mesma época inaugurava na França a história das mentalidades e da cultura, seus escritos trazem uma ironia divertida em relação ao objeto e um empenho em separar o joio do trigo, em desmontar as “invencionices”, em triar a verdade. Ao mesmo tempo, entretanto, há neles uma simpatia pelos relatos dos antigos, uma predisposição para tratá-los como documento. Isso basta para que ocupem um lugar pioneiro e permanente na historiografia brasileira.



“A única extravagância na parte dos peixes em A Histoite de la mission des pères capucins em l’isle de Maragnan é a que diz respeito aos poraquês, peixes a que não fazem a menor mossa as mais violentas cutiladas, tanto lhe são moles e gelatinosos os tecidos. Impossível se torna trespassá-lo. Passando aos mamíferos, reedita frei Cláudio a velha história de que nos nossos suídeos têm uma espécie de válvula no centro da coluna vertebral “por onde exalam suavíssimo odor”. Ainda bem.”

 

 

“É preciso lembrar, porém, quanto as narrativas mentirosas, exageradas ou crédulas dos viajantes contribuíram para entreter uma atmosfera de crendices, por vezes grosseiríssimas, em torno dos assuntos da história natural.

Nem sempre seriam desleais os informantes dos tratadistas, frequentemente até conduzidos pela própria tendência da boa-fé universal em acreditar nos depoimentos de informantes boçais e selvagens, sugestionados pelas superstições.

Daí essa enorme massa de escritores sobre as terras recentemente descobertas, onde formigam as mais extravagantes baboseiras.”

 

 

“O desprezo é o mais próprio castigo para a soberba.” (Padre Antonio Vieira)

 

 

“Na espécie humana as questões de simpatia se mostravam curiosíssimas.

Por exemplo, em Bruxelas, havendo certo sujeito rico perdido, em uma rixa, o nariz, comprou-o de um pobre-diabo, a quem o cirurgião amputou o apêndice, transferindo-o ao rosto do desfigurado rixento. Pois bem, ia tudo às mil maravilhas quando, passados treze meses, começou o tal nariz comprado a apodrecer, caindo logo depois. Por quê? Porque o desnarigado que o vendera havia morrido!

Coisa muitíssimo sabida: os picados da tarântula só ficavam curados quando os aracnídeos agressores morriam!

Também coisa incontestável: os pós simpáticos deitados à urina de um enfermo e metidos em uma garrafa, bem tapada e coberta de cinza quente, faziam o doente transpirar apenas se aquecia o líquido. E o cirurgião-mor, dr. Torres, afiançava que “os efeitos de tais eflúvios eram tão poderosos que se faziam sentir até uma légua de distância”!

Mas simplesmente pasmoso vem a ser o que o cavaleiro professo na Ordem de Cristo e fidalgo da Casa Real, Pedro de Norberto de Aucourt e Padilha relata do caso de uma criança castigada, de certa e pouco olorosa travessura, por meio de simpatia.

Ouçamos-lhe as próprias e interessantes palavras neste relato em que pessoalmente figura: “Pouco tempo há que no jardim de minha quinta, achando-se entre as murtas um asqueroso depósito, mui oposto à fragrância das flores, lhe deitaram um pouco de brasido para castigar o autor dessa imunda travessura; e não passaram dois dias, que uma criança que confessou tê-la cometido não estivesse com a parte inferior tão queimada, que fazia lástima vê-la e foi necessário curá-la”. (...)

Os mordidos das aranhas da Albânia morriam, uns rindo, inextinguivelmente e os outros chorando interminavelmente.

Tal o caso relatado pelos doutores Ludovico Bartema e o Odoardo Barbosa. Certo rei de Cambaia, criado desde pequeno com veneno, era tão pestilento, em seus humores, que tudo quanto tocava deixava apestado. Bastava cuspir em uma pessoa para a matar! “Nenhuma de suas mulheres chegou a ter mais vida que a noite de seu noivado”.

Assim Sua Majestade de Cambaia se mostrava mil vezes mais mortífero do que o Barba Azul, que praticava a infância da arte da poligamia com seu famoso gabinete de mulheres dessangradas.

Aos fenômenos da simpatia se prendiam os casos intitulados de “vistas perniciosas”. Enquadrava-se aí aquele a que se referiam notáveis autores, como Plínio e Solino: a da cabra Catolesa, da fauna líbica, cujo bafo envenenava o ar e fazia morrer os viventes que a ela se chegavam. Não havia muito, toda a França se admirara do caso relatado pelo Journal de Verdun em novembro de 1735, verdadeiramente prodigioso. O do sujeito que pondo-se a fitar um sapo fazia com que o animal, dentro em pouco, caísse em convulsões e logo depois morresse. Mas de repente, um belo dia, se soubera que, repetindo experiência com certo sapo, pusera-se o batráquio a olhá-lo com tal arrogância, que o fizera cair, desmaiado a ponto de todos o imaginarem morto.

Os romanos, segundo Plínio, sabiam da existência, na Cítia, de mulheres que tinham as meninas dos olhos dobradas, fazendo morrer todas as pessoas a quem fitavam.

Ainda em 1710 a Academia das Ciências de França abraça a opinião de que dos ovos de galinha sem gemas gerava-se o basilisco, o pestífero lagarto de tão perigosos olhares.

Em Nápolis queimara-se, em praça pública, um sujeito que prostrava morta qualquer pessoa, com a simples vista. Ao começar o suplício, confessara que destarte trucidara um bispo!

Mas não faltava quem objetasse: por que então não matava os juízes que o haviam condenado?”

 

 

“Doenças extravagantes relata-nos a Aucourt em barda, citando a de certo pastor francês, homem alto e rijo, a quem em tempo os ossos lhe amoleceram a ponto de poder dobrá-los! A sua estatura minguara acabando o pobre de ficar do tamanho de um menino de três anos.

Continuando a sua resenha de fatos extraordinários, lembra Aucourt e Padilha, a propósito da relação entre a sobriedade e a duração da vida, o caso espantoso de certo frade trino, frei Luís Salazar, que pereceu no terremoto de Lisboa.

Com cem anos de idade, comia e bebia por cem homens, toda a casta de manjares e diversidade de bebidas, “apesar da pasmosa raridade de que jamais descomia sem o intervalo de quinze ou vinte dias: a não ser empenhar toda a terra no golpe de sepultá-lo, parece que ele e o mundo veriam ao mesmo tempo o seu fim”.

Nos capítulos sobre “pessoas decrépitas que tiveram sucessão e outras que tiveram grande número de filhos”, lemos coisas interessantíssimas. Assim, se narra o caso, averiguado, indesmentível, de Echtilde, condessa de Holanda que com um só parto aumentou o número dos batavos de 366 unidades, de ambos os sexos!

Nas páginas sobre a antecipação do entendimento recolhe o fato espantoso do menino de Lübeck Cristiano Herecken, nascido em 1721. Aos treze meses sabia as Escrituras Sagradas de cor e salteado! Aos dois anos e meio estava senhor da geografia e da história e falava latim e francês perfeitamente. Aos três anos era insigne genealogista e aos quatro morrera na Dinamarca, aonde fora cumprimentar o rei deste país.

Duvidassem os críticos de tal prodígio!, quando uma série de autores doutíssimos os abonavam. Ele, Aucourt e Padilha, lhes responderia esmagando-os com os conceitos do grande Feijó! ”Nuestro grossero modo de discurrir la possibilitad al extrechisimo ambito de la experiencia. Aquello que nunca vemos imaginamos repugnante. Como si lo poco que Dios haze presente á nuestra vida fuesse el ultimo esfuerzo de la omnipotencia. Poner raya a lo possible es poner-se-la al todo poderoso”.

Continuando a sua resenha, passa o mestre Padilha a tratar das crianças de extraordinária vida uterina. Assim, nos conta da duquesa de verdade, de quem falava o douto autor Alberto Gratz: “pejada durante dois anos, tivera um rapaz que não só andara logo depois de nascer, como falava perfeitamente tudo”.!”

 

 

“Se havia gigantes (o que era incontestável!) por que não existiriam anões?

Assim se sabia que o poeta grego Filitas fora tão pequeno que lhe punham chumbo aos pés para que o vento o não carregasse!

E como poderia então mover-se o pobre vatezinho? É o que não pormenoriza o nosso douto autor.

O imperador Augusto possuía um anão tendo de altura apenas dois palmos. Era perfeitamente proporcionado e dispunha de retumbante voz!

Passando a tratar das anomalias, relata o nosso autor um rosário de fatos extraordinários, dos quais escolheremos alguns.

Apoiado na lição e opinião dos sábios, lembrava Aucourt uma série de coisas fora do comum, como as gargalhadas que Zoroastro soltara no próprio instante em que nascera, as duas ordens de dentes de Drapatine, filha de Mitridates, a dentadura íntegra de Pirro, que só tinha em cada maxilar um dente a bem dizer, etc.

Passando a tratar das doenças extravagantes, cita o nosso Padilha a terrível peste que despovoara Constantinopla e relatada pelo doutíssimo Cardam em seu tratado sobre as coisas sutis.

Os enfermos se supunham cheios de estocadas e morriam das imaginárias feridas!

Sabia-se, graças a Luciano, que os abderitas, no reinado de Lisímaco, haviam sido acometidos por singularíssima epidemia: febre maligna muito violenta que, no sétimo dia, provocava hemorragias e transpiração abundantíssima.

Mas espantoso era o seguinte: todos os doentes punham-se a recitar a tragédia Andrômeda em ar grave e fúnebre tom.

De sorte, comenta nosso autor, que toda a cidade estava cheia destes comediantes pálidos e desfigurados que continuamente gritavam: “Oh, tirano amor dos deuses e dos homens”, desfiando melancolicamente o resto da obra.

Só passava esta singular doença com a entrada do inverno.

Já não era sem tempo, no enorme manicômio-conservatório de arte dramática em que se convertera a cidade abderitana mercê daquela tragimania coletiva!

Também, que ideia do nosso Padilha, ir procurar exemplos entre gente tida e havida por todos os helenos pela quintessência da estupidez, não só da sua raça como da humanidade. Nem aos beócios, classicamente beócios, podiam pedir meças. Pobres sandeus!, que haviam excluído de sua calinádica comunidade a um dos poucos concidadãos que, como o heroico Anaxarca e o sofista Protágoras, lhes desmentia a fama de pertencerem àquele reino que o nosso Franscisco de Melo Franco cantou em acre verso. E ainda tinha perseguido a Demócrito, o risonho filósofo eternamente granizador da loucura humana, tido por seus patrícios como louco.

Nada mais natural, pois, que estes respeitáveis cretinos passarem os dias e as noites a urrar: “Oh, tirano amor dos deuses e dos homens”, segundo um depoimento aliás suspeito, o de Luciano, cuja verve e cujo ceticismo de tudo tirava o pretexto para cobrir de ridículo as vítimas escolhidas pelo espírito implacavelmente mordaz.

Capítulo cheio de curiosidades é o que se consagra às pessoas “que não comem nem bebem” incluindo-se aí “as humanas e as irracionais”.

Assim, começa pela história do boi que, na Sabóia, em 1693, viveu longos meses sem nada ingerir. Mas é que na sua vizinhança havia um montão de feno, cujas partículas exaladas e introduzidas pela respiração o sustentaram todo aquele tempo, perfeitamente, e ainda lhe causaram notável aumento de peso!

Dos tempos da antiga Grécia, se conhecia o caso de Demócrates, ancião de 109 anos, que vivera dias a alimentar-se somente com o cheiro de pão quente.

Faz grande peso afirmar, lembra o nosso Padilha, que o cheiro pode sustentar e nutrir, como afirmam Hipócrates e Galeno. Aliás, outro autor, Marcelo Donato, reforçava esta opinião lembrando a existência de raças humanas desprovidas de boca.

Bayle, na República das Letras, citava o caso de um douto holandês, de Harlem, que vivera quarenta dias somente das emanações de seu cachimbo. No Poitou era arquiconhecido o caso de Joana Balam, jejuadora de três anos! E Catarina Kratzer, suíça de Berna, batera este recorde elevando-o a sete anos!

Além destes notáveis casos de temperança, outros havia não menos notáveis, como os dos lugares em que ninguém morria!, fato abonado por autores da competência de Giraldo (??) e do cosmógrafo Abraão Ortelio, famoso cartógrafo. Na ilha Momônia, os que iam pagar o tributo da condição humana punham-se a agonizar, a estertorar, infindavelmente. Eram então transportados para outra ilha, onde logo expiravam!

Comentário gravibundo do nosso fidalgo: “Cuidava eu que estes autores apontavam lugar em que a morte se esquecia dos viventes, porque seria mais visitado que os Santos Lugares; porém, padecer as angústias sem acabar é morrer duas vezes”.

O capítulo seguinte consagra-se a um caso brasileiro realmente digno de todo o estudo, relatado a nosso autor pelo oratoriano padre Estácio de Almeida, “sujeito tão verdadeiro como erudito”.

Haviam saído dois jesuítas a viajar pelos sertões do Brasil. Certo dia, depois do jantar, um rapaz de sua comitiva apanhara no chão um pauzinho e dele se servira como palito. Pois, imediatamente, lhe saltaram das gengivas vários dentes!

Merencório, lá se fora o jovem desdentado relatar o fato aos dois inacianos, que haviam partido à frente. E estes, com o maior interesse, voltaram ao lugar onde se operara a maravilhosa extração, fazendo grande diligência por encontrar o lenho de “um arbusto tão especial e útil”. Não lhes fora possível, porém, achá-lo naqueles lugares desertos e tão pouco transitados.

Aliás, é preciso dizer que o moço se reendentara logo. Como voltasse com os dentes caídos, um negro do séquito dos padres lhos colocara no maxilar espremendo-lhes, à volta, o sumo de certa erva. “E com isto lhe ficaram arraigados”.

Passando a discorrer sobre “virtudes atrativas”, recordava o nosso autor a existência de ímãs minerais e vegetais. Em Benguela conhecia-se uma gramínea que atraía pedaços de madeira como o ímã ao ferro.

Certos gaviões do Oriente no sábio dizer de Eliano, gozavam de tal propriedade nas patas, mas só em relação ao ouro. E quem ignorava que o melhor desimantador da pedra de cevar era o diamante? Bastava a vizinhança deste “carbonato” para acabar com a imantação de uma agulha.

Em Jafanaputan, Ceilão, um jesuíta vira dois cingaleses, cada qual armado de certo pau, forcejando para se afastarem e inflexivelmente aproximados pela força do ímã vegetal.

Na seção consagrada ao raciocínio dos brutos, várias historietas sobre a inteligência dos animais nos são narradas, em grande relevo, aliás. Há, porém, casos dignos de reporte: assim a afirmação do imenso Feijó de que “o aborrecido inseto que se chama a traça tem o primeiro lugar entre os brutos de maior raciocínio”.

E isto porque sabia abrigar o corpo contra as injúrias do tempo, “fabricando o vestido que vestia como pudera fazer um alfaiate”.

Aliás, era sabidíssimo que o homem aprendera muita medicina observando os animais. A sangria, ele conhecera do hipopótamo. “Sentindo-se repleto, serve-se de uma cana aguda para abrir uma veia da perna, que, depois de lhe correr bastante sangue, veda com limos”.

O leão, sentindo-se indigesto, tratava-se de arranjar logo o único purgante que lhe convinha, procurando apanhar um desses “animais de trejeitos delirantes”, seguindo a definição do bom padre Bacelar: o bugio.

A cegonha só ingeria animais venenosos quando tinha ao alcance do bico o contraveneno do oregão.

Já Aristóteles percebera (e Alberto Magno o confirmava) que a tartaruga só comia cobras quando também dispunha do oregão. (...)

Neste último, por exemplo, quer o nosso Aucourt inculcar que o homem também fabrica ímãs artificiais, assim como o unguento simpático curava as feridas posto no ferro que as causara!

Apesar das grandes contradições que refutavam tal asserção, aliás confirmada pela autoridade elevada do inglês Digby, o caso parecia positivo. As pedras trochite e astrecte, postas em cima do vinagre, disparavam a correr. A tinta simpática não só atravessava uma resma de papel como uma grossa muralha.

Mas o mais notável era o caso da lâmpada simpática, que, segundo o sábio Johnston, alimentava-se de sangue como combustível. Apagava-se instantaneamente quando morria o ex-proprietário do seu alimentador!

Expondo os artifícios com que a natureza produz raridades afirma Padilha que, se alguém pintar ovos em um pano de diversas cores, verá nascerem pintos com os mesmos matizes “porque de ajudar a imaginação nos brutos se fazem raros prodígios”. Era assim que, segundo Santo Agostinho, conseguiam os egípcios fabricar os bois ápis.

Dos “adultérios” das plantas provinham iguais assombros.

E se Luís XIV formara os dilatados bosques de Versalhes transportando grandes árvores é que o seu coração excedia nas obras à natureza (sic!).

Porque, se a arte imitava a natureza, parecia às vezes excedê-la. Vira-se em Lisboa um cavalo e um urso dançarem juntos! E ficara na corte de Portugal a tradição do cachorrinho da rainha d. Catarina, mulher de d. João III, que cantava ao som de um manicórdio. Não proferia palavras, mas era muito entoado.

A imperatriz rainha, infanta portuguesa, ganhara um cão que emitia perfeitamente a palavra chocolate. Mas em 1715 vira-se em Paris coisa muito mais notável, o cão fenomenal de que se ocupara a Academia de Ciências de França. Repetia trinta palavras, entre elas chá, café e chocolate.”

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Zoologia Fantástica do Brasil – Afonso de Escragnolle Taunay e Odilon Nogueira de Matos

Editora: EDUSP
ISBN: 978-85-3140-519-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 112
Sinopse: A exuberante e diversificada fauna brasileira foi descrita com muita fantasia e imaginação pelos viajantes europeus que percorreram o Brasil rapidamente nos séculos XVI e XVII. A breve passagem pelo país, insuficiente para uma observação mais detalhada das espécies, fez com que os autores incorporassem em seus relatos invencionices e crendices populares. Este livro é um documentário precioso sobre o imaginário que trata de uma ‘zoologia fantástica’ brasileira, presente nos relatos dos viajantes.


“Mas naqueles séculos de ferro, que podia ser a voz da ciência senão o tímido murmúrio de um ou outro ensaísta tratando de desvendar os segredos dos reinos da natureza?”


“Na opinião de Ferdinand Denis é o Miroir du monde, de Brunetto Latini, a enciclopédia do século XIII, que insere o melhor quadro das ideias zoológicas do seu tempo.
Depois de dizer que o nosso globo tinha de largo 24.037 léguas lombardas, e o terço dessa dimensão em espessura, acrescenta que na atmosfera mil, cento e cento e onze ventos principais eram conhecidos, cujos choques produziam os raios.
Dá-nos, depois, grande quantidade de outros apontamentos cosmogônicos igualmente preciosos para passar a ocupar-se da geografia propriamente dita.
A seu ver, ocupava a Ásia metade do Globo, desde a foz do Nilo até a do “rio de Tranam” ao extremo oriente.
No ocidente asiático é que existia o país dos essênios, onde reinava a idade do ouro!
Ali sim se praticava a virtude, entre esses povos santos! Também tudo se explicava facilmente: não havia entre aquela admirável gente as duas grandes causas da discórdias humanas, a mulher e a pecúnia.
Do país dos misóginos e pecuniófobos essênios ia-se ao de Seluice onde se erguia tão gigantesco pico que no seu cume havia sempre sol.
Depois do enorme deserto de Seluice ocorria o país dos Serres, que se vestiam de uma lã feita da casca de certas árvores.
Na África, na terre d’Aufrique, redobravam os prodígios como, por exemplo, sucedia a certos rios cujas águas tal viscosidade apresentavam que apesar de correrem acima de suas margens não inundavam as terras ribeirinhas! Era na terre d’Aufrique que fluía o Lete, o rio infernal cujas fontes surdiam no próprio império de Satanás.
Os trogloditas, as amazonas, mais tarde transportadas à América, os garamantes habitavam aquele continente de fogo.
As enormes marés que lhe assolavam o litoral provinham dos esforços convulsivos da terra, ao respirar.
Porque muitos doutos afirmavam: tinha a Terra alma e precisava respirar “comem on fait par li narinas” (tal como é feito pelas narinas).
Também outras convulsões terráqueas faziam saltar das entranhas do globo miríades de seres malditos e pavorosos. No tratado da Propriedade dos que Têm Magnitude, Força e Poder em Suas Brutalidades, ocorrem circunstâncias muito interessantes. Por que motivo perseguia o dragão os elefantes e de maneira atroz? Pura questão terapêutica? Sentindo-se na iminência de crise urêmica, buscava o antídoto único para o seu caso, o sangue do paquiderme!
Simplesmente isso: “le sang de l’éléphant qui est croit estanche la grant chaleur du venin di dragon” (acredita-se que o sangue do elefante estanque o calor do veneno do dragão).
Nada mais pitoresco do que os amores da terrível serpe guivra. No tempo do cio reptava até as praias do mar onde sabia que existiam moreias. Lá se emboscava emitindo mavioso e aflautado canto. Atraída por essa música, era o anguiliforme engolido, tornando-se então possível a fecundação da cobra.
Pouco depois paria ela, sendo imediatamente devorada pelos filhotes!
Entre os répteis e peixes africanos coloca o nosso douto autor as sereias e os hipopótamos.
Sobre o unicórnio lê-se no exemplar Miroir du monde do fonds Colbert, 7066, da Biblioteca Nacional de Paris, muito pormenorizada notícia.
Três eram, aliás, as espécies de unicórnios, duas das quais chamadas eglisserion emonoceros.
Nada tinha o unicórnio de gigantesco, pelo contrário, eram-lhe as dimensões apenas as de um cavalo de pernas curtas. Esse bicho de corpo branco, cabeça purpúrea e olhos azuis, ostentava um chifre de três cores: branco na raiz, negro como ébano no centro e rubro na ponta. Animal cheio de sentimentalismo, valoroso e terno ao mesmo tempo, se se mostrava o terrível e implacável inimigo do elefante também vinha a ser o inseparável amigo do pombo, cujos arrulhos o deixavam extático. Do modo mais encantador lhe retribuía o amoroso volátil essa amizade vindo pousar, a cada passo, na arma terrível do fantástico quadrúpede.
Era o unicórnio caçado porque o seu chifre tinha propriedades terapêuticas de inestimável valor. Basta lembrar que o seu contato neutralizava imediatamente o mais perigoso veneno. Qualquer líquido tóxico passava a ser o mais inofensivo licor. Se o bicho mergulhava os chifres num rio, ficavam as águas deste saneadas.
Se acaso uma faca guarnecida da tão preciosa substância córnea tocasse uma vianda intoxicada, imediatamente transudava de seu cabo sutil transpiração avisadora do perigo.
Na Etiópia, rebanhos enormes de unicórnios se viam, afirmaria gravemente, já na Idade Moderna, um viajante português, o padre Lobo! E ele os vira!
O leão era o único animal capaz de caçar o unicórnio. Nos tratados de gênero de Brunetto Latini, como no tão conhecido De Belluis et Monstris, encontram-se uma infinidade de informes sobre a fauna teratológica de antanho.”


“Quanta curiosidade em matéria hidrográfica!
Certo rio da Samaria mudava quatro vezes, por ano, de cor, de verde passava a sanguíneo, depois a pardo e afinal a cristalino.
Ninguém bebesse tal água cuja letalidade vinha a ser terrível!
E o rio Sábado? Assim chamado porque deixava de fluir, completamente, um dia todas as semanas?
E o outro rio, da Pérsia, que todas as noites gelava durante o ano todo? E outro ainda no Epiro, cujas águas não conseguiam extinguir as brasas? E outro, este da Etiópia, que de noite dava água quente e de dia gelada?
E mais outro cuja linfa causava a cegueira dos ladrões? E mais outro ainda, dançarino enragé, cujas águas tranquilas, inteiramente plácidas, se encrespavam, e encapelavam, até quando em sua margem havia música animada?
E aquelas fontes do Oriente de águas inflamáveis a cujos fogos só podiam extinguir o vinagre, a urina e a areia?”

Bebê: manual do proprietário – Louis Borgenicht e Joe Borgenicht

Editora: Gente

ISBN: 978-85-7312-763-8

Tradução: Maria Alayde de Carvalho

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 228

Sinopse: Com instruções dadas passo a passo e diagramas muito engenhosos, Bebê - Manual do Proprietário responde centenas de perguntas e esclarece dúvidas frequentes relacionadas ao primeiro ano de vida da criança - Qual é a melhor maneira de enrolar o bebê? Como posso fazer meu filho recém-nascido dormir a noite toda? Quando devo levar o bebê ao pediatra? Sejam quais forem suas preocupações, você vai encontrar as respostas neste livro curioso e bem-humorado escrito pelo pediatra Louis Borgenicht.


Comentário:

O livro compila uma boa quantidade de orientações para os pais de primeira viagem. Seus trechos não são aplicáveis a estrutura do blog, cabendo apenas a opinião sobre a obra – aliás, como era nos (já longínquos) primórdios dessas paragens.  ;-)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

As Portas da Percepção / Céu e Inferno – Aldous Huxley

Editora: Globo
ISBN: 978-85-2503-546-2
Tradução: Osvaldo de Araújo Souza
Opinião: As Portas da Percepção: ★★★★☆ / Céu e Inferno: ★★★☆☆
Páginas: 168
Sinopse: Dois importantes ensaios sobre o efeito da ingestão de drogas e suas implicações mentais e éticas. Em “As portas da percepção”, de 1954, o romancista inglês descreve suas experiências pessoais com a mescalina, alcaloide extraído de um cacto mexicano, sob supervisão médica. “Céu e inferno”, de 1956, faz uma análise crítica do uso de drogas. Ele constata que, se as alucinações produzidas pela droga podem alcançar uma atmosfera mística, também podem conduzir o paciente às margens da auto-aniquilação.



As Portas da Percepção

“Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
Muitos desses universos são suficientemente semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreensão por dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. Assim, recordando nossos próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer de outras pessoas em circunstâncias análogas; somos até capazes de nos pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu campo, porém os lugares ocupados pelo insano e pelo gênio são tão diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato na memória individual para servir de base à compreensão ou a ligações entre eles. Falam, mas não se entendem. As coisas e os fatos a que os símbolos se referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente.
Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos veem é uma das mais confortadoras dádivas. E não menos importante é o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram.”


“— Que me diz das relações espaciais? — perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros (sobre o efeito da mescalina).
Era difícil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes da sala já não mais pareciam encontrar-se em ângulos retos. Mas não eram esses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatação de que as relações espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço. Em situações normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? — A que distância? — Como se situa em relação a tal coisa?. Durante a experiência com a mescalina, as perguntas tácitas a que a visão responde são de outra ordem. Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de importância, relações dentro de um determinado padrão. Eu olhava para os livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente, era o fato de que todos eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de somenos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de apreciação sobre a posição dos objetos. O espaço ainda estava ali; mas havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a existência e o significado.
E, de par com essa indiferença pelo espaço, adquiri um descaso ainda maior pelo tempo.
— Parece haver bastante — foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noção que tinha dessa dimensão.
Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, está claro, olhar para meu relógio; mas ele, sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação.”


“Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, “que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo o custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição linguística dentro da qual nasceu — beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contato não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. A maioria das pessoas, durante a maior parte do tempo, só toma conhecimento daquilo que passa através da válvula de redução e que é considerado genuinamente real pelo idioma de cada um. No entanto, certas pessoas parecem ter nascido com uma espécie de desvio que invalida essa válvula redutora. Em outras, o desvio pode surgir em caráter temporário, seja espontaneamente, seja como resultado de “exercícios espirituais” voluntários, do hipnotismo ou da ingestão de drogas. Mas o fluxo de sensações que percorre esse desvio, seja ele permanente ou temporário, não é suficiente para que alguém se aperceba “de tudo o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo” (uma vez que o desvio não destrói a válvula de redução, que ainda impede que se escoe por ela toda a torrente da Onisciência), embora possibilite a passagem de algo mais — e sobretudo diferente — do que aquelas sensações utilitárias, cuidadosamente selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, no mínimo, suficiente) da realidade.”


“Essa participação no manifesto esplendor das coisas não deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns, necessárias, com a vida humana e, acima de tudo, para as preocupações com os indivíduos. Pois as pessoas possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa Desindividualização recém-nascida, o comportamento, a aparência, o próprio raciocínio do indivíduo que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dos outros indivíduos — seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois a aversão não figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a analisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a sós com a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que, intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasião, a mescalina me havia tirado — o mundo dos personalismos, da dimensão tempo, dos julgamentos morais e das considerações utilitárias; o mundo — e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo, mais desejava esquecer — o mundo da autoafirmação, da convicção, da supervalorização da palavra e das noções idolatramente cultuadas.”


“Aquilo, percebi repentinamente, estava indo muito longe. Longe demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo. O temor, analisando-o retrospectivamente, foi o de me ver esmagado, desintegrado sob uma pressão de realidade muito superior à que uma mente, acostumada a viver a maior parte do tempo em um confortável mundo de símbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina; entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito. Segundo Boheme e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, só pode ser percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas do purgatório. Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega foge atormentada da Serena Luz do Vazio, e até mesmo das Luzes menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente, na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma ou indo ter ao inferno. Há de preferir qualquer coisa ao ígneo refulgir da implacável Realidade — qualquer coisa!”


“O esquizofrênico é uma alma, não só impura, como também desesperadamente desgostosa com sua situação. Seu tormento consiste na incapacidade de proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano das noções úteis, dos símbolos compartilhados pelos demais, das convenções socialmente aceitáveis. O esquizofrênico é qual homem sob a influência contínua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele não pode suportar por lhe faltar pureza; que não pode interpretar por ser ela o mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente intensidade de valores, como a manifestação da maldade humana ou até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada a descida pela rampa infernal, ninguém poderá mais deter-se. Isso, no momento, era por demais evidente para mim.”


“Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E há, sempre houve na vida individual para uso cotidiano, drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos seres humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais da percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos — o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos.
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados.
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida.
A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalista utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vívida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça.
Nossa era, entre outras coisas, é a idade do automóvel e da vertigem da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança nas estradas; e sua produção, bem como a do tabaco, condena praticamente à esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser — e isto não admite contestação — resolvidos pela proibição. O impulso universal e permanente para a autotranscedência não pode ser dominado pelo simples fechar das solicitadas Portas na muralha. A única política razoável seria abrir outras portas melhores, na esperança de induzir os seres humanos a trocar seus velhos maus hábitos por práticas novas e menos prejudiciais. Algumas dessas novas portas seriam de natureza social e tecnológica, outras religiosas ou psicológicas, e outras mais seriam dietéticas, atléticas e educacionais. Mas é inevitável que perdure, apesar de tudo, a necessidade de frequentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos repulsivos arredores de cada um. Precisar-se-ia, pois, de uma nova droga que aliviasse e consolasse nossos semelhantes que sofrem, sem lhes causar dano maior, após um período prolongado de tempo, do que o bem que ela lhes pudesse proporcionar de imediato. Tal droga teria de ser eficaz em doses diminutas, e sintetizável. A ausência dessas características faria com que sua produção, tal qual a do vinho, da cerveja, das bebidas fortes e do tabaco, fosse interferir com a produção dos alimentos e das fibras essenciais. Teria de ser menos tóxica que o ópio ou a cocaína, menos propensa a produzir consequências sociais indesejáveis que o álcool ou os barbituratos, menos prejudicial ao coração e aos pulmões que o alcatrão e a nicotina dos cigarros. E, por suas características positivas, deveria produzir modificações mais interessantes na percepção, mais intrinsecamente proveitosas que a mera ação sedativa ou a propensão aos sonhos e às impressões de onipotência ou o escape às inibições.”


“O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos veem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atividade intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião — o álcool e as “pílulas inocentes” no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é “extraordinariamente difundido. [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer”.
Teoricamente, cada um de nós deveria ser capaz de encontrar a autotranscedência a partir de uma forma de religião pura ou aplicada. Mas, na prática, parece ser sumamente improvável que esse anseio pelo apogeu seja algum dia realizável. Há (e é fora de dúvida que sempre houve) homens e mulheres virtuosos e pios, para quem, infelizmente, apenas a piedade não basta. O falecido G. K. Chesterton, que escrevia com lirismo idêntico tanto sobre a bebida quanto sobre a fé, pode servir de eloquente exemplo desse grupo.
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto, mesmo as mais tolerantes jamais procuraram converter a bebida ao cristianismo — isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em compartimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. E talvez isso seja inevitável. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não deem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de bebidas, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscedência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas “as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas”. Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser frequentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon* de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramento e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo.
Vemos, pois, que o cristianismo e o álcool não se misturam nem poderiam fazê-lo. Já não há tanta incompatibilidade com relação à mescalina. Isso tem sido demonstrado por várias tribos de índios, desde o Texas até o Estado de Wisconsin. Entre essas tribos, encontram-se algumas filiadas à Igreja Americana Nativa, seita cujo principal rito é uma espécie de Ágape Cristão Primitivo ou Festa do Amor, em que fatias de peiote substituem o pão e o vinho do sacramento. Esses índios americanos encaram o cacto como preciosa dádiva de Deus aos índios e consideram seus efeitos manifestação do divino Espírito.
O professor J. S. Slotkin — um dos pouquíssimos homens brancos que, até hoje, participaram dos ritos de uma congregação peiotista — relata, falando de seus companheiros de ritual, que eles “em absoluto ficam narcotizados ou embriagados [...] Jamais perdem o ritmo ou balbuciam, como aconteceria com indivíduos inebriados pelo álcool ou por estupefacientes [...] São todos calmos, corteses e respeitam-se uns aos outros. Jamais estive em qualquer templo de homens brancos onde pudesse encontrar tanto respeito e religiosidade”. Poderíamos perguntar: “Que estariam esses devotos e bem-comportados peiotistas sentindo?”. Claro que não há de ser o brando sentimento de virtude que embala o comum dos frequentadores do ofício dominical, durante noventa minutos de solidão. Nem mesmo esses fervorosos sentimentos, inspirados pelos pensamentos no Criador, no Redentor, no Juiz e no Espírito Santo, que animam os piedosos. Para esses membros da Igreja Americana Nativa, a experiência religiosa é algo de mais direto e esclarecedor, de mais espontâneo, e tem muito menos de produto imperfeito da mente superficial e restrita. Por vezes (ainda segundo as observações colhidas pelo dr. Slotkin) têm visões que podem ser até do Próprio Cristo. De outras, escutam a voz do Grande Espírito. Ainda em outras se apercebem da presença de Deus, bem como de suas falhas pessoais, as quais terão de ser corrigidas para que possa ser cumprida Sua vontade. As consequências práticas dessa abertura química das Portas para o Outro Mundo parecem ser excelentes. O dr. Slotkin testemunha que os peiotistas habituais são, em geral, mais diligentes, mais temperantes (muitos são completamente abstêmios) e mais pacíficos que os não-peiotistas. Uma árvore que apresente frutos tão bons não pode ser condenada como maléfica. Ao sacramentar o uso do peiote, os índios da Igreja Americana Nativa fizeram algo que é, a um só tempo, psicologicamente correto e historicamente respeitável. Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos ritos e festas pagãos foram, por assim dizer, batizados e postos ao serviço da Igreja. Essas festas nada tinham de edificantes, mas aliviavam certa fome psicológica; e, em vez de tentar suprimi-las, os primeiros missionários tiveram o bom senso de aceitá-las pelo que de útil possuíam — permitir à alma satisfazer seus impulsos fundamentais — e incorporá-las ao código da nova religião. Em essência, idêntico foi o procedimento da Igreja Americana Nativa. Adotaram um costume pagão (por sinal bem mais inspirador e esclarecedor do que as sensuais orgias e mascaradas, retiradas ao paganismo europeu) e deram-lhe um significado cristão.
Embora só recentemente tenham sido introduzidos na região setentrional dos Estados Unidos, o consumo do peiote e o culto nele baseado tornaram-se importantes símbolos do direito do índio à independência espiritual. Alguns indígenas reagiram à hegemonia do branco tornando-se americanizados, enquanto outros se recolhiam a seus costumes tradicionais. Mas um terceiro grupo procurou fazer o melhor uso das duas civilizações e desses outros mundos de transcendental experiência onde a alma sabe que é livre e tem uma essência divina. Daí nasceu a Igreja Americana Nativa. Nela, dois grandes apetites da alma — o impulso para a independência e a autodeterminação, e o estímulo para a superação de si própria — fundiram-se e passaram a ser interpretados à luz de um terceiro — a necessidade de render culto, de justificar, perante o homem, as razões de Deus, de explicar o universo por meio de uma teologia coerente.
Lo, the poor Inâian, whose untutored mina Clothes him in front, but leaves him bare behind.(índio infeliz, a quem a alma falaz,/ Cobre-lhe a frente e o deixa nu por trás.)
Mas, em verdade, somos nós, os brancos ricos e altamente educados, que ostentamos a nudez de nossas costas. Cobrimos nossa paradisíaca aparência anterior com alguma filosofia — cristão, marxista, físico-freudiana —, mas nos descuramos da outra face, deixando-a à mercê de todos os ventos que possam soprar. O pobre índio, por outro lado, se tem valido do espírito para proteger-lhe a retaguarda, complementando a folha de parreira teológica com a tanga da experiência transcendental.”
Não sou tão tolo a ponto de relacionar o que acontece sob o efeito da mescalina ou de qualquer outra droga, existente ou que possa vir a existir, com a compreensão do fim e do derradeiro objetivo da vida humana: a Luz, a Beatífica Visão. Tudo o que estou sugerindo pode ser assim resumido: a experiência com a mescalina é o que os teólogos católicos chamam de “uma graça gratuita”, não necessariamente para a salvação, mas potencialmente valiosa e que, se realizada, será prazerosamente aceita. Ver-se livre da rotina e da percepção ordinária, ser-lhe permitido contemplar, por umas poucas horas em que a noção de tempo se esvai, os mundos exterior e interior, não como eles se mostram ao animal dominado pela ideia de sobrevivência ou ao ser humano obcecado por termos e ideias, mas tais como são percebidos pela Onisciência — direta e incondicionalmente —, eis uma experiência de inestimável valor para qualquer indivíduo, especialmente para o intelectual, pois este é, por definição, o homem para quem, na frase de Goethe, “a palavra é essencialmente proveitosa”. Ele é o homem para quem “o que percebemos pela visão nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente”. Não obstante, embora fosse ele mesmo um intelectual e um dos supremos mestres da linguagem, Goethe nem sempre concordou com sua própria conceituação da palavra. “Falamos demais” — escreveu ele em sua madureza. “Deveríamos falar menos e desenhar mais. Eu, pessoalmente, gostaria de renunciar por completo à fala e, imitando a Natureza organizada, comunicar por esboços tudo o que tivesse a dizer. Aquela figueira, esta pequena serpente, o casulo aguardando serenamente o futuro no umbral de minha janela, tudo isso são importantes signos. Quem fosse capaz de decifrar corretamente seu significado poderia pôr inteiramente de lado tanto a palavra escrita quanto a falada. Quanto mais penso nisso, mais encontro futilidade, mediocridade e até mesmo (sou levado a dizê-lo) fatuidade na palavra. Contrastando com isso, como nos assombram a gravidade e o silêncio da Natureza quando com ela deparamos face a face, concentrados diante de uma colina estéril ou da desolação de um outeiro que a erosão desgastou”.
Jamais poderemos passar sem a palavra e os outros sistemas de símbolos, pois foi graças a eles, e somente por eles, que nos elevamos acima das bestas, atingindo o nível de seres humanos. Mas poderemos facilmente nos tornar tanto vítimas como beneficiários desses sistemas. Precisamos aprender como manejar eficientemente as palavras, mas ao mesmo tempo, devemos preservar e, se necessário, intensificar nossa capacidade de olhar o mundo diretamente, e não através da lente semi-opaca das ideias, que distorce cada fato, diluindo-o no lugar-comum das denominações genéricas ou das abstrações explanatórias.
Literária ou científica, liberal ou especializada, toda a nossa educação é predominantemente verbalista e, pois, não consegue atingir plenamente seus objetivos. Em vez de transformar crianças em adultos completamente desenvolvidos, ela produz estudantes de ciências naturais que não têm a menor noção do papel primordial da Natureza como elemento fundamental da experiência; entrega ao mundo estudantes de humanidades que nada sabem sobre a humanidade, seja ela a sua ou a de quem mais for.”
*Erewhon, anagrama de nowhere (“lugar algum”), é o título abreviado de uma novela fantástica de Samuel Butler, escrita em 1872, que descreve um país cujo povo vira-se obrigado a destruir todas as máquinas para não ser por elas destruído.


“Há setenta anos, homens de inegável capacidade descreveram as transcendentais experiências por que passaram aqueles que, gozando boa saúde, em pleno uso de suas faculdades mentais, e sob condições adequadas, ingeriram a droga. Quantos filósofos, quantos teólogos, quantos educadores tiveram a curiosidade de abrir esta Porta na muralha? A resposta é: “Praticamente nenhum”. Em um mundo onde a educação é transmitida principalmente por meio da palavra, às pessoas de grande instrução torna-se quase impossível dar séria atenção a quaisquer outras coisas que não sejam palavras ou ideias. Há sempre dinheiro a gastar, teses a serem defendidas, douta e insensata pesquisa a se orientar para aquilo que, na opinião dos eruditos, é o problema fundamental. “Que é que induziu quem a dizer tal coisa e em tal ocasião?” Mesmo nesta era da tecnologia, as humanidades verbalistas são dignificadas. Os conhecimentos objetivos que nos permitem tomar contato direto com determinados fatos de nossa existência são quase que completamente desprezados. Um catálogo; uma bibliografia; as obras completas, palavra por palavra, de um poetastro de terceira classe; um estupendo índice que represente a última palavra em índices — enfim, qualquer projeto de proporções grandiosas obterá fatalmente aprovação e apoio financeiro. Mas, quando se trata de querer saber como cada um de nós, nossos filhos e netos, poderemos nos tornar mais perceptíveis, mais intensamente cônscios da realidade interior e exterior, mais acessíveis ao Espírito, menos aptos a adoecer vítimas de nossos próprios erros psicológicos e mais capazes de controlar nosso sistema nervoso autônomo — quando, pois, se trata de qualquer forma de educação objetiva mais importante (e, portanto, mais provável de alcançar aplicação prática) que a ginástica sueca, não haverá pessoa respeitável, em qualquer universidade ou igreja de renome, que faça qualquer coisa em seu benefício. Os verbalistas desconfiam dos não-verbalistas; os racionalistas temem os fatos concretos, não racionais; os intelectuais acham que “o que percebemos pela visão (ou por qualquer outra forma) nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente”. Além do mais, a educação, no campo dos conhecimentos objetivos, não se adapta a nenhum dos esquemas existentes. Não é religião, neurologia, ginástica, educação moral e cívica, nem tampouco psicologia experimental. Assim sendo, esse assunto simplesmente não existe, para fins acadêmicos e eclesiásticos, e bem pode ser completamente ignorado ou então relegado, com um sorriso condescendente, àqueles a quem os fariseus da ortodoxia verbalista chamam maníacos, impostores, charlatães e desprezíveis amadores.”


“Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta na muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender.”

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Céu e inferno

“A luz e a cor preternaturais são fenômenos comuns a todos os transes visionários. E, de par com elas, surge com igual constância uma sensação de ampliação dos valores. Os objetos luminosos que vemos nos antípodas da mente possuem significado, e esse significado é, de certa forma, tão intenso quanto sua cor. Significado, aqui, se identifica com existência, pois nessa região os objetos não existem a não ser para si mesmos. As imagens que surgem nos limites anteriores do subconsciente coletivo possuem uma significação que está ligada aos fatos básicos da vida do homem; mas nos confins do mundo visionário temos diante de nós fatos que, à semelhança dos da natureza externa, independem dos homens, tanto individual como coletivamente, e existem em função de si mesmos. Seu valor consiste precisamente nisto: eles são exclusivamente eles mesmos e, assim sendo, constituem manifestações da objetividade essencial, da outra face não-humana do universo.
Luz, cor e importância não existem por si mesmas. Elas modificam os objetos ou são por estes manifestadas. E haverá classes especiais de objetos comuns à maior parte das experiências visionárias? Penso poder afirmar que sim. Sob a ação da mescalina e do hipnotismo, bem como nas visões espontâneas, certos tipos de experiências perceptivas se repetem com frequência.
A experiência típica com mescalina ou ácido lisérgico principia pela percepção de formas geométricas coloridas, móveis e animadas. Com o tempo, a geometria pura se torna concreta, e o paciente não mais percebe desenhos, mas coisas contendo desenhos, tais como tapetes, entalhes e mosaicos. A isso se seguem vastos e complicados edifícios em meio a paisagens que mudam continuamente, passando do esplendor a um esplendor mais intensamente colorido, da grandiosidade a uma grandiosidade ainda maior. Figuras heroicas, do tipo do Serafim de Blake, podem fazer sua aparição, sozinhas ou em multidões. Animais fabulosos movem-se pela cena. Tudo é original e surpreendente. Quase nunca o visionário vê algo que lhe recorde seu passado. Ele não se lembra de cenas, pessoas ou objetos, nem tampouco os inventa. Apenas contempla uma nova criação.
A matéria-prima para tal criação lhe é fornecida pelas experiências visuais da vida cotidiana, mas a moldagem desse material em formas é obra de alguém que, é mais certo, não será o indivíduo que inicialmente as experimentara ou que posteriormente delas se havia recordado e sobre elas refletiu. Essas formas são (transcrevendo as palavras do dr. J. R. Smythies, em recente artigo no American Journal of Psychiatry) “a obra de um compartimento mental altamente diferenciado, sem qualquer ligação visível, emocional ou volitiva, com os objetivos, interesses ou sentimentos da pessoa em causa”.”


“““O leito”, como o define pitorescamente o ditado italiano, “é a ópera do pobre.” De modo análogo, o sexo é o paisagismo do hindu; o vinho, o impressionismo persa. E isso, evidentemente, porque as experiências da união sexual e da embriaguez gozam daquela diversidade essencial característica de todas as visões, inclusive na de paisagens.
Se, em certa época, o homem encontrou satisfação em determinada atividade, é de presumir-se que, até então, deveria ter havido qualquer outra coisa que a substituísse. Na Idade Média, por exemplo, os homens tinham uma preocupação obsessiva, quase maníaca, por palavras e símbolos. Qualquer coisa, na Natureza, era imediatamente considerada a ilustração concreta desta ou daquela noção formulada em um dos livros ou legendas considerados sagrados pela opinião corrente.
No entanto, em outros períodos da História, o homem encontrou uma profunda satisfação em reconhecer a diversidade autônoma da Natureza, incluindo muitos aspectos da qualidade humana. A manifestação dessa diversidade foi expressa em termos de arte, religião ou ciência. Quais seriam os equivalentes medievais de Constable e da ecologia, da observação dos pássaros e das Eleusínias*, da microscopia e dos ritos de Dionísio, e do haiku japonês? Creio que poderão ser encontrados, em um extremo da escala, nas Saturnais e, do outro lado, no misticismo. Carnavais, Festas da Primavera, bailes de máscaras são coisas que permitem uma constatação direta da diversidade animal, subjacente à personalidade individual e social. A contemplação inspirada revela o extremo oposto dessa diversidade da sublime Despersonalização. E algures, entre esses dois extremos, situam-se as experiências dos visionários e das artes propiciadoras de visões, por meio das quais se busca retomar e refundir essas experiências — a arte do joalheiro, do fabricante de vidro pintado, do tapeceiro, do pintor, do poeta e do músico.
A despeito de uma História Natural que não passava de um conjunto de símbolos monotonamente moralistas, sob o jugo de uma teologia que, em vez de encarar as palavras como a representação das coisas, tratava essas coisas e os fatos como demonstrações das palavras bíblicas e aristotélicas, apesar disso tudo nossos antepassados permaneceram relativamente sãos. E isso lhes foi possível graças à fuga periódica à asfixiante prisão de sua presunçosa filosofia racionalista, de sua ciência antropomórfica, autoritária e não-experimental, de sua religião demasiadamente rígida, para mundos não-verbalistas, inumanos, habitados por seus instintos, pela fauna visionária dos antípodas de suas mentes e — mais além, embora ainda incluído nessa totalidade — graças ao Espírito Interior.”
*Os festivais de Elêusis ou Eleusínias, em que se celebravam os mistérios de Demétrio e Perséfone, na cidade grega de Elêusis, próxima a Atenas.


“No Journal dune schizophrène [Diário de uma esquizofrênica], registro autobiográfico da passagem de uma jovem pela loucura, o mundo do esquizofrênico é chamado lê pays d'éclairement — “o país da iluminação”. Esse é um nome que um místico bem poderia ter escolhido para designar seu paraíso.
Mas para a pobre Renée — a vítima da esquizofrenia — a iluminação é infernal: um intenso clarão elétrico sem uma sombra, ubíquo e implacável. Tudo o que, para o visionário são, é uma fonte de alegria, traz a Renée tão-somente pavor e um tétrico sentimento de irrealidade. O sol é maligno; o brilho das superfícies polidas não sugere gemas, e sim maquinaria e chapas esmaltadas; a intensidade de existência que anima cada objeto, quando examinado de perto e abstraído seu aspecto utilitário, é sentida como uma ameaça.
E há, ainda, o horror infinito. Para o visionário são, a percepção do infinito em um finito particular é uma revelação de sublime imanência; para Renée, isso era uma comprovação do que ela chama o sistema — vasto mecanismo cósmico, que existe unicamente para produzir crime e castigo, solidão e irrealidade.
A sanidade mental é uma questão de gradação, e há um grande número de visionários que vê o mundo tal como Renée o viu, mas consegue, a despeito disso, viver fora dos manicômios. Tal como os visionários positivos, eles também veem o Universo transfigurado — mas para pior. Tudo nele, das estrelas, no céu, à poeira sob seus pés, é indizivelmente sinistro e repugnante; cada acontecimento vem carregado de ódio, cada objeto acusa a presença de um Horror Interior infinito, todo-poderoso, eterno.
Esse mundo negativamente transfigurado consegue insinuar-se, de tempos em tempos, na literatura e nas artes. Ele desvirtua e ameaça, por meio das últimas paisagens de Van Gogh; foi o quadro e o tema de todos os contos de Kafka; foi o lar espiritual de Géricault, foi habitado por Goya durante os anos de sua surdez e solidão; foi entrevisto por Browning ao escrever Childe Roland; teve seu lugar, diante das teofanias, nas novelas de Charles Williams.
A experiência visionária negativa é, frequentemente, seguida de sensações corpóreas de natureza bastante especial e característica. As visões felizes são, via de regra, associadas a uma sensação de separação do corpo, a um sentimento de despersonalização. (É, sem dúvida, esse sentimento que possibilita aos índios que praticam o culto do peiote usar a droga, não apenas como um atalho para atingir o mundo das visões, mas também como instrumento para criar uma solidariedade afetiva dentro do grupo de participantes.) Mas, quando as experiências visionárias são terríveis e o mundo se transfigura para pior, a individualização é intensificada e o visionário negativo sente-se preso a um corpo que parece tornar-se cada vez mais denso, mais comprimido, até que acaba por sentir-se reduzido à condição de torturada consciência de um aglutinado de matéria compacta, não maior que uma pedra que pudesse ser contida entre as mãos.
Vale a pena observar que muitos dos sofrimentos narrados nas várias descrições do Inferno são castigos de pressão e constrição. Os pecadores de Dante eram enterrados na lama, encerrados em troncos de árvores, aprisionados em blocos de gelo, esmagados entre rochas. Seu Inferno é psicologicamente verdadeiro. Muitas de suas punições são experimentadas pelos esquizofrênicos e por aqueles que tomam mescalina ou ácido lisérgico, sob condições desfavoráveis.
Qual a natureza dessas condições desfavoráveis? Como e por que é o Céu transformado em Inferno?
Em certos casos, a experiência visionária negativa é o resultado de causas primordialmente fisiológicas. A mescalina tende, após sua ingestão, a se acumular no fígado. Se esse órgão estiver doente, isso pode levar a mente a sentir-se no Inferno. Mas, o que é mais importante, do ponto de vista de nosso presente estudo, é o fato de que a experiência visionária negativa pode ser produzida por meios puramente psicológicos. O temor e a angústia barram o caminho para o Outro Mundo celestial e mergulham no inferno quem ingerir a droga.
E o que é verdade para quem toma mescalina também é válido para os que têm visões espontâneas ou sob a influência do hipnotismo. Foi com base nesse fundamento psicológico que ergueu-se a doutrina teológica da preservação da fé — doutrina essa com que nos defrontamos em todas as grandes religiões do mundo. Os escatologistas sempre tiveram dificuldade em conciliar seu racionalismo e sua moral com as realidades brutais da experiência psicológica. Como racionalistas e moralistas, sentem que o bom comportamento deve ser recompensado e que o virtuoso merece subir ao Céu. Mas, como psicologistas, sabem também que a virtude não é a condição única, nem é suficiente, para uma experiência visionária feliz. Sabem que as simples boas ações são impotentes, e que é a fé, ou a confiança no amor, que assegura a bem-aventurança dessa experiência.
As emoções negativas — o medo, que é a ausência de confiança; o ódio, a ira ou a maldade, que eliminam o amor — trazem consigo a certeza de que a experiência visionária, se e quando se produzir, será aterradora. O fariseu é um homem virtuoso; mas sua virtude é de uma espécie compatível com as emoções negativas. Suas experiências visionárias têm, pois, maiores possibilidades de serem infernais que bem-aventuradas.”