quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

São Francisco de Assis: o Santo da paz e do bem – Frei Geraldo Monteiro

Editora: Mensageiro de Santo Antônio
ISBN: 978-85-6532-303-1
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 128
Sinopse: Com uma linguagem simples, apresenta a vida do Poverello de Assis, que, mesmo oito séculos depois, continua a inspirar homens e mulheres no seguimento do Cristo Pobre e Crucificado e a provocar encantamento em quem quer que se encontre com ele. Francisco espelha e espalha autenticidade, uma vida feliz, encontrada e realizada, e, neste sentido, toca o íntimo das pessoas de todas as idades, culturas e religiões.
Frei Geraldo reveste a sua narração daquele tom próximo de quem senta conosco para “contar uma história”, e conta com um estilo que vai para além de uma narrativa da História, sem com isso deixar de inserir o leitor no ambiente histórico da Assis dos inícios do século XIII. O seu leitor sente-se convidado a participar dessa intensa aventura de servir um grande Senhor, que se revela Pobre e Crucificado, Misericordioso e Apaixonado.
Todos os momentos fundamentais da caminhada do Pobrezinho de Assis estão contidos neste livro e foram narrados com uma singeleza e com um tom que atingem direto o coração de quem lê. Desde o nascimento de Francisco, passando pela sua conversão e pela constituição de uma nova ordem na Igreja, chegando até o momento decisivo de abraçar a Irmã Morte, podemos mergulhar na biografia de Francisco, o que nos ajudará a compreender melhor a vida e os ideais deste homem que marcou profundamente a vida da Igreja com sua pobreza evangélica e com sua humildade, contrastando com o enorme poder temporal reinante em sua época.
Esta nova edição, além de ter sido revista, foi ampliada: o autor dedicou um capítulo inteiro à Santa Clara, plantinha que nasce do movimento iniciado por Francisco e que representa “a ternura e o vigor” da grande Família Franciscana que acabara de nascer.
Oxalá a experiência viva de Francisco e dos companheiros da primeira hora encante e fascine os corações e as mentes de todos os que deles se aproximarem, especialmente os jovens, que carecem, hoje mais do que nunca, de uma alegria perfeita, capaz de inundar suas vidas. Certamente, o livro que temos nas mãos é uma provocação neste sentido.



“Olhem, irmãos, antes de me converter mesmo, eu sentia horror só em ver os leprosos. Era-me insuportável olhar para os leprosos. Mas Deus foi bom para comigo. Ele mesmo me conduziu entre os leprosos e eu tive dó, compaixão, misericórdia para com eles. E eu quis ser para eles o que Deus é: pai, irmão, amigo! A partir daquele instante então, justamente o que antes me parecia amargo converteu-se em doçura da alma.” (Testamento 1-3)


“De uma cabana vai-se mais depressa ao céu do que de um palácio.” (Francisco de Assis)


“E não eram somente homens que desejavam viver aquele modo de seguir a Nosso Senhor. Também moças, senhoras viúvas, despertadas pela pregação dos freis e seguindo seus conselhos, entravam em mosteiros das cidades ou aldeias para fazer penitência. Do mesmo modo, homens e mulheres, casados, sem abandonar a vida de casados, passaram a viver de maneira mais intensa sua vida cristã, com a orientação, a amizade e o conselho dos frades. E foi assim que, aos poucos, foram surgindo as três Ordens Franciscanas: a Primeira Ordem, a dos frades que, abandonando tudo, passavam a viver em pobreza e humildade, normalmente ao redor de uma igrejinha, vivendo do próprio trabalho e da pregação da Palavra de Deus. A Segunda Ordem, das irmãs, chamadas “Pobres Damas” de São Damião, a quem o povo chama de “Clarissas”, isto é, seguidoras de Santa Clara, a primeira plantinha de Francisco de Assis. A Terceira Ordem, leigos e leigas, casados e solteiros que, inspirados por São Francisco, descobrem um jeito de viver a humildade, a pobreza, a simplicidade de Nosso Senhor no mundo secular, como fermento e massa. Hoje são chamados franciscanos da Ordem Franciscana Secular!”


“(No meio das cruzadas) O Sultão Melek-el-Kamel lhes perguntou: “Por que os cristãos, que creem em um Deus-amor e têm sempre a caridade na boca, nos movem uma guerra tão encarniçada e não querem nada de paz?”
– Senhor – respondera Francisco –, o amor não é amado! O amor, neste mundo, está sempre crucificado!”


“É doce à carne servir o pecado e amargo servir a Deus, porquanto, como diz o Senhor no Evangelho, todos os vícios e pecados saem e procedem do coração dos homens.”


Oração pela Paz
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz!
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver a discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvida, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero que eu leve a esperança.
Onde houver a tristeza, que eu leve alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Mestre, fazei-me que eu procure mais, consolar que ser consolado;
Compreender que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe;
É perdoando que se é perdoado;
E é morrendo que se vive para a vida eterna!


Oração a São Francisco de Assis
São Francisco, o mundo tem saudades de ti como imagem de Jesus Crucificado. Tem necessidade do teu coração aberto para Deus e para o homem, dos teus pés descalços e feridos, das tuas mãos trespassadas e implorantes. Tem saudades da tua voz fraca, mas forte pelo Evangelho.
Ajuda, Francisco, os homens de hoje a reconhecerem o mal do pecado e a procurarem a purificação da penitência. Ajuda-os a libertarem-se das próprias estruturas de pecado, que oprimem a sociedade hodierna.
Reaviva na consciência dos governantes a urgência da paz nas Nações e entre os Povos. Infunde nos jovens o teu vigor de vida, capaz de fazer frente às insídias das múltiplas culturas da morte.
Aos ofendidos por toda espécie de maldade, comunica, Francisco, a tua alegria de saber perdoar. A todos os crucificados pelo sofrimento, pela fome e pela guerra, reabre as portas da esperança. Amém.
(Papa João Paulo II)

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

As Memórias do Livro: romance sobre o manuscrito de Sarajevo – Geraldine Brooks

Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-0002-332-3
Tradução: Marcos Malvezzi Leal
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 384
Sinopse: Anna Heath, uma australiana especialista em livros raros, acaba de ser convocada para a missão de sua vida: restaurar e analisar a história por trás da famosa Hagadá de sarajevo, resgatada após um bombardeio sérvio durante a guerra da Bósnia. Uma obra de beleza e valor imensuráveis, o livro é um dos primeiros volumes judaicos a conter ilustrações. Quando Hanna descobre uma série de minúsculos elementos no interior do livro – o fragmento da asa de um inseto, manchas de vinho, cristais de sal e um cabelo branco –, começa a desvendar os mistérios por trás daquelas páginas desde sua criação até os dias atuais, revelando um passado de exílio, coragem, sofrimento e redenção. ao mesmo tempo em que Hanna desvenda as histórias por trás da Hagadá, ela reúne a coragem que tanto necessitava para revisitar os fantasmas de seu passado e perceber que suas paixões também podem estar muito além das páginas dos velhos e fascinantes volumes aos quais dedicou toda sua vida até então.
Inspirado em uma história real, As Memórias do Livro é um romance composto por duas tramas paralelas: uma rica e emocionante recriação histórica que vai desde o século XV até a segunda Guerra Mundial, e uma cativante trama contemporânea, que combina as artimanhas e a ambição dos bastidores do mundo acadêmico com uma história emocionante sobre família, afeto e a eterna busca pelo amor.
As Memórias do Livro é uma narrativa vívida e poderosa sobre a paixão pelos livros e a infindável luta por sobrevivência e liberdade.


“No lugar onde se queimam livros, no fim se queimam homens.” (Heinrich Heine)


“Anos atrás, testemunhamos o Líbano se despedaçar e dizíamos: “Assim é o Oriente Médio, essa gente é primitiva”. Depois vimos Drubrovnik em chamas e dissemos: “Nós somos diferentes em Sarajevo”. Era o que todos pensávamos. Como poderíamos ter uma guerra étnica aqui, nesta cidade, onde cada pessoa é produto de um casamento misto? Como ter uma guerra religiosa numa cidade onde ninguém frequenta a igreja? Para mim, a mesquita é como um museu, um local curioso para você visitar com seus avós. Pitoresco, entende? Uma vez por ano, talvez, íamos ver o zikr, onde os dervixes dançam, e era como um teatro. Como vocês dizem? Uma pantomina. Meu melhor amigo, Danilo, é judeu, e nunca sequer foi circuncidado. Não há nenhum mohel aqui; era preciso ir ao barbeiro para fazer a circuncisão. (...) Nós não acreditávamos na guerra. Nosso líder dizia: ”São necessários dois lados para haver uma guerra, e nós não vamos lutar.” Não aqui, não em nossa preciosa Sarajevo, nossa idealística cidade olímpica. Éramos inteligentes demais, cínicos demais para uma guerra. Claro que você não precisa ser estúpido e primitivo para ter uma morte estúpida e primitiva. Agora, nós sabemos disso. Mas naquela época, naqueles primeiros dias, todos fazíamos coisas um pouco loucas. Garotos, adolescentes, saíam em demonstrações contra a guerra, com cartazes e música, como se estivessem indo a um piquenique. Mesmo depois de uma dúzia de tiros neles, nós ainda não acreditávamos. Esperávamos que a comunidade internacional pusesse um fim naquilo. Eu acreditava nisso. Preocupava-me que pudesse durar alguns dias, e nada mais, enquanto o mundo – como se diz? – tomaria uma providência.”


“Ele saiu da cama, deu um passo em minha direção, segurou meu rosto entre as mãos e se aproximou tanto de mim, que seus traços de zanga pareciam até fora de foco.
– Você – ele disse; e a voz mais parecia um sussurro contido. – Você é que é consumida por baboseiras.
Aquela súbita ferocidade me assustou. Eu me afastei.
– Você – ele prosseguiu, agarrando meu punho. – Todos vocês, do mundo seguro, com seus air bags, e suas embalagens hermeticamente fechadas e suas dietas livres de gordura. Vocês é que são os supersticiosos. Vocês se convencem de que podem tapear a morte, e se sentem absolutamente ofendidos quando descobrem que não podem. Vocês ficam sentados em seus apartamentos confortáveis e assistem à guerra, e nos veem sangrando, pela televisão. E pensam: “Que horror!”, e depois se levantam e tomam outra xícara de café expresso. (...) Coisas ruins acontecem. Algumas coisas muito ruins aconteceram comigo. E eu não sou diferente de mil outros pais nesta cidade cujos filhos sofrem. Eu convivo com isso. Nem toda história tem um final feliz. Cresça, Hanna, e aceite isso.”


“Quanto à minha assim chamada família disfuncional, é verdade que eu herdei uma crença básica, para ficar alerta: Não confie em ninguém para sustento emocional. Encontre alguma coisa para fazer que a absorva – que a absorva a ponto de você não ter tempo para entrar no esquema de “Oh, pobre de mim”. Minha mãe ama o trabalho dela, e eu amo o meu. Portanto, o fato de nós não amarmos uma à outra... bem, eu quase nunca penso nisso.”


“Se uma pergunta tem uma resposta, eu não suporto não sabê-la.”

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O 18 de Brumário de Luís Bonaparte – Karl Marx

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-171-0
Tradução e notas: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 176
Sinopse: Décimo título da coleção Marx-Engels da Boitempo Editorial, O 18 de brumário de Luís Bonaparte traz a célebre análise de Karl Marx sobre o processo que levou da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França. Escrito no calor dos fatos, entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, teve sua primeira publicação em maio de 1852, com o título Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, na estreia da revista alemã Die Revolution. A tradução brasileira tem por base a segunda edição, revisada por Marx em 1869, em Hamburgo.
Nesse texto fundamental, o filósofo desenvolve o estudo do papel da luta de classes como força motriz da história e aprofunda a teoria do Estado, sobretudo demonstrando que todas as revoluções burguesas apenas aperfeiçoaram a máquina estatal para oprimir as classes. Embasado por essa observação, Marx propõe, pela primeira vez, a tese de que o proletariado não deve assumir o aparato existente, mas desmanchá-lo.
A publicação de O 18 de brumário de Luís Bonaparte é também enriquecida com um texto de Herbert Marcuse inédito em português, escrito para a edição de 1965 da editora Insel (Frankfurt). Nele, Marcuse fala, já sob a luz do século XX, sobre como a interpretação de Marx acerca do golpe de Napoleão III antecipa a dinâmica posterior da sociedade: “Como se chegou a essa situação em que a sociedade burguesa só pode ainda ser salva pela dominação autoritária, pelo exército, pela liquidação e traição das suas promessas e instituições liberais? (...) Isso é cômico, mas a própria comédia já é a tragédia, na qual tudo é jogado fora e sacrificado. Tudo ainda é século XIX: passado liberal, pré-liberal”.
Mesmo diante da conversão da irracionalidade em razão dominante e em face da derrota daqueles que se sublevaram nos anos seguintes ao terceiro Napoleão – como na Comuna de Paris, em 1871 –, Marx manteve a esperança para os desesperançados. E, como lembra Ruy Braga na orelha do livro, “no momento em que variantes democráticas ‘bonapartistas sui generis’ despertam do pesadelo neoliberal na América Latina, nada melhor do que redescobrir a obra que sedimentou as bases de todo um precioso debate político e acadêmico.”
A ilustração de capa, na qual Marx pisa displicentemente no retrato de Luís Napoleão, é de autoria de Gilberto Maringoni. A publicação foi traduzida por Nélio Schneider e vem ainda acompanhada de um índice onomástico das personagens citadas no texto principal e de uma cronobiografia resumida de Marx e Engels – que contém aspectos fundamentais da vida pessoal, da militância política e da obra teórica de ambos –, com informações úteis ao leitor, iniciado ou não na obra marxiana.

“Marx foi o primeiro a descobrir a grande lei do movimento da história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas travadas no âmbito político, religioso, filosófico ou em qualquer outro campo ideológico são de fato apenas a expressão mais ou menos nítida de lutas entre classes sociais, a lei segundo a qual a existência e, portanto, também as colisões entre essas classes são condicionadas, por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da sua condição econômica, pelo modo da sua produção e pelo modo do seu intercâmbio condicionado pelo modo de produção. Essa lei, que para a história tem a mesma importância do que a lei da transformação da energia para a ciência natural – essa lei lhe proporcionou, também nesse caso, a chave para a compreensão da história da Segunda República francesa. E essa história lhe serviu para submeter a sua lei à prova, tanto é que, trinta e três anos depois, ainda temos de reconhecer que ela passou no teste com brilhantismo.”
(Friedrich Engels – Prefácio à 3ª edição, de 1885)


“Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”


“Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. Assim, Lutero se disfarçou de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 se travestiu ora de República Romana ora de cesarismo romano e a revolução de 1848 não descobriu nada melhor para fazer do que parodiar, de um lado, o ano de 1789 e, de outro, a tradição revolucionária de 1793-95. Do mesmo modo, uma pessoa que acabou de aprender uma língua nova costuma retraduzi-la o tempo todo para a sua língua materna; ela, porém, só conseguirá apropriar-se do espírito da nova língua e só será capaz de expressar-se livremente com a ajuda dela quando passar a se mover em seu âmbito sem reminiscências do passado e quando, em seu uso, esquecer a sua língua nativa.”


“O período que temos diante de nós abrange a mais variada mistura de contradições gritantes: constitucionalistas que conspiram contra a Constituição; revolucionários que admitem ser constitucionalistas; uma Assembleia Nacional que quer ser onipotente e que o tempo todo permanece parlamentarista; uma Montanha que acha a sua vocação na tolerância e que compensa as suas atuais derrotas profetizando vitórias futuras; monarquistas que constituem os patres conscripti* da república e que são forçados pela situação a manter no exterior as casas reais inimigas de que são adeptos e, na França, a república que odeiam; um Poder Executivo que vislumbra a sua força na sua própria debilidade e a sua respeitabilidade no desprezo que inspira; uma república que nada mais é que a infâmia conjugada de duas monarquias, a da monarquia da Restauração e a da Monarquia de Julho, com uma etiqueta imperialista – uniões, cuja primeira cláusula é a separação; lutas, cuja primeira lei é a indecisão; em nome do sossego, agitação caótica e sem conteúdo; em nome da revolução, pregação solene do sossego; paixões sem verdade, verdades sem paixão, heróis sem feitos heroicos, história sem eventos; desenvolvimento, cujo único motor parece ter sido o calendário, exaurindo-se pela constante repetição das mesmas tensões e distensões; antagonismos que parecem aguçar a si mesmos periodicamente só para embotar-se e ruir sobre si mesmos sem conseguir chegar a uma resolução; esforços pretensiosamente encenados ao público e pavor burguês diante da ameaça do fim do mundo; ao mesmo tempo, os salvadores do mundo representam as intrigas e comédias cortesãs mais mesquinhas, que em seu laisser-aller [sua negligência] lembram menos o dia do juízo final do que os tempos da fronda** – o conjunto da genialidade oficial da França envergonhada pela estupidez astuta de um único indivíduo; toda a vontade da nação, sempre que manifestada pelo voto universal, buscando a expressão que lhe corresponde nos ultrapassados inimigos dos interesses das massas, até encontrá-la, por fim, na renitência de um flibusteiro. Se algum trecho da história foi pintado em tom de cinza, então foi esse. Pessoas e acontecimentos aparecem como schlemihles*** invertidos, como sombras que perderam os seus corpos. A revolução paralisou os seus próprios agentes e dotou somente os seus adversários de fervorosa violência. Quando finalmente surgiu o “espectro vermelho”, constantemente conjurado e esconjurado pelos contrarrevolucionários, ele não apareceu com o barrete frígio do anarquismo na cabeça, mas trajando o uniforme da ordem, com as suas bombachas vermelhas.”
*: Pais eleitos (título de honra dos senadores da Roma antiga).
**: A fronda foi um movimento de oposição contra o absolutismo na França, que existiu de 1648 a 1653. Ela reunia forças sociais variadas, desde elementos camponeses, plebeus radicais e elementos da burguesia oposicionista até altos funcionários  e aristocratas. O movimento estava direcionado em primeira linha contra a política do cardeal Jules Mazarin.
***: Referência à novela Peter Schlemihls wundersame Geschichte [A fantástica história de Peter Schlemihl], de A. von Chamisso (1814), em que o personagem principal Peter Schlemihl vende a sua sombra ao diabo.


“Assim como na vida privada se costuma diferenciar entre o que uma pessoa pensa e diz de si mesma e o que ela realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se diferenciar tanto mais as fraseologias e ilusões nutridas pelos partidos do seu verdadeiro organismo e dos seus reais interesses, deve-se diferenciar as suas concepções da sua realidade.”


“Por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição, na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo. Por conseguinte, não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos. Mas quando, no momento da ação concreta, os seus interesses se revelam desinteressantes e o seu poder se revela impotente, atribuem esse fato ou a sofistas perniciosos que dividem o povo indivisível em diversas frentes hostis ou ao exército que estava por demais abestalhado e ofuscado para compreender os fins puros da democracia como a melhor coisa para si mesmo, ou tudo falhou em algum detalhe de execução ou então algum imprevisto pôs a perder essa rodada do jogo. Como quer que seja, o democrata sai da derrota mais vergonhosa tão imaculado quanto era inocente ao nela entrar, agora renovado em sua convicção de que ele deverá triunfar, não de tal modo que ele próprio e o seu partido tenham de renunciar ao seu velho ponto de vista, mas, ao contrário, de tal modo que as condições amadureçam no sentido por ele pretendido.”


“Num primeiro momento, Bonaparte havia apenas dado um passo para frente, para ser arremessado de volta de modo tanto mais conspícuo. A sua mensagem indelicada foi seguida da mais servil das declarações de submissão à Assembleia Nacional. Toda vez que os ministros ousavam uma tentativa tímida de apresentar os seus caprichos pessoais como projetos de lei, eles próprios pareciam cumprir contrariados e pela obrigação do cargo as esdrúxulas incumbências recebidas e de cujo insucesso de antemão estavam convencidos. Toda vez que Bonaparte deixava escapar as suas intenções pelas costas dos ministros e brincava com as suas “idées napoléoniennes” [ideias napoleônicas], os seus próprios ministros o desautorizavam da tribuna da Assembleia Nacional. Os seus desejos de usurpação pareciam ganhar expressão só para que as gargalhadas de regozijo dos seus adversários não silenciassem. Ele se portava como um gênio não reconhecido, que todo mundo tinha na conta de um simplório. Ele nunca gozou de tanto desprezo por parte de todas as classes como durante esse período. O governo da burguesia nunca foi tão absoluto, nunca ela ostentou com tanta prepotência as insígnias da dominação.
Não me cabe aqui escrever a história da sua atividade legislativa, que se resume, nesse período, em duas leis: na lei que restabelece o imposto do vinho e na lei de educação, que abole a descrença. Enquanto, para os franceses, ficou mais difícil beber vinho, foi-lhes servida, em compensação, mais abundantemente a água da verdadeira vida. Enquanto, na lei referente ao imposto do vinho, a burguesia declarou intocável o velho e detestável sistema fiscal francês, mediante a lei de educação, ela procurou assegurar o antigo estado de ânimo das massas que permitia suportá-lo.”


“A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização, que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado “socialistas”. Nessa ameaça e nesse ataque, ela desvendou acertadamente o segredo do socialismo, cujo sentido e tendência ela avaliou com mais justeza do que o próprio assim chamado socialismo é capaz de fazer a seu respeito, o qual, por conseguinte, não consegue entender por que a burguesia se fecha a ele tão obstinadamente, quer ele se lamurie em termos sentimentais dos sofrimentos da humanidade, quer ele proclame em termos cristãos o reino milenar e o amor fraterno universal ou devaneie em termos humanistas sobre espírito, formação e liberdade ou imagine em termos doutrinários um sistema de mediação e de bem-estar de todas as classes. Porém, o que a burguesia não compreendeu foi a consequência de que o seu próprio regime parlamentarista, que a sua dominação política como tal, e agora também em moldes socialistas, necessariamente incorreria na sentença condenatória generalizada. Enquanto a dominação da classe burguesa não se organizasse totalmente, enquanto não adquirisse a sua expressão política pura, o antagonismo em relação às demais classes tampouco podia aparecer de forma pura, e, onde aparecesse, não teria como assumir aquela versão perigosa que transforma toda luta contra o poder estatal em luta contra o capital. Vendo em cada manifestação de vida da sociedade uma ameaça à “tranquilidade”, como ela poderia querer manter no topo da sociedade o regime da intranquilidade, o seu próprio regime, o regime parlamentarista, esse regime que, segundo a expressão de um dos seus oradores, vive na luta e pela luta? O regime parlamentarista vive da discussão; então, como poderia proibir a discussão? Cada interesse, cada instituição social é transformada por ele em ideia universal, tratada como ideia; como poderia algum interesse, alguma instituição afirmar-se acima do pensamento e impor-se como artigo de fé? A briga dos oradores na tribuna provoca a briga dos prelos, o clube de debates no Parlamento é necessariamente complementado pelos clubes de debates nos salões e bares, os representantes que constantemente apelam para a opinião popular autorizam-na a expressar a sua real opinião por meio de petições. O regime parlamentarista submete tudo à decisão das maiorias; como poderiam as maiorias que estão além do Parlamento querer não decidir? Se vós que estais no topo do Estado tocais o violino, por acaso não esperais que os que estão lá embaixo dancem?
Assim sendo, ao tachar de heresia “socialista” aquilo que antes enaltecera como “liberal”, a burguesia confessa que o seu próprio interesse demanda que ela seja afastada do perigo de governar a si própria; que, para estabelecer a tranquilidade no país, sobretudo o seu Parlamento de burgueses devia ser silenciado; que, para preservar o seu poder social intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se a sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes; que, para salvar a sua bolsa, a coroa deveria ser arrancada da sua cabeça e a espada destinada a protegê-la deveria ser pendurada sobre a sua própria cabeça como espada de Dâmocles.”


“No momento em que a própria burguesia passou a encenar a mais completa comédia, ainda que com insuperável seriedade, sem violar nenhuma das condições pedantes da etiqueta dramática francesa, ela própria meio iludida e meio convencida do caráter solene das suas grandes ações oficiais, teria de triunfar o aventureiro que encarava essa ação como pura comédia. Somente depois de ter eliminado o seu solene adversário, somente depois que ele próprio começou a levar a sério o seu papel imperial e, colocando a máscara napoleônica, imaginou estar representando o verdadeiro Napoleão, tornou-se vítima da sua própria cosmovisão, o palhaço sério, que deixa de tomar a história universal como comédia e passa a ver a sua comédia como história universal.”


“O puro egoísmo que faz com que o burguês comum sempre esteja inclinado a sacrificar o interesse geral da sua classe em favor deste ou daquele motivo privado.”


“De modo ainda mais inequívoco do que no caso da ruptura com os seus representantes parlamentares, a burguesia tornou pública a sua raiva contra os seus representantes literários, contra a sua própria imprensa. Causaram assombro não só na França, mas em toda a Europa, as sentenças proferidas pelos júris burgueses, condenando jornalistas burgueses a pagar multas exorbitantes e a cumprir penas descabidas de prisão por todo e qualquer ataque que desferiam contra os anseios usurpadores de Bonaparte, por toda e qualquer tentativa da imprensa no sentido de defender os direitos políticos da burguesia contra o Poder Executivo.
Como demonstrei, o partido parlamentar da ordem com a sua grita por tranquilidade reduziu a si próprio ao silêncio, declarando que o domínio político da burguesia é incompatível com a segurança e a continuidade da burguesia, destruindo com as próprias mãos, na luta contra as demais classes da sociedade, todas as condições de seu próprio regime, o regime parlamentarista; a massa extraparlamentar da burguesia, em contrapartida, sendo servil ao presidente, insultando o Parlamento, maltratando a sua própria imprensa, praticamente convidou Bonaparte a reprimir e destruir o segmento que dominava a fala e a escrita, os seus políticos e os seus literatos, a sua tribuna e a sua imprensa, para que pudesse, confiadamente, sob a proteção de um governo forte e irrestrito, dedicar-se aos seus negócios privados. Ela declarou inequivocamente que estava ansiosa por desobrigar-se do seu próprio domínio político para livrar-se, desse modo, das dificuldades e dos perigos nele implicados.
E essa massa da burguesia, que já se indignara contra a simples luta parlamentar e literária em prol do domínio da sua própria classe e traíra os líderes dessa luta, ousou, então, depois do fato, acusar o proletariado de não ter se levantado para a batalha sangrenta, para a batalha de vida e morte por ela! Ela, que a todo momento sacrificara o interesse geral da sua classe, isto é, o seu interesse político, em favor do mais tacanho e imundo interesse privado e exigira que os seus representantes fossem capazes de fazer sacrifício similar, deplorou, então, que o proletariado tenha sacrificado os interesses políticos idealistas dela em favor dos seus interesses materiais. Ela adota a pose da alma boa que teria sido mal-interpretada e abandonada no momento decisivo pelo proletariado desencaminhado pelos socialistas. E encontrou eco generalizado no mundo burguês.”


“A burguesia necessariamente temerá a estupidez das massas enquanto elas permanecerem conservadoras, e o discernimento das massas assim que elas se tornarem revolucionárias.”

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A bandeira inglesa – Imre Kertész

Editora: Planeta
ISBN: 978-85-7665-375-2
Tradução: Claudia Abeling
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 248
Sinopse: Os três contos de A Bandeira Inglesa são sobre os tempos da catástrofe, passada e presente. Seja ela política, social ou humana, a catástrofe abafa o grito de esperança, mas não acaba com ele. O estilo delicado e apaixonante de Imre Kertész, prêmio Nobel de Literatura em 2002, transforma a narrativa num mergulho corajoso em direção a nós próprios, seres humanos carregados de crenças e de medos. Ao mesmo tempo em que lembra como a história pode triturar, sugere as cores fugazes da vitória... logo superada pelos tanques e pelas fronteiras, sempre fechadas. A Bandeira Inglesa é um livro obrigatório nestes tempos de barbárie.


“Esse mundo suavizado pela leitura, distanciado pela leitura, neutralizado na própria leitura, mesmo se também falseado, era para mim o único possível de ser vivido, às vezes até um mundo quase suportável. Finalmente aconteceu o momento previsto, no qual me perdi para essa redação e assim também para... a sociedade, quase teria dito, caso tivesse havido então uma sociedade, ou seja, se aquilo que havia tivesse sido uma sociedade para aquilo que se assemelhava a uma sociedade, para essa horda que às vezes gania como um cão maltratado, às vezes como uma hiena faminta, sempre ávida por algo que pudesse ser triturado; eu já estava perdido há muito para mim mesmo e quase me perdi também para a vida. Mas, mesmo nesse ponto mais baixo – naquela época, eu ainda o considerava o ponto mais baixo, antes de conhecer outros mais baixos e cada vez mais baixos, por fim a falta de chão –, mesmo nesse ponto mais baixo, mantinha-se a narratividade, em outras palavras,  o foco da câmera, por exemplo o da lente da câmera de um romance barato. Não sei de onde o tinha, de que se tratava, como se chamava. Já não leio mais romances baratos, desde que certa vez me flagrei na leitura não me interessando mais por saber quem seria o assassino, e que neste mundo – mundo assassino – não é apenas enganoso, mas, na verdade, revoltante, e além do mais desnecessário, quebrar a cabeça para saber quem é o assassino – são todos.”


“Esse romance de detetive me ensinou que, nas raras pausas de sua existência torturada, o homem precisa de prazer: eu não teria ousado dizer isso antes e, se tivesse, no mínimo como um pecado. Nessa época, perigos mortais ameaçavam-me na redação; para ser exato, perigos mortalmente tediosos, não por isso menos perigosos, a cada dia novos e, mesmo assim, a cada dia os mesmos.”


“A morte, se nos preparamos continuamente durante toda uma vida para ela, como a verdadeira tarefa, sim – na realidade –, a única, quando a ensaiamos durante toda uma vida, quando aprendemos a encará-la como – no fim das contas – solução tranquilizadora, mesmo se não tranquilizadora: é algo sério. O tijolo, porém, que cai sobre nossa cabeça, não é sério. O carrasco não é sério. Mas, veja só, apesar disso, os que não temem a morte também temem o carrasco.”


“O homem sempre encontra com exatidão e sem hesitar a mentira de que necessita, da mesma maneira que pode encontrar com exatidão e sem hesitar a verdade de que necessita, caso tenha a sensação de que precisa dela, ou seja, de renunciar à vida.”


“Do que então se nutriria nosso medo constante, se todos não nos sentíssemos um tanto partícipes do mal universal?”


“Mas sim, disse a visita, é totalmente compreensível, todos passamos pela mesma situação: por conta de tarefas secundárias vamos adiando constantemente as prioritárias, muitas vezes durante toda a vida, e depois ficamos perplexos quando nos questionamos a respeito de nossas verdadeiras realizações.”


“O que está acontecendo lá na frente? Uma mulher marcha com passos bambos pela multidão formada à sua frente; por um minuto tudo para, toda a pressa é esquecida: Será que a multidão que se abre está homenageando uma rainha? Olhares a seguem por todos os lados, salvação, alívio, pelo menos um consolo inesperado, confiando numa forma de distração ligeira na confusão arrasadora; olhares que todos querem para si e que, sem dúvida, coincidem nessa esperança compartilhada, o objeto compartilhado transformado na posse compartilhada dessa esperança compartilhada. Todos se viram em sua direção: homens, velhos, moços, maridos de braços dados com suas esposas e também as esposas; essa mulher magnética caminhava no meio do fogo cruzado de desejos, sonhos, paixões, desejos ocultos e exigências secretas, e parece que ela se sente bem no foco dos sentimentos, e, ao lado dos olhares masculinos, os olhares das mulheres lançam ao redor dela faíscas iradas de inveja, admiração ou irritada impotência. Seu passos a carregam com uma confiança ignorada, como se ela não soubesse onde está andando; o sorriso imutável que leva a frente é de todos e de ninguém, se não somente dela própria.
Ela era bonita tal como se aproximava, com a luz explosiva das chamas do sol sanguíneo refletido na fileira de cima das janelas de um edifício ao fundo, como se Babilônia ardesse.
Ela era bonita, sim, e apesar disso havia algo de podre nessa mulher. Sua expressão trazia, de algum modo, o desespero do esforço; sua segurança, algo sonâmbulo; sua beleza, algo diluído, um traço oculto tendendo quase à feiura, que ameaçava se libertar a qualquer momento para apoderar-se desse rosto com súbitas contrações.
Quem era essa mulher? Uma bruxa? Um espírito funesto? Onde ele já havia visto seu rosto? Como um close numa tela de cinema, como a imagem de uma santa ou na primeira página de revistas pornográficas? Ela era realmente corrompedora ou, ao contrário, talvez corrompida: quem poderia descobrir o segredo dessa mulher? Ela estava aqui e, mesmo assim, não estava presente; parecia se oferecer e, mesmo assim, não era acessível, assim como o doce congelado na sua mão, que se dilui em água adocicada quando uma boca vivente o toca: tudo nela era falso, e somente sua falsidade era verdadeira. Sim, era muito claro, a relação se tornou perceptível para os espectadores: eles a corrompiam para poderem chamá-la de corrompida; eles a corrompiam para que ela os corrompessem. Esses minutos, durante os quais ela atravessava a multidão aduladora, enfeitiçada por paixão flageladora, tornaram-se lenda, e esse triunfo enganador tornou-se um erro. Mitos foram fiados sobre ela e ela se tornaria vítima desses mitos; ela acreditava ser conquistadora, mas era apenas uma vítima crédula, acreditava ser destino, mas era apenas presa, ela flertava com a liberdade e deitava-se com a tirania.”


“Não havia dúvida sobre o que pensava: seu sorriso absorto era ao mesmo tempo uma resposta cúmplice ao sol, no seu rosto estampava-se a despreocupação cruel dos banhistas e o compromisso vigoroso de marés calmas – e o emissário descobriu agora, subitamente, uma amargura fugaz, como se estivesse farto do peso das dúvidas que o oprimiam. Seu olhar agradecido procurou o estranho que o tinha ajudado a ver, mas não o encontrou nem no lugar de antes nem em meio à multidão. Lá atrás da balaustrada tudo continuava a fluir, cegamente, sem parar; cada um fazia o seu e apenas o seu, sofrendo e praticando esse horror cotidiano com a indiferença do costume e do afã suicida do autoengano. Sim: seu saber era inútil; sua verdade, indivisível.”


“Nesse momento não me interessa estar pagando a mais, o que já é de lei na minha vida. Quero me dar essa viagem de presente, surpreender a mim mesmo como meu próprio amigo benfeitor e generoso. Gosto de viajar, na realidade, é a única coisa de que gosto. Também sou sempre o mais feliz ao partir e o mais infeliz ao chegar, como Bernhard diz sobre si. Gosto de estar em trânsito, quer dizer, em lugar nenhum.”


“A dúvida e a comoção me assolavam como sempre; eu me conformo com tudo, mas até hoje não consigo me entender com essa ideia de ressurreição: “Então prefiro nem morrer” – como se supõe que Marat tenha dito.”


“Então me enfio novamente no diário de Dalí. Sua ligação com Nietzsche me irrita. Algo que já me chama atenção faz tempo: a sensibilidade dos espanhóis em relação aos alemães. Ortega também foi aluno de Nietzsche e Unamuno poderia conseguir o título de “o aluno mais monótono de Nietzsche” com facilidade. “Nietzsche era um tamanho debilóide que acabou louco por causa da sua incapacidade de viver, embora só exista uma coisa neste mundo: permanecer normal.” Esta frase de Dalí me deixa profundamente indignado. Será que essa pessoa não entende que foi exatamente a loucura de Nietzsche sua ação mais honrosa e consequente? E que a diarreia de ouro nunca teria jorrado com tamanha abundância infinita em sua carteira escancarada se Nietzsche tivesse ficado da mesma maneira “normal”, isto é, sóbrio e previsível como ele, Dalí? Afinal, alguém teve de ser crucificado pela moral para que os outros pudessem então transformá-la em moedas tilintantes...”

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Teogonia: A Origem dos Deuses – Hesíodo

Editora: Iluminuras
ISBN: 85-7321-230-6
Estudo e tradução: Jaa Torrano
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 168
Sinopse: Hesíodo, junto a Homero, é o mais antigo poeta grego cujas obras chegaram a nós.
Este livro se compõe da tradução integral da Teogonia de Hesíodo, e do ensaio em que este poema é estudado como um documento do pensamento religioso grego, sob quatro aspectos interligados, a saber:
1)A noção mítica da linguagem como manifestação divina. As Deusas Musas, filhas de Zeus e de Mnemosýne (“Memória”), manifestam-se no canto e na dança e em forma de canto e de dança. Elas constituem o fundamento transcendente dos cantos e, ao mesmo tempo, a garantia divina da verdade que nesses cantos se revela.
2)A noção mítica da verdade como “revelações” (alethéa). A epifania das Musas a Hesíodo coloca em termos míticos o problema lógico e ontológico da verdade. Entre “muitas mentiras símeis aos fatos”, as Musas, quando querem, sabem dizer a verdade, ou melhor: “revelações” (alethéa). Quem poderia distinguir entre tais “mentiras” e “revelações”? – Para a piedade hesiódica, a Verdade é um dom dos Deuses, e assim depende da vontade deles se ela se apresenta ou não aos homens –, mas, apresentando-se, ela traz consigo o sinal inequívoco de sua autenticidade: o esplendor divino. Quem poderia jamais deixar de percebê-lo, se assim querem as Deusas?
3)A noção mítica do tempo como temporalidade da Presença divina. Os gregos hesiódicos vivem na proximidade dos Deuses, num tempo cujos dias não se deixam medir por quaisquer números, pois cada dia então se mostra com as características e qualidades mesmas do Deus que nesse dia se manifesta e se comemora.
4)A noção mítica do mundo como um conjunto único, uno e múltiplo de teofanias. O mundo, para os gregos hesiódicos, é um conjunto único de inesgotáveis aparições divinas (teofanias); no entanto, é um mundo lógico, em termos míticos e na lógica própria do pensamento mítico – um mundo real e perigoso, que se deixa conhecer através das genealogias divinas, das linhagens e famílias de Deuses ciosos de suas prerrogativas e vigilantes de que elas sejam observadas.
A presente tradução, em versos livres, busca reproduzir não só a riqueza poética, mas ainda as noções e o movimento próprios do pensamento grego arcaico.

 

“A força do Sábio está em saber dizer o já dito com o mesmo vigor com que foi dito pela primeira vez.” (Jaa Torrano)


“Ele reina no céu
tendo consigo o trovão e o raio flamante,
venceu no poder o pai Crono, e aos imortais
bem distribuiu e indicou cada honra.”


“Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.”


“Quem fugindo a núpcias e a obrigações com mulheres
não quer casar-se, atinge a velhice funesta
sem quem o segure: não de víveres carente
vive, mas ao morrer dividem-lhe as posses
parentes longes. A quem vem o destino de núpcias
e cabe cuidosa esposa concorde consigo,
para este desde cedo ao bem contrapesa o mal
constante. E quem acolhe uma de raça perversa
vive com uma aflição sem fim nas entranhas,
no ânimo, no coração, e incurável é o mal.”


“Não se pode furtar nem superar o espírito de Zeus
pois nem o filho de Jápeto o benéfico Prometeu
escapou-lhe à pesada cólera, mas sob coerção
apesar de multissábio a grande cadeia o retém.”


“Ávido de guerra o ânimo
ainda mais, e despertaram o triste combate
todos — Deusas e Deuses — naquele dia:
os Deuses Titãs, quantos nasceram de Crono,
os que Zeus do Érebos sob a terra lançou à luz,
terríveis, poderosos, com bem-armada violência.
Deles eram cem braços que saltavam dos ombros
de cada um, cabeças de cada um cinquenta
brotavam dos ombros sobre grossos membros.
Eles impuseram aos Titãs lúgubre batalha
agarrando íngremes pedras com os grossos braços.
Os Titãs defronte fortificavam as fileiras
com ardor. Ambos os lados mostravam obras
braçais violentas. Terrível mugia o mar infinito,
retumbava forte a terra, o vasto céu gemia
sacudido, no solo estremecia o alto Olimpo
sob golpes dos imortais, o abalo pesado atingia
o Tártaro nevoento, e o surdo estrondo de pés
de indizíveis assaltos e ataques brutais.
E uns contra outros lançavam dardos gemidosos,
vinda de ambos atinge o céu constelado
a voz exortante, e batiam-se com grande grito.

Não mais Zeus continha seu furor e deste
furor logo encheram-se suas vísceras e toda
violência ele mostrava. Do céu e do Olimpo
relampejando avançava sempre, os raios
com trovões e relâmpagos juntos voavam
do grosso braço, rodopiando a chama sagrada
densos. A terra nutriz retumbava ao redor
queimando-se, crepitou ao fogo vasta floresta,
fervia o chão todo e as correntes do Oceano
e o mar infecundo, o sopro quente atava
os Titãs terrestres, a chama atingia vasta
o ar divino, apesar de fortes cegava-os nos olhos
o brilhar fulgurante de raio e relâmpago.
O calor prodigioso traspassou o Caos. Parecia,
a ver-se com olhos e ouvir-se com ouvidos a voz,
quando Terra e o Céu amplo lá em cima
tocavam-se, tão grande clangor erguia-se
dela desabada e dele desabando-se por cima,
tal o clangor dos Deuses batendo-se na luta.
Os ventos revolviam o tremor de terra, a poeira,
o trovão, o relâmpago e o raio flamante,
dardos de Zeus grande, e levavam alarido e voz
ao meio das frentes, estrondo imenso erguia-se
da discórdia atroz. Mostrava-se o poder dos braços.
A batalha decai. Antes, uns contra outros
atacavam-se tenazes em violentas batalhas.
Na frente despertaram áspero combate
Cotos, Briareu e Giges insaciável de guerra.
Trezentas pedras dos grossos braços
lançavam seguidas e cobriram de golpes
os Titãs. E sob a terra de amplas vias
lançaram-nos e prenderam em prisões dolorosas
vencidos pelos braços apesar de soberbos,
tão longe sob a terra quanto é da terra o céu,
pois tanto o é da terra o Tártaro nevoenta.”


“Nove noites e dias uma bigorna de bronze
cai do céu e só no décimo atinge a terra
e, caindo da terra, o Tártaro nevoento.
E nove noites e dias uma bigorna de bronze
cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro.

Cerca-o um muro de bronze. A noite em torno
verte-se três vezes ao redor do gargalo. Por cima
as raízes da terra plantam-se e do mar infecundo.

Aí os Deuses Titãs sob a treva nevoenta
estão ocultos por desígnios de Zeus agrega-nuvens,
região bolorenta nos confins da terra prodigiosa.
Não têm saída. Impôs-lhes Posídon portas
de bronze e lado a lado percorre a muralha.
Aí Giges, Cotos e Briareu magnânimo
habitam, guardas fiéis de Zeus porta-égide.

Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento
e do mar infecundo e do Céu constelado,
de todos, estão contíguos as fontes e confins,
torturantes e bolorentos, odeiam-nos os Deuses.
Vasto abismo, nem ao termo de um ano
atingiria o solo quem por suas portas entrasse
mas de cá para lá o levaria tufão após tufão
torturante, terrível até para os Deuses imortais
este prodígio. A casa terrível da Noite trevosa
eleva-se aí oculta por escuras nuvens.

Defronte, o filho de Jápeto sustem o Céu amplo
de pé, com a cabeça e infatigáveis braços
inabalável, onde Noite e Dia se aproximam
e saúdam-se cruzando o grande umbral
de bronze. Um desce dentro, outro vai
fora, nunca o palácio fecha a ambos,
mas sempre um deles está fora do palácio
e percorre a terra, o outro está dentro
e espera vir a sua hora de caminhar,
ele tem aos sobreterrâneos a luz multividente,
ela nos braços o Sono, irmão da Morte,
a Noite funesta oculta por nuvens cor de névoa.

Aí os filhos da Noite sombria têm morada,
Sono e Morte, terríveis Deuses, nunca
o Sol fulgente olha-os com seus raios
ao subir ao céu nem ao descer o céu.
Um deles, tranquilo e doce aos homens,
percorre a terra e o largo dorso do mar,
o outro, de coração de ferro e alma de bronze
não piedoso no peito, retém quem dos homens
agarra, odioso até aos Deuses imortais.
Defronte, o palácio ecoante do Deus subterrâneo
o forte Hades e da temível Perséfone
eleva-se. Terrível cão guarda-lhe a frente
não piedoso, tem maligna arte: aos que entram
faz festas com o rabo e ambas as orelhas,
sair de novo não deixa: à espreita
devora quem surpreende a sair das portas.”