terça-feira, 30 de junho de 2015

Diálogos: O Banquete – Fédon – Sofista – Político (Os pensadores) – Platão

Editora: Nova Cultural

ISBN: 85-13-00214-3

Tradução e notas: José Cavalcante de Souza (O Banquete), Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista e Político)

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 266

Sinopse: Os gregos antigos inventaram a democracia, a noção de cidadania e foram os primeiros a sentir e expor a necessidade de ultrapassar o terreno das meras opiniões, os ensinamentos dos mitos e as crenças supersticiosas. Propuseram-se a atingir um conhecimento verdadeiro, um saber efetivamente científico. Nessa busca, Platão, que cria sua Academia em 387 a.C. em Atenas, tem papel fundamental. Apura a dialética socrática para torná-la apta a desenvolver um saber sistemático, capaz de se alçar do sensível para o inteligível — o mundo das ideias. Sua influência, uma das mais profundas da história do pensamento, ainda hoje encontra-se no horizonte de toda investigação teórica.

NESTE VOLUME

O BANQUETE: Sócrates, Agatão, Alcibíades e outros conversam a respeito do amor: Para Sócrates, o amor é um meio de atingir a visão do princípio eterno de todas as coisas belas, o belo em si.

FÉDON: Na prisão, à espera da cicuta, Sócrates debate sobre a morte. O diálogo relata o caminho socrático, retomado e desenvolvido por Platão: o conhecimento como reminiscência e a doutrina das ideias.

SOFISTA: A oposição verdade-erro, inerente ao combate socrático-platônico aos sofistas (vistos como mercadores de falsidades) renova-se nessa etapa final do platonismo.

POLÍTICO: Platão retoma um dos temas centrais de sua reflexão filosófica: a caracterização do político e da arte de governar.



“— A construção do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade: a episteme é fruto de inteligência e de amor.”

(Introdução – consultoria José Américo Motta Pessanha)

 

 

“— Eu, aliás, quando sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouço de outro, afora o proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porém, se trata de outros assuntos, sobretudo dos vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me irrito e de vós me apiedo, os meus companheiros, que pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considereis infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei.”

(O Banquete)

 

 

“— A quem, com efeito, tenha considerado que se diz ser mais belo amar claramente que às ocultas, e sobretudo os mais nobres e os melhores, embora mais feios que outros; que por outro lado o encorajamento dado por todos aos amantes é extraordinário e não como se estivesse a fazer algum ato feio, e se fez ele uma conquista parece belo o seu ato, se não, parece feio; e ainda, que em sua tentativa de conquista deu a lei ao amante a possibilidade de ser louvado na prática de atos extravagantes, os quais se alguém ousasse cometer em vista de qualquer outro objetivo e procurando fazer qualquer outra coisa fora isso, colheria as maiores censuras da filosofia — pois se, querendo de uma pessoa ou obter dinheiro ou assumir um comando ou conseguir qualquer outro poder, consentisse alguém em fazer justamente o que fazem os amantes para com os amados, fazendo em seus pedidos súplicas e prosternações, e em suas juras protestando deitar-se às portas, e dispondo-se a subserviências a que se não sujeitaria nenhum servo, seria impedido de agir desse modo, tanto pelos amigos como pelos inimigos, uns incriminando-o de adulação e indignidade, outros admoestando-o e envergonhando-se de tais atos — ao amante porém que faça tudo isso acresce-lhe a graça, e lhe é dado pela lei que ele o faça sem descrédito, como se estivesse praticando uma ação belíssima; e o mais estranho é que, como diz o povo, quando ele jura, só ele tem o perdão dos deuses se perjurar, pois juramento de amor dizem que não é juramento, e assim tanto os deuses como os homens deram toda liberdade ao amante.”

(O Banquete)

 

 

“— O que há porém é, a meu ver, o seguinte: não é isso uma coisa simples, o que justamente se disse desde o começo, que não é em si e por si nem belo nem feio, mas se decentemente praticado é belo, se indecentemente, feio. Ora, é indecentemente quando é a um mau e de modo mau que se aquiesce, e decentemente quando é a um bom e de um modo bom. E é mau aquele amante popular, que ama o corpo mais que a alma; pois não é ele constante, por amar um objeto que também não é constante.”

(O Banquete)

 

 

“— A quem tem juízo, poucos sensatos são mais temíveis que uma multidão insensata!”

(O Banquete)

 

 

“— Ao Amor nem Ares se lhe opõe.”

(Sófocles – cit. O Banquete)

 

 

“— Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar — pois vinho ainda não havia — penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio — pois já é —, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.”

(O Banquete)

 

 

“— Depois de sofrer é que o tolo aprende”.

(Hesíodo, Trabalhos e Dias – Cit. O Banquete)

 

 

“— Durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade. Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças — e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a origem de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar. Mas o cúmulo dos cúmulos está em que, quando conseguimos de seu lado obter alguma tranquilidade, para voltar-nos então ao estudo de um objeto qualquer de reflexão, súbito nossos pensamentos são de novo agitados em todos os sentidos por esse intrujão que nos ensurdece, tonteia e desorganiza, ao ponto de tornar-nos incapazes de conhecer a verdade. Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como o indica o argumento, e não durante nossa vida! Se, com efeito, é impossível, enquanto perdura a união com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si mesma — mas nunca antes. Além disso, por todo o tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e pôr nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é que há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é puro! Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um amigo do saber.”

(Fédon)

 

 

“— É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorância absoluta. E o que é maravilhoso nesta prisão, a filosofia bem o percebeu, é que ela é obra do desejo, e quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias é a própria pessoa! Assim, digo, o que os amigos do saber não ignoram é que, uma vez tomadas sob seus cuidados as almas cujas condições são estas, a filosofia entra com doçura a explicar-lhes as suas razões, a libertá-las, mostrando-lhes para isso de quantas ilusões está inçado o estudo que é feito por intermédio dos olhos, tanto como o que se faz pelo ouvido e pelos outros sentidos; persuadindo-as ainda a que se livrem deles, a que evitem deles servir-se, pelo menos quando não houver imperiosa necessidade; recomendo-lhes que se concentrem e se voltem para si, não confiando em nada mais do que em si mesmas, qualquer que seja o objeto de seu pensamento. Que não creiam enfim senão no próprio testemunho desde que tenham examinado bem o que cada coisa é na sua essência e que se persuadam de que as coisas que são examinadas por meio de um intermediário qualquer nada possuem de verdadeiro, e pertencem ao gênero do sensível e do visível enquanto que o que elas veem pelos seus próprios meios é inteligível e, ao mesmo tempo, invisível!

Contra essa libertação a alma do verdadeiro filósofo persuade-se de que não se deve opor, e por isso se afasta tanto quanto possível dos prazeres, assim como dos desejos, dos incômodos e dos terrores. Ela sabe com efeito que, quando sentimos com intensidade um prazer, um incômodo, um terror ou um desejo, por maior que seja o mal que possamos sofrer nesse momento, entre todos os que se podem imaginar — cair doente, por exemplo, ou arruinar-se por causa de suas paixões — ela sabe que não há nenhum desses males que não seja ultrapassado por aquele que é o mal supremo; é deste mal que sofremos, e não o notamos!

— E que mal é esse, Sócrates?

— É que em toda alma humana, forçosamente, a intensidade do prazer ou do sofrimento, a propósito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de que o objeto dessa emoção é tudo o que há de mais real e verdadeiro, embora tal não aconteça. Esse é o efeito de todas as coisas visíveis, não é?

— Efetivamente.

— E não é em tais afetos que no mais alto grau a alma fica sujeita às cadeias do corpo?

— De que modo, dize?

— Assim: todo prazer e todo sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela se torne material e passe a julgar da verdade das coisas conforme as indicações do corpo. E pelo fato de se conformar a alma ao corpo em seus juízos e comprazer-se nos mesmos objetos, necessariamente deve produzir-se em ambos, segundo penso, uma conformidade de tendências assim como também uma conformidade de hábitos; e sua condição é tal que, em consequência, ela jamais atinge o Hades em estado de pureza, mas sempre contaminada pelo corpo de que sai; o resultado é que logo recai num outro corpo, onde de certa forma se planta e deita raízes. E por força disso fica desprovida de todo direito a participar da existência do que é divino e, portanto, puro e único em sua forma.”

(Fédon)

 

 

“— Eis como, sem dúvida, refletirá uma alma de filósofo: ela não irá pensar que, sendo o trabalho da filosofia libertá-la, o seu possa ser, enquanto a filosofia a liberta, o de se entregar voluntariamente às solicitações dos prazeres e dos sofrimentos, para tornar a colocar-se nas cadeias, nem o de realizar o labor sem fim duma Penélope* que trabalhasse de maneira contrária àquela com que trabalhou aquela. Não! ela acalma as paixões, liga-se aos passos do raciocínio e sempre está presente nele; toma o verdadeiro, o divino, o que escapa à opinião, por espetáculo e também por alimento, firmemente convencida de que assim deve viver enquanto durar sua vida, e que deverá, além disso, após o fim desta existência, ir-se para o que lhe é aparentado e semelhante, desembaraçando-se destarte da humana miséria! Tendo sido esse o seu alimento, não há recear que ela tenha medo, nem — porquanto foi precisamente nisso, Símias e Cebes, que ela se exercitou — que tema vir a decompor-se no momento em que se separar do corpo, ou ser dispersada ao sopro dos ventos, ou dissipar-se em fumo e, uma vez dissolvida, não ser mais nada em nenhuma parte!”

*: Penélope: esposa de Ulisses, figura da Odisseia. Na ausência de seu marido, perseguida por muitos pretendentes que desejavam com ela casar, Penélope prometeu desposar um deles quando houvesse acabado de tecer um pano em que estava trabalhando. Mas desfazia durante a noite a parte que tecera de dia, de modo que jamais concluiu o trabalho, nem casou com nenhum pretendente. (N. do T.)

(Fédon)

 

 

“— Deve permanecer confiante sobre o destino de sua alma o homem que durante sua vida desprezou os prazeres do corpo e os ornamentos deste, principalmente, pois são, a seu ver, coisas estranhas e nocivas. O homem que, ao contrário, se dedicou aos prazeres que têm a instrução por objeto, e que dessa forma ornou sua alma, não com adornos estranhos e nocivos, mas com o que é propriamente seu e mais lhe convém, com a temperança, a justiça, a coragem, a liberdade, a verdade — esse aguarda confiante e corajoso o momento de por-se a caminho do Hades, quando seu destino o chamar!”

(Fédon)

 

 

“— Creio, pelo menos, distinguir uma forma especial de ignorância, tão grande e tão rebelde que equivale a todas as demais espécies: nada saber e crer que se sabe; temo que aí esteja a causa de todos os erros aos quais o pensamento de todos nós está sujeito. E é precisamente esta única espécie de ignorância que qualifica o nome de ignaro.”

(Sofista)

 

 

“— Toda ignorância é involuntária, e aquele que se acredita sábio se recusará sempre a aprender qualquer coisa de que se imagina esperto.”

(Sofista)

 

 

“— As pessoas de temperamento moderado são, com efeito, circunspectas, justas, pouco propensas a se aventurarem, mas falta a elas a agudeza e essa espontaneidade que é própria à ação. Os enérgicos, por sua vez, têm menos respeito à justiça e à prudência; mas quando se trata de agir possuem mais espontaneidade que ninguém. Assim, é impossível que tudo corra bem nas cidades, para os particulares e para o Estado, se esses dois caracteres não estiverem associados.”

(Político)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Geografia dos Mitos Brasileiros – Luís da Câmara Cascudo

Editora: Global

ISBN: 978-85-2600-709-3

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 400

Sinopse: Lobisomem, Saci-Pererê, Mula sem Cabeça e muitos outros seres fantásticos, que povoam a imaginação do brasileiro, são os grandes personagens da Geografia dos mitos brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo. Para muita gente, perdida pelos grotões e roças do país, eles são criaturas tão vivas quanto o vizinho ou o leitor. Não é para menos. Alguns costumam se intrometer na vida humana, como perturbadores ou entidades benéficas, exigindo doações (o fumo de rolo que o caboclo deixa na encruzilhada para o Saci) ou atendendo pedidos, como o Negrinho do Pastoreio. Ou até engravidando moças, função exercida com muita competência pelo boto. Esses mitos, ainda palpitantes de vida entre a sociedade rural, estão presentes em todas as regiões do país, como assinala o levantamento de Mestre Cascudo, estado a estado, mas cada vez mais ameaçados pela penetração do rádio e da televisão. Como em todo fato social, há os mais populares (que Cascudo classifica como “mitos primitivos e gerais”), nos quais se incluem ainda as entidades que formam os ciclos “da angústia infantil” e “dos monstros”. No primeiro, figuras aterradoras para as crianças, como a coca, as bruxas e o Mão de Cabelo, de Minas Gerais, que corta a “minhoquinha” dos meninos que não querem dormir. Entre os mitos de menor abrangência geográfica, que Cascudo classifica como “secundários e locais”, há alguns que ultrapassaram a sua região e hoje são conhecidos em todo o país, graças à literatura (a Cobra-Norato, motivo do poema de Raul Bopp) e o Matita Pereira, da música de Antonio Carlos Jobim. Com a sua erudição sem pedantismo, sempre com o dom de interessar o leitor, Mestre Cascudo prova que a companhia dos monstros, muitas vezes, em vez de pesadelo, pode ser uma viagem “legitimamente maravilhosa”.



“Naturalmente o Negro, susceptível, crédulo, impressionável, é a melhor e mais ativa caixa de ressonância que pode existir para os mitos assombrosos, os pavores noturnos, os animais da fábula. A todos descreve com as tintas sensíveis de um medo sem fim. É um retocador magnífico, magistral, insubstituível. Demais, pela voz sonolenta das “Mães pretas”, recebemos o condão de ver e saber da existência terrível de todos os monstros, fadas, príncipes e encantos.

A influência negra é, em parte, devida a sua inevitável solidariedade com os pavores que evoca. Ele narra com a “escapação aberta”, em pleno rumor, enchendo de barulho misterioso, de explicações sinistras, de justificações maravilhosas, os episódios mais simples, claros e naturais.

Um fato dirá da profundeza dessa crença vertical, inamolgável, maciça. Um chofer de praça, em Recife, dizia-me, anos passados, que o bandido Virgolino Ferreira, o “Lampião”, era invulnerável por ter recebido um “patuá” da mão de um feiticeiro baiano. “Não há bala que não derreta como manteiga e faca se dobra como arame ao chegar em sua pele”, afirmava o negro motorista, sisudo e convencido. Quando Lampião morreu, casualmente encontrei meu informante e inquiri das virtudes miríficas do “patuá”. Não se perturbou.

Lampião morreu porque deixara o “patuá” (oração-forte, amuleto, etc.) na barraca, quando fora tomar banho pela manhã. Não tivera tempo de recolocá-lo ao pescoço. Por isso morreu...

Como obteve essas informações precisas? Ninguém lhe dissera. Ele sabia. E a fé continuava límpida, sem uma nódoa que empanasse o prestígio dos “patuás”. Esse chofer é, entretanto, um conhecedor habilíssimo dos motores de explosão, sabendo seu ofício como raros. A cultura profissional não lhe alterou em coisa alguma a mentalidade. E como ele, vivem milhares.”

 

 

“No cadinho das florestas e das águas tropicais, o Olharapos se tornava Mapinguari. O Bicho-Homem era o Capelobo. As cobras encantadas convergiam para o reino das mboiaçú e das boiunas. Angústias noturnas amalgamavam-se em chibambas, negras velhas, mãos-de-cabelo, de palha e de fogo. Koboldes caprípedes apostavam velocidade com os Curupiras de cabeleira rubra, olhos verdes e pés ao avesso como seus irmãos clássicos, citados em Aulo Gelo. As lendas ornitomórficas floriam. Não mais em Filomelas românticas, mas na revoada dos Sacis de carapuça vermelha, unípedes e travessos como lutinos. Todas as águas-vivas, ardentes e eternas do Medo, do Pavor sem contorno e da Imaginação, desceram, por três boqueirões raciais, para a vertente de onde sairia o brasileiro...

O português, batendo todo o Brasil com seus sapatões de bandeirante, carregava, em maior percentagem, seus mitos, herança inarredável e perpétua. Os mitos verdadeiramente “gerais”, que se mantêm com as linhas mestras, são de origem peninsular. Nenhum Saci-pererê, ignorado no norte e nordeste, nenhum Caapora, pouco definido em São Paulo e Minas Gerais, pode aceitar o desafio de medir-se com o Lobisomem que trota, cada sexta-feira, por todos os Estados do Brasil. O Mboi-tatá, verdade seja, acende seu clarão pelas cidades, vilas e caminhos, mas aceito normas europeias dos feux-follets, do Sant’Elmo, tendo estórias desencontradas, não se desenha, não se fixa, não se materializa. Os mitos portugueses, ou por eles trazidos, têm direito às prerrogativas do domínio.

Seguem-se as de origem indígena. Os Tupi-guaranis deram a parte preponderante. Estavam em situação social e geográfica capaz de lutar, aliar-se, combater e fundir-se com o português. Subindo do sul para o norte, empurrando os Gês para leste, batizando quase dois terços da terra brasileira, foram os primeiros homens para o contato. Assistiram à primeira missa, testemunhas inconscientes do auto de posse, tropas auxiliares que ajudaram a destruição de si mesmos. Bateram, arrolados nas “bandeiras”, sul e norte, matando e morrendo. O idioma tupi era a língua de entendimento, o nhengatu, a língua-boa, plástica e musical, codificada nas gramáticas, gabada nos púlpitos, recitada nos autos festivos, nas orações milagrosas, nos bailes tradicionais. Foram até o labirinto amazônico, escorregando pelas margens, deixando as pegadas nas madeiras que dariam nome ao rio, em quase todas as orlas, rumando as cabeceiras, num impulso constante e cego, procurando uma terra onde não se morria e que era perto do céu. Ensina Teodoro Sampaio:

Até o começo do século XVIII, a proporção entre as duas línguas faladas na colônia, era mais ou menos de três para um, do tupi para o português.

O padre Antônio Vieira notava, no século XVII, que se falava o tupi comumente, naturalmente. O português estudava-se como elemento cultura, necessário, indispensável, mas secundário ao nhengatu, sonoro e dúctil. Aires do Casal informa que a língua portuguesa “começou a ser geral ou, para melhor dizer, a ter uso em 1755”. E disto se dava no Maranhão, lugar privilegiado.”

 

 

“Nos mitos indígenas, Tupis, melhormente estudados, a influência portuguesa não consegue deformar por inteiro, mas os populariza velozmente. Os portugueses aceitaram os duendes das florestas tupis como seres normais e capazes de façanhas idênticas às dos seus trasgos e olhapins. A teogonia tupi alargou o âmbito de seus adeptos. Nas noites escuras o pavor passava das malocas indígenas para as casas-grandes, onde os colonos abriam os olhos espavoridos para a treva cheia de Curupiras e Lobisomens.

O negro escravo veio com sua humilhação e seu amor infinito. A força dos seus mitos era religiosa, pedindo cerimonial, ritos, danças, comidas protocolares, indumentária. Um culto que seria clandestino, incompleto pela impossibilidade duma exata observância aos processos religiosos. Ainda hoje quando se estuda o negro brasileiro depara-se com a festa religiosa, com seus orixás e bailados, seus dias de preceitos, a crônica aventureira e valente dos deuses africanos, vencedores dos raios e das mulheres.

Os mitos, na acepção folclórica do vocábulo, independendo de ritual, de religiosidade inata, são raros. Ninguém os vence no domínio do cerimonial, da religião hierática, severa, com dogmas, roupas, cores, passos, tradições. Frobenius ensinava que o africano só podia ser compreendido através da sua crença. A religião para ele não era um caminho, um liame, como o vocábulo significa, mas a razão, o “estado” do espírito, a própria duração da vida material. E como todas as coisas derredor participavam desse pathos, não é possível isolar do clima religioso negro um mito como os vemos saídos de europeus e indígenas.

No Folclore brasileiro a influência negra se positiva nas danças, nas diversões de conjunto, em certos autos populares, numa parte musical, em determinadas danças de roda para homens, especialmente as de parelhas soltas ou coletivas, nas estórias e na parte infantil. Nesse mundo dos meninos, o Negro é todo-poderoso. Contou estórias, ressuscitou animais monstruosos, explicou tesouros, mostrou as estrelas, casamento de astros, pavores noturnos, recalques que ficam vivendo na recordação da meninice.

Bem rara será a figura do ciclo da angústia infantil que não tenha muito dos negros. Nenhum mito geral, porém, resistiu aos anos nem foi registado, partindo dos velhos escravos. O próprio Quibungo é o negro-velho preador de crianças, gênero universal. Nas estórias em que o Quibungo não assombra crianças e aparece como um antropófago, creio já ter sido sua ação modificada por um outro mito, o de um gigante ou homem devorador de carne humana, cujo nome se perdeu. Mesmo assim não há originalidade nessa inusitada ação faminta. Todo o ciclo dos monstros é antropófago.

Se o Negro é onipotente nas almas infantis, não o é nos espíritos maduros, afora a sedução dos ritos religiosos. Devemos sempre recordar que o Quibungo foi “justificado” pelos estudiosos brasileiros. Peça por peça, armaram-no no Brasil, com deduções, pesquisas, rastejando documentos, interpretando vocabulários. Em livro que nos tenha vindo da África, através de ingleses, portugueses, norte-americanos ou franceses, não se avista o vulto do Quibungo... Nenhuma aparição negra tem a extensão prestigiosa do Lobisomem, do Caipora, do Saci, da Mula-sem-cabeça, sabidos em todos os lábios brasileiros. O Quibungo surge na Bahia, centro de densidade africana, mas não emigra. As regiões vizinhas não conhecem. A faixa da sua influência é limitada e para que a transponha é preciso mudar aspecto e técnicas, ingressando no ciclo de outros pavores.”

 

 

“Uma característica dos mitos e das tradições fabulosas no Brasil é o fáceis ambulatório, infixo, irregular. Nenhum mito-de-presença, sedentário, com atribuições determinadas, inamovíveis. Se esta peculiaridade aparece nos mitos secundários, e os chamo “regionais”, dando-lhes assim um foro jurídico para demandá-los em matéria de Folclore, analise-se que nenhum mito regional guarda traços que o vinculem ao local de sua atuação. O sinal distintivo é apenas a exigência de meios físicos, águas, árvores, terras ou ares. Nunca solicitam a um determinado lugar a razão de sua existência miraculosa. Os nossos são mitos de movimentos, de ambulação, porque recordam os velhos períodos dos caminhos, dos rios, das bandeiras, de todos os processos humanos de penetração e vitória sobre a distância. Quase sempre são mitos cuja atividade é apavorar “quando passam” ou “correm”. Curupiras, Caiporas, Mapinguaris, Sacis, Lobisomens seriam ineficazes em atitude hirta, como uma parada de monstros. Mesmo nos rios, lagoas e mar, os seres assombrosos não têm pouso fixo. Nadam para aqui e para além. A Loreley não deixa seu rochedo no Reno. A nossa Iara é campeã de distância a nado livre...”

 

 

“No Brasil, pelo que sabemos, o culto indígena mais espalhado e seguido, o verdadeiro culto nacional, era o de Jurupari. A catequese religiosa foi obrigada a transformá-lo em Demônio. Não era possível converter-se Jurupari porque os pajés seriam alistados na classe sacerdotal. Achado o Princípio do Mal, havia a necessidade do Princípio do Bem, o Deus-bondade e Criador, uma égide indígena onde a concepção do Iavé hebreu e do Deus-Pai católico pudesse caber e ser entendida. O indígena assimilaria a religião nova se esta viesse por intermédio de formas suas conhecidas. Em todos os processos divulgatórios a adaptação é o primeiro e maior fator de vitória. Quando o missionário enfrentou o africano, explicou que Olurum (o céu), forma dúbia e vaga que não possuía liturgia, era Deus que ele vinha anunciar. Elegbá, o nume carnal, protetor da junção amorosa, anteriormente tido como uma força, um deus invisível, depois manifestado pelas festas fálicas, foi identificado, sendo devasso e lascivo, no próprio Diabo.

Muito mais vago que o Olurum dos negros nagôs, era o Tupã dos ameríndios brasileiros.

Era como o Sita dos árias, o Ma dos egípcios, o Tau dos chineses, o Morai dos gregos, entidade acima das contingências humanas, inacessível às súplicas, indiferente aos destinos terrenos. Não tinha a manifestação inicial dos cultos primitivos, que é a lenda explicativa, o conto etiológico. Não fazia milagres nem tinha forma.

Era Tupã o que os folcloristas ingleses chamam Nature God, personificação abstrata de forças cósmicas, com atuação meteórica, sem interferência na vida sublunar. Pertencia à fase inicial das religiões. Era um elemento que Durkheim dizia préanimiste. Lévy-Bruhl escreve que, nas sociedades primitivas, todas as funções de relação são funções de presença de seres sobrenaturais. E como toda participação tende a ser representada nos fenômenos meteorológicos, que deviam impressionar maiormente aos indígenas, era natural que certos seres fossem apontados como dirigindo o trovão, o raio, o relâmpago e a chuva. Antes, esses fenômenos seriam deificados intrinsecamente. Na fase atual é que a diversificação se completa.”

 

 

“Quem tenha estudado detalhadamente os mitos indígenas do Brasil, ouvido o silvícola, deduzidas as tradições de sua história complexa, terá a conclusão de que eles foram quase sempre observados através da lua europeia, da alma europeia e da mentalidade branca. Nós, inconscientemente, fazemos da nossa moral e costumes, dos nossos dogmas religiosos e padrões estéticos, outros tantos pontos de referência para ajuizarmos o nosso irmão da mata. O resultado é conseguirmos um ser deturpado, misto de malícia e pavor, de bestialidade feroz e de ingenuidade encantadora. Creio que é erro. O índio não é problema desde que o olhamos com os olhos indígenas.

Um desvio inicial que retarda tanto a compreensão da psiquê ameríndia é sua teogonia que julgamos complexa e pueril.

Nós começamos a orar, venerar, temer e amar, a sabermos a origem da espécie e do mundo, dirigindo-nos continuamente a um Pai, Deus-Pai. O primeiro Ser, o Supremo Ser, o Que-sempre-foi-e-será, é um Homem.

Com os índios é isso mesmo às avessas. É um ser feminino, a Mãe, Ci. Acreditavam os índios que tudo no mundo, vegetal, animal, mineral, possui sua criadora, protetora e guiadora eterna. Têm a Mãe do vento, das pedras, dos frutos, de cada tipo de peixe, de insetos, de aves, árvores, estrelas, vermes, cobras, fantasmas. Há a mãe da mandioca como há a mãe da coceira. Tudo tem Mãe e esta gerou seus filhos sem a necessidade do elemento viril. Todos os indígenas sabem de cor a Mãe disto e daquilo, mas ninguém sabe o nome do Pai. O Pai é um detalhe inútil. Ci sempre desconheceu o segredo da reprodução sexuada.

Eis por que na teogonia tupi todos os grandes deuses são femininos. O Sol é Goaraci, Mãe deste Dia, mãe dos viventes. A Lua é Mãe-nossa, mãe dos vegetais. A tradição das virgens-mães é contínua na América como na África e Ásia. O fecundador desses Ci é um ser que ainda não preocupou a inteligência selvagem. Indicar o aéreo Tupã para esse mister é apenas uma hipótese sem a mais longínqua documentação lendária ou erudita.

Devia haver, abstrata e vaga, a noção de um Ser Supremo. Mas, como Olurum vive através dos seus “orixás”, bem podia esse Criador atuar por um de seus atributos, o sol, o trovão, a luz, a chuva. Infelizmente nenhum Pajé acedeu em conceder uma entrevista detalhada. Tido como ministro de Satanás, aderiu, fugiu ou morreu, levando seu segredo para o silêncio perpétuo. Devia haver o Ser Supremo, mas este pertenceria a uma classe minoritária, restrita, de eleitos, capazes do entendimento, velhos iniciados nos meandros do suprarreal. Tupã, deus longínquo e sem a indispensável moldura do sacerdócio, só teve as honras das oblatas quando os abaúnas desceram das naus e plantaram, no solo vermelho da Pindorama, a cruz de Cristo.

Tupã era primitivamente o trovão e depois o ente que o governava. Na teogonia brasileira não era citado e quando aparecia era em lugar secundário. Não encontraram mais sua história nem suas aventuras, além das burlescas e trágicas de Brandão de Amorim. Não tinha Pajé, nem dança, nem festa, nem cerimônia, nem crentes, nem tradições. Foi aproveitado pela inteligência catequista, como noutros países o fizeram, para antepor-se à religião local e dominante. Os elementos colonizadores e posteriormente o curiboca, além da população aborígine cristianizada, aceitaram e propagaram o mito artificial de Tupã e ele foi o único a ser tolerado e prestigiado. Popularizado nas orações feitas pelos jesuítas, passou para a literatura como o Deus dos Índios Brasileiros.

O Sr. Gabriel Gravier, Presidente da Sociedade Normanda de Geografia, publicou um Étude ser le Sauvage du Brésil (Paris, 1881). À p. 47 escreve:

Tupã é um Deus grande, poderoso e terrível, Ele se manifesta como o Senhor de Israel, por trovões e relâmpagos. Ele está em toda parte, ele fez tudo. Seu nome significa quem é. Este é o Deus latino desconhecido*.

Essa foi a mentalidade que divulgou Tupã para os eruditos da Europa. Findo o impulso cristianizador o movimento não se deteve e Tupã continuou, deformado e canhestro, no seu trono inexpressivo. Nunca merecera do indígena um gesto espontâneo de pavor ou respeito. Isto basta. Não há Deus sem liturgia.”

*: tradução livre

 

 

“O Diabo estava em toda a parte. Aconselhava, dirigia, trabalhava como servo, ajudava. Sabiam até fazer um demoniozinho e alimentá-lo de sangue humano, sugado pelo dedo mínimo, ou sustentá-lo com azeite doce. As judias e ciganas tinham o monopólio desse fabrico assombroso. As bruxas podiam tanto quanto os bispos e os ricos mercadores. Com as trevas da noite as cidades coloniais eram sacudidas pelos uivos dos bichos assombrosos, nascidos pela vontade dos feitiços, no fundo do mistério.

Para ter-se uma visão da mentalidade, basta a leitura das atas e depoimentos de Visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador e Pernambuco. Paulo Prado publicou dois tomos e a Sociedade Capistrano de Abreu um outro. São “instantâneos” sem retoque da época e dos meandros por onde escorria uma fé detalhista, sinuosa, pragmática e hirta. Fernão Cardim, ex-provincial, jesuíta culto, inteligente, cronista delicioso e claro, reitor do Colégio da Companhia de Jesus, denunciou Jorge Martins pelo crime de ter dito que Deus tinha mão direita. O vigário de Tassuapina, padre João Fernandes, denunciou a João Batista por este ter dito que justo só Deus, esquecido que a Virgem Maria, São João Evangelista foram justos e o são assim como o velho Simeão é tido pela Igreja como vir justus et timoratus. A feiticeira Maria Gonçalves, conhecida por “Arde-lhe o rabo”, estava convencidíssima de conversar todas as noites com os diabos. Toda a Europa tremia com medo do Senhor das Trevas. Ainda na primeira metade do século XVIII, dom João V de Portugal e o cardeal da Mota, secretário de Estado, mandavam as negras da Guiné fazer amuletos contra o mau-olhado.”

 

 

“Na luta da catequese os jesuítas se convenceram de que a argúcia dos Pajés e seus conhecimentos médicos, meteorológicos e topográficos, deviam vir do Demônio, padroeiro dos irreligiosos. O indígena não tinha oração nem tributo pessoal para a divindade. Tudo se fazia coletivamente e sob a direção do Pajé decrépito. A campanha catequizadora orientou-se contra o Pajé como para uma vertente lógica por onde todas as águas malsãs escoavam envenenando os ares limpos. Não conheciam Deus. Era o depoimento unânime dos cronistas. Nem uma fé têm, nem adoram a deus algum (frei Vicente do Salvador). Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhecem Deus (padre Manuel da Nóbrega). Além de não revelarem conhecimento nenhum do verdadeiro Deus, não adoram nem confessam deuses falsos, celestiais ou terrestres (Jean de Léry). Nenhuma criatura adoram por Deus (padre Anchieta). Este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de coisa do céu (padre Fernão Cardim). Não adoram coisa alguma (Pero de Magalhães Gandavo). Não tinham espécie alguma de religião (Cláudio d’Abbeville). Sem fé, sem lei, sem religião (André Thevet).”

 

 

“Retina de civilizado deforma ao mirar as histórias incompreensíveis.”

 

 

“A superstição brasileira referente aos mortos da família era vasta e profunda. Estavam os indígenas sempre dispostos a ouvir-lhes a voz longínqua, trazida pelas aves de agouro. O indígena teme imensamente, como o nosso matuto, a mbai-aib, a coisa má, a visagem, o fantasma, e para não vê-lo é capaz de todos os sacrifícios.” (avaliar)

 

 

“Os deuses da teogonia tupi são andróginos. Têm em si os órgãos de fecundação e da reprodução. Independem da divisão dos sexos. Goaraci, o Sol, e Jaci, a Lua, deuses superiores, são ambos femininos e criaram tudo que existe na terra. Todos os indígenas falam na Mãe-do-rio, mãe das aves, dos peixes, das pedras, das rãs, das flores, das moléstias etc. Mas não falam no progenitor. Parece mesmo que houve um período longo de matriarcado porque Jurupari, o reformador, retirou o governo das mãos das mulheres e entregou-o aos homens. Não seria coisa invulgar a concepção sem a pesquisa da paternidade subsequente. Depois é que não se pôde admitir o fruto sem o semeador.

Existia no Brasil o Ipupiara, informe e mau. Mães-d’Água, Iaras, botos dom-juan são somas de estórias da Europa e África convergidas para objetos que despertaram a curiosidade pela anormalidade dos costumes. O Ipupiara passou a Mãe-d’Água. O Boto recebeu a herança erudita do golfinho páfio, egresso dos cultos dos portos gregos, onde abrolhou Vênus, citérea ou páfia. A Iara é europeia. O índio não a conheceu outrora. Hoje é natural que a diga velhíssima, uma vez que, há três séculos, a lenda escorre pela sua memória. Impossível aceitar na íntegra toda documentação dos estudiosos. Hartt registra um episódio em que uma Uiara toma a forma de uma veada para seduzir um caçador na serra do Ererê. Evidentemente essa veada é um despautério para um mito fluvial. Trata-se de Anhanga... mas isto é outra estória, but that is another story, como diria Kiplin.”

 

 

“Onde vai o Homem, com ele viajam seus pavores.”