sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Era das Revoluções (1789-1848) (Parte I), de Eric J. Hobsbawm

Editora: Paz e Terra

ISBN: 978-85-7753-099-1

Tradução: Marcos Penchel e Maria L. Teixeira

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 534

Sinopse: Nesta obra, Eric Hobsbawm discorre acerca de duas revoluções: a Francesa e a Industrial (inglesa). Contemporâneas, causaram importantes modificações na sociedade europeia do fim do século 18 a meados do 19. Aborda também as transformações ocorridas em grande parte do mundo a partir de uma “base europeia” ou “franco-britânica”.

Dividida em duas partes, sua narrativa é instigante. Na primeira, trata dos principais desenvolvimentos históricos do período em questão. Na segunda, esboça o tipo de sociedade produzida pelas “revoluções”. O livro fala sobre o surgimento de termos utilizados até hoje como industrial, classe média, nacionalismo, cientista, utilitário.

As ilustrações mostram como era a cultura cotidiana do período: transporte, vestimenta, armas, alimentação, trabalho, arquitetura, personagens famosos da época etc.


 

“Economicamente, entretanto, a sociedade rural ocidental era muito diferente. O camponês típico tinha perdido muito da sua condição de servo no final da Idade Média, embora ainda frequentemente guardasse muitas marcas amargas da dependência legal. A propriedade típica já de há muito deixara de ser uma unidade de iniciativa econômica e tinha-se tornado um sistema de cobrança de aluguéis e de outros rendimentos monetários. O camponês mais ou menos livre, grande, médio ou pequeno, era o lavrador típico. Se de alguma forma arrendatário, pagava aluguel ao senhor das terras (ou, em algumas áreas, uma quota da safra). Caso fosse tecnicamente um livre proprietário, provavelmente ainda devia ao senhor local uma série de obrigações que podiam ou não ser convertidas em dinheiro (como por exemplo, a obrigação de enviar seu trigo para o moinho do senhor), assim como devia impostos ao príncipe, dízimos à Igreja, e algumas obrigações de trabalho forçado, todas elas em contraste com a isenção relativa das camadas sociais mais altas. Mas se estes vínculos políticos fossem retirados, uma enorme parte da Europa surgiria como uma área de agricultura camponesa; uma área na qual, geralmente, uma minoria de camponeses abastados tendesse a se tornar de fazendeiros comerciais, vendendo ao mercado urbano um excedente permanente da safra, e uma maioria de pequenos e médios camponeses vivesse de suas propriedades mais ou menos de forma autossuficiente, a menos que elas fossem tão pequenas que os obrigassem a trabalhar parte do tempo na agricultura ou na manufatura, em troca de salários.”

 

 

“A alimentação da Europa era essencialmente regional. Os produtos de outros climas eram ainda raridades próximas do luxo, exceto talvez o açúcar, o mais importante alimento importado dos trópicos e cuja doçura provocou mais amargura humana do que qualquer outro.”

 

 

“Pois, de fato, o “iluminismo”, a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza – de que estava profundamente imbuído o século XVIII – derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos. E seus maiores campeões eram as classes economicamente mais progressistas, as que mais diretamente se envolviam nos avanços tangíveis da época: os círculos mercantis e os financistas e proprietários economicamente iluminados, os administradores sociais e econômicos de espírito científico, a classe média instruída, os fabricantes e os empresários. (...)

Estes homens se organizavam por toda parte em lojas de franco-maçonaria, onde as distinções de classe não importavam e a ideologia do iluminismo era propagada com um desinteressado denodo.

É significativo que os dois principais centros dessa ideologia fossem também os da dupla revolução, a França e a Inglaterra; embora de fato as ideias iluministas ganhassem uma voz corrente internacional mais ampla em suas formulações francesas (até mesmo quando fossem simplesmente versões galicistas de formulações britânicas). Um individualismo secular, racionalista e progressista dominava o pensamento “esclarecido”. Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o seu principal objetivo: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo, da superstição das igrejas (distintas da religião “racional” ou “natural”), da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida, a fraternidade de todos os homens eram seus slogans. No devido tempo se tornaram os slogans da Revolução Francesa.

O reinado da liberdade individual não poderia deixar de ter as consequências mais benéficas. Os mais extraordinários resultados podiam ser esperados – podiam de fato já ser observados como provenientes – de um exercício irrestrito do talento individual num mundo de razão. A apaixonada crença no progresso que professava o típico pensador do iluminismo refletia os aumentos visíveis no conhecimento e na técnica, na riqueza, no bem-estar e na civilização que podia ver em toda a sua volta e que, com certa justiça, atribuía ao avanço crescente de suas ideias. No começo do século XVIII, as bruxas ainda eram queimadas; no final, os governos do iluminismo, como o austríaco, já tinham abolido não só a tortura judicial mas também a escravidão. O que não se poderia esperar se os remanescentes obstáculos ao progresso, tais como os interesses estabelecidos do feudalismo e da Igreja, fossem eliminados?

Não é propriamente correto chamarmos o “iluminismo” de uma ideologia da classe média, embora houvesse muitos iluministas – e foram eles os politicamente decisivos – que assumiram como verdadeira a proposição de que a sociedade livre seria uma sociedade capitalista. Em teoria seu objetivo era libertar todos os seres humanos. Todas as ideologias humanistas, racionalistas e progressistas estão implícitas nele, e de fato surgiram dele. Embora na prática os líderes da emancipação exigida pelo iluminismo fossem provavelmente membros dos escalões médios da sociedade, embora os novos homens racionais o fossem por habilidade e mérito e não por nascimento, e embora a ordem social que surgiria de suas atividades tenha sido uma ordem capitalista e “burguesa”.

É mais correto chamarmos o “iluminismo” de ideologia revolucionária, apesar da cautela e moderação política de muitos de seus expoentes continentais, a maioria dos quais – até a década de 1780 – depositava sua fé no despotismo esclarecido. Pois o iluminismo implicava a abolição da ordem política e social vigente na maior parte da Europa. Era demais esperar que os anciensrégimes se abolissem voluntariamente. Ao contrário, como vimos, em alguns aspectos eles estavam se fortalecendo contra o avanço das novas forças econômicas e sociais. E suas fortalezas (fora da Grã-Bretanha, as Províncias Unidas e alguns outros lugares onde já tinham sido derrotados) eram as próprias monarquias em que os iluministas moderados depositavam sua fé.”

 

 

“O que significa a frase “a revolução industrial explodiu”? Significa que a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços.”

 

 

“Sob qualquer aspecto, a revolução industrial foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades.”

 

 

“A perspectiva tradicional que viu a história da revolução industrial britânica primordialmente em termos de algodão é correta. A primeira indústria a se revolucionar foi a do algodão, e é difícil perceber que outra indústria poderia ter empurrado um grande número de empresários particulares rumo à revolução. Até a década de 1830, o algodão era a única indústria britânica em que predominava a fábrica ou o “engenho” (o nome derivou-se do mais difundido estabelecimento pré-industrial a empregar pesada maquinaria a motor); a princípio (1780-1815), principalmente na fiação, na cardação e em algumas operações auxiliares, depois (de 1815) também cada vez mais na tecelagem. As “fábricas” de que tratavam os novos Decretos Fabris eram, até a década de 1860, entendidas exclusivamente em termos de fábricas têxteis e predominantemente em termos de engenhos algodoeiros. A produção fabril em outros ramos têxteis teve desenvolvimento lento antes da década de 1840, e em outras manufaturas seu desenvolvimento foi desprezível. Nem mesmo a máquina a vapor, embora aplicada a numerosas outras indústrias por volta de 1815, era usada fora da mineração, que a tinha empregado pioneiramente. Em 1830, a “indústria” e a “fábrica” no sentido moderno ainda significavam quase que exclusivamente as áreas algodoeiras do Reino Unido.

Com isto não se pretende subestimar as forças que introduziram a inovação industrial em outras mercadorias de consumo, notadamente outros produtos têxteis, alimentos e bebidas, cerâmica e outros produtos de uso doméstico, grandemente estimuladas pelo rápido crescimento das cidades. Mas, para começar, estas indústrias empregavam muito menos pessoal: nenhuma se aproximava sequer remotamente do milhão e meio de pessoas empregadas diretamente na indústria algodoeira ou dela dependentes em 1833. Em segundo lugar, seu poder de transformação era muito menor: a cervejaria, que era em muitos aspectos um negócio técnica e cientificamente muito mais avançado e mecanizado, e que se revolucionou muito antes da indústria algodoeira, pouco afetou a economia à sua volta, como pode ser provado pela grande cervejaria Guinness em Dublin, que deixou o resto de Dublin e da economia irlandesa (embora não o paladar local) idênticos ao que eram antes de sua construção. As exigências que se derivaram do algodão – mais construções e todas as atividades nas novas áreas industriais, máquinas, inovações químicas, eletrificação industrial, uma frota mercante e uma série de outras atividades – foram bastantes para que se credite a elas uma grande proporção do crescimento econômico da Grã-Bretanha até a década de 1830. Em terceiro lugar, a expansão da indústria algodoeira foi tão vasta e seu peso no comércio exterior da Grã-Bretanha tão grande que dominou os movimentos de toda a economia. A quantidade de algodão em bruto importada pela Grã-Bretanha subiu de 11 milhões de libras-peso em 1785 para 588 milhões em 1850; a produção de tecidos, de 40 milhões para 2,025 bilhões de jardas.

Os produtos de algodão constituíam entre 40 e 50% do valor anual declarado de todas as exportações britânicas entre 1816 e 1848. Se o algodão florescia, a economia florescia, se ele caía, também caía a economia. Suas oscilações de preço determinavam a balança do comércio nacional. Só a agricultura tinha um poder comparável, e, no entanto, estava em visível declínio.”

 

 

“Brevemente as nações esclarecidas colocarão em julgamento aqueles que têm até aqui governado os seus destinos. Os reis fugirão para os desertos, para a companhia dos animais selvagens que a eles se assemelham; e a Natureza recuperará os seus direitos.”
(Saint-Just; Sur La Constitution de Ia France, Discours prononcé à Ia Convention, 24 de abril de 1793.)

 

 

“O exército era uma carreira como qualquer outra das muitas abertas ao talento pela revolução burguesa, e os que nele obtiveram sucesso tinham um interesse investido na estabilidade interna como qualquer outro burguês. Foi isto que fez do exército, a despeito de seu jacobinismo embutido, um pilar do governo pós-termidoriano, e de seu líder Bonaparte uma pessoa adequada para concluir a revolução burguesa e começar o regime burguês. O próprio Napoleão Bonaparte, embora cavalheiro de nascimento pelos padrões de sua bárbara ilha natal da Córsega, era um carreirista típico daquela espécie. Nascido em 1769, ambicioso, descontente e revolucionário, subiu vagarosamente na artilharia, um dos poucos ramos do exército real em que a competência técnica era indispensável. Durante a Revolução, e especialmente sob a ditadura jacobina que ele apoiou firmemente, foi reconhecido por um comissário local em um fronte de suma importância – por casualidade, um patrício da Córsega, fato que dificilmente pode ter abalado suas intenções – como um soldado de dons esplêndidos e muito promissor. O Ano II fez dele um general. Sobreviveu à queda de Robespierre, e um dom para o cultivo de ligações úteis em Paris ajudou-o em sua escalada após este momento difícil. Agarrou a sua chance na campanha italiana de 1796, que fez dele o inquestionado primeiro soldado da República, que agia virtualmente independente das autoridades civis. O poder foi meio atirado sobre seus ombros e meio agarrado por ele quando as invasões estrangeiras de 1799 revelaram a fraqueza do Diretório e a sua própria indispensabilidade. Tornou-se primeiro cônsul, depois cônsul vitalício e Imperador. E com sua chegada, como que por milagre, os insolúveis problemas do Diretório se tornaram solúveis. Em poucos anos a França tinha um Código Civil, uma concordata com a Igreja e até mesmo o mais significativo símbolo da estabilidade burguesa – um Banco Nacional. E o mundo tinha o seu primeiro mito secular.

Os leitores mais velhos ou os de países antiquados conhecem o mito napoleônico tal como ele existiu durante o século em que nenhuma sala da classe média estava completa sem o seu busto, e talentos panfletários podiam afirmar, mesmo como piada, que ele não era um homem mas um deus-sol. O extraordinário poder deste mito não pode ser adequadamente explicado nem pelas vitórias napoleônicas nem pela propaganda napoleônica, ou tampouco pelo próprio gênio indubitável de Napoleão. Como homem ele era inquestionavelmente muito brilhante, versátil, inteligente e imaginativo, embora o poder o tivesse tornado sórdido. Como general, não teve igual; como governante, foi um planejador, chefe e executivo soberbamente eficiente e um intelectual suficientemente completo para entender e supervisionar o que seus subordinados faziam. Como indivíduo parece ter irradiado um senso de grandeza, mas a maioria dos que deram esse testemunho, por exemplo, Goethe, viram-no no auge de sua fama, quando o mito já o tinha envolvido. Foi, sem sombra de dúvidas, um grande homem e – talvez com a exceção de Lênin – seu retrato é o que a maioria das pessoas razoavelmente instruídas, mesmo hoje, reconheceriam mais prontamente numa galeria de personagens da história, ainda que somente pela tripla marca registrada do tamanho pequeno, do cabelo escovado para a frente sobre a testa e da mão enfiada no colete entreaberto. Talvez não tenha sentido fazer uma comparação dele, em termos de grandeza, com candidatos a esse título no século XX.
      Pois o mito napoleônico baseia-se menos nos méritos de Napoleão do que nos fatos, então sem paralelo, de sua carreira. Os homens que se tornaram conhecidos por terem abalado o mundo de forma decisiva no passado tinham começado como reis, como Alexandre, ou patrícios, como Júlio César, mas Napoleão foi o “pequeno cabo” que galgou o comando de um continente pelo seu puro talento pessoal. (Isto não foi estritamente verdadeiro, mas sua ascensão foi suficientemente meteórica e alta para tornar razoável a descrição.) Todo jovem intelectual que devorasse livros, como o jovem Bonaparte o fizera, escrevesse maus poemas e romances e adorasse Rousseau poderia, a partir daí, ver o céu como o limite e seu monograma enfaixado em lauréis. Todo homem de negócios daí em diante tinha um nome para sua ambição: ser – os próprios clichês o denunciam – um “Napoleão das finanças” ou da indústria. Todos os homens comuns ficavam excitados pela visão, então sem paralelo, de um homem comum que se tornou maior do que aqueles que tinham nascido para usar coroas. Napoleão deu à ambição um nome pessoal no momento em que a dupla revolução (industrial e francesa) tinha aberto o mundo aos homens de vontade. E ele foi mais ainda. Foi um homem civilizado do século XVIII, racionalista, curioso, iluminado, mas também discípulo de Rousseau o suficiente para ser ainda o homem romântico do século XIX. Foi o homem da Revolução, e o homem que trouxe estabilidade. Em síntese, foi a figura com que todo homem que partisse os laços com a tradição podia-se identificar em seus sonhos.

Para os franceses ele foi também algo bem mais simples: o mais bem-sucedido governante de sua longa história. Triunfou gloriosamente no exterior, mas, em termos nacionais, também estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das instituições francesas como existem até hoje. Reconhecidamente, a maioria de suas ideias – talvez todas – foram previstas pela Revolução e o Diretório; sua contribuição pessoal foi fazê-las um pouco mais conservadoras, hierárquicas e autoritárias. Mas seus predecessores apenas previram; ele realizou. Os grandes monumentos de lucidez do direito francês, os Códigos que se tornaram modelos para todo o mundo burguês, exceto o anglo-saxão, foram napoleônicos. A hierarquia dos funcionários – a partir dos prefeitos, para baixo –, das cortes, das universidades e escolas foi obra sua. As grandes “carreiras” da vida pública francesa, o exército, o funcionalismo público, a educação e o direito ainda têm formas napoleônicas. Ele trouxe estabilidade e prosperidade para todos, exceto para os 250 mil franceses que não retornaram de suas guerras, embora mesmo para os parentes deles tivesse trazido a glória. Sem dúvida, os britânicos se viam como lutadores pela causa da liberdade contra a tirania; mas em 1815 a maioria dos ingleses era mais pobre do que o fora em 1800, enquanto que a maioria dos franceses era quase que certamente mais rica, e ninguém, exceto os trabalhadores assalariados cujo número era insignificante, tinha perdido os substanciais benefícios econômicos da Revolução. Há pouco mistério quanto à persistência do bonapartismo como uma ideologia de franceses apolíticos, especialmente dos camponeses mais ricos, depois da queda do ditador. Foi necessário um segundo Napoleão menor, entre 1851 e 1870, para dissipá-la.

Ele destruíra apenas uma coisa: a Revolução Jacobina, o sonho de igualdade, liberdade e fraternidade, do povo se erguendo na sua grandiosidade para derrubar a opressão. Este foi um mito mais poderoso do que o dele, pois, após a sua queda, foi isto e não a sua memória que inspirou as revoluções do século XIX, inclusive em seu próprio país.”

 

 

“Não é verdade que a guerra seja determinada por princípio divino; não é verdade que a terra tenha sede de sangue. O próprio Deus amaldiçoa a guerra, como o fazem também os homens que a empreendem e que a suportam em secreto horror.”

(Alfred de Vigny, Servitude et grandeur militaires)

 

 

“A estratégia e a tática militares dos Estados ortodoxos do século XVIII não esperavam nem desejavam a participação civil nas guerras: Frederico, o Grande, disse com firmeza a seus leais berlinenses, que se ofereceram para lutar contra os russos, para deixar a guerra aos profissionais a quem ela pertencia. Mas isto transformou a ação bélica dos franceses de Napoleão e os fez incomensuravelmente superiores aos exércitos do velho regime. Tecnicamente os velhos exércitos eram mais bem treinados e disciplinados, e onde estas qualidades eram decisivas, como na guerra naval, os franceses foram sensivelmente inferiores. Eles eram bons corsários e rápidos incursores, mas não podiam compensar a falta de um número suficiente de marujos treinados e, sobretudo, de oficiais navais competentes, classe que havia sido dizimada pela Revolução, pois constituía-se amplamente de elementos provenientes da pequena nobreza normanda e bretã, e que não podia ser rapidamente improvisada. Em seis grandes e oito pequenas batalhas navais entre os britânicos e os franceses, as baixas francesas foram cerca de dez vezes maiores que as dos ingleses.

Mas no que tange à organização improvisada, mobilidade, flexibilidade e acima de tudo, pura coragem ofensiva e moral de luta, os franceses não tinham rivais. Estas vantagens não dependiam do gênio militar de ninguém, pois o saldo militar dos franceses antes que Napoleão tomasse o poder era bastante impressionante, e a qualidade média do generalato francês não era excepcional. Mas isto deve ter em parte dependido do rejuvenescimento dos quadros militares franceses dentro e fora do país, o que é uma das principais consequências de qualquer revolução. Em 1806, de 142 generais do poderoso exército prussiano, 79 tinham mais de 60 anos de idade, bem como um-quarto de todos os comandantes de regimentos. Mas em 1806 Napoleão, que chegou a general aos 24 anos, Murat, que comandou uma brigada aos 26, Ney, que o fez aos 27, e Davout estavam todos entre 26 e 37 anos de idade. (...)

No mar, entretanto, os franceses estavam por esta época completamente derrotados. Após a batalha de Trafalgar (1805), qualquer chance não apenas de invadir a Grã-Bretanha pelo Canal da Mancha, como também de manter contatos ultramarinos, desapareceu. O único modo que parecia haver para derrotar a Grã-Bretanha era a pressão econômica, e isto Napoleão tentou exercer eficazmente através do Sistema Continental (1806). As dificuldades de impor este bloqueio de maneira eficiente minaram a estabilidade do Tratado de Tilsit e levaram ao rompimento com a Rússia, que foi o ponto decisivo da sorte de Napoleão. A Rússia foi invadida e Moscou ocupada. Se o czar tivesse feito a paz como a maioria dos inimigos de Napoleão tinham feito sob circunstâncias semelhantes, o jogo teria terminado. Mas o czar não estabeleceu a paz, e Napoleão se viu diante da opção entre uma guerra interminável, sem perspectiva clara de vitória, ou a retirada. Ambas eram igualmente desastrosas.

Os métodos do exército francês, como vimos, implicavam rápidas campanhas em áreas suficientemente ricas e densamente povoadas para que ele pudesse retirar sua manutenção da terra. Mas o que funcionou na Lombardia e na Renânia, onde estes processos tinham sido desenvolvidos pela primeira vez, e ainda era viável na Europa Central, fracassou totalmente nos amplos, pobres e vazios espaços da Polônia e da Rússia. Napoleão foi derrotado não tanto pelo inverno russo quanto por seu fracasso em manter o Grande Exército com um suprimento adequado. A retirada de Moscou destruiu o Exército. De 610 mil homens que tinham, num ou noutro momento, atravessado a fronteira russa, 100 mil retornaram aproximadamente.

Nessas circunstâncias, a coalizão final contra os franceses foi formada não só por seus velhos inimigos e vítimas mas também por todos os que se sentiam ansiosos por estar do lado que a esta altura aparecia claramente como o vencedor; só o rei da Saxônia abandonou sua adesão à França tarde demais. Um novo exército francês, largamente imaturo, foi derrotado em Leipzig (1813), e os aliados avançaram inexoravelmente sobre a França, a despeito das brilhantes manobras de Napoleão, enquanto os britânicos avançavam sobre ela a partir da Península. Paris foi ocupada e o Imperador renunciou a 6 de abril de 1814. Ele tentou restaurar seu poder em 1815, mas a batalha de Waterloo (junho de 1815) o liquidou.”

 

 

“O longo período de melhoria econômica que antecedeu a 1789 fez com que a fome e suas companheiras, a peste e a praga, não acrescentassem muito às devastações das batalhas e dos saques, pelo menos até depois de 1811. (O principal período de fome ocorreu depois das guerras, em 1816-17.) As campanhas militares tendiam a ser curtas e impetuosas, e os armamentos usados – de artilharia relativamente leve e móvel – não eram muito destrutivos segundo os padrões modernos. Os cercos não eram comuns. Os incêndios eram provavelmente os maiores perigos para as habitações e os meios de produção, e as pequenas casas ou fazendas eram facilmente reconstruídas. A única destruição material realmente difícil de reparar rapidamente em uma economia pré-industrial é a das florestas ou plantações de azeitonas e frutas, que levam muitos anos para crescer, e não parece ter havido muita destruição desse tipo na época.

Consequentemente, as perdas puramente humanas devidas a estas duas décadas de guerra não parecem ter sido, pelos padrões modernos, assustadoramente altas, embora, na verdade, nenhum governo tenha tentado avaliá-las e todas as modernas estimativas sejam vagas e não passem de puras conjecturas, exceto as que se referem às baixas francesas e a alguns casos especiais. Um milhão de mortos nas guerras de todo o período seria um índice favorável se comparado às perdas isoladas de qualquer um dos principais países beligerantes nos quatro anos e meio da Primeira Guerra Mundial ou mesmo aos aproximadamente 600 mil mortos da Guerra Civil Americana de 1861-5. Até mesmo dois milhões, para mais de duas décadas de guerra generalizada, não pareceria um índice particularmente assassino, quando nos lembramos da extraordinária capacidade mortífera da fome e da epidemia naqueles tempos: ainda em 1865, na Espanha, uma epidemia de cólera, segundo estimativas, fez 236.744 vítimas.

De fato, nenhum país indica uma desaceleração acentuada do crescimento populacional durante este período, com exceção talvez da França. Para a maioria dos habitantes da Europa, exceto os combatentes, a guerra provavelmente não significou mais do que uma interrupção direta ocasional do cotidiano, se é que chegou a significar isto. As famílias do interior nos romances de Jane Austen seguiam seus afazeres como se a guerra não existisse. Os Mecklenburgers, de Fritz Reuter, recordam-se da ocupação estrangeira como anedota e não como um drama; o velho Herr Kuegelgen, lembrando-se de sua infância na Saxônia (uma das “rinhas da Europa”, cuja situação política e geográfica atraía exércitos e batalhas como igualmente apenas a Bélgica e a Lombardia o faziam), só relembrou das poucas semanas em que os exércitos marcharam sobre Dresden ou ali se aquartelaram. Reconhecidamente, o número de homens armados envolvidos era muito maior do que tinha sido comum em guerras anteriores, embora não fosse extraordinário pelos padrões modernos. Até mesmo o recrutamento não implicava a convocação de mais que uma parte dos homens capacitados: o departamento francês da Costa do Ouro, durante o reinado de Napoleão, forneceu somente 11 mil homens de seus 350 mil habitantes, ou seja, 3,15%, e entre 1800 e 1815 não mais que 7% da população da França foi recrutada, contra os 21% durante o período bem mais curto da Primeira Guerra Mundial. Ainda assim, em números absolutos, a quantidade era muito grande. O levée en masse de 1793-4 colocou talvez 630 mil homens em armas (de um recrutamento teórico de 770 mil); a força militar de Napoleão durante o período de paz de 1805 era de mais ou menos 400 mil homens, e, no início da campanha contra a Rússia, em 1812, o Grande Exército se constituía de 700 mil homens (300 mil dos quais não eram franceses), sem contar as tropas francesas no resto do continente, principalmente na Espanha. As mobilizações permanentes dos adversários da França eram muito menores, ainda que somente devido ao fato de que eles estivessem muito menos continuamente no campo de batalha (com a exceção da Grã-Bretanha) ou porque os problemas financeiros e de organização tornavam muitas vezes difícil a mobilização total (por exemplo, para os austríacos, que em 1813 foram autorizados, pelo tratado de paz de 1809, a manter um exército de 150 mil homens, mas que mantinham apenas 60 mil realmente preparados para uma campanha). Os britânicos, por outro lado, mantinham um número surpreendentemente alto de homens mobilizados. No seu auge (1813-14), com bastante dinheiro empenhado num exército regular de 300 mil homens e mais 140 mil marinheiros e fuzileiros navais, devem ter tido uma carga proporcionalmente mais pesada com suas forças militares do que os franceses.

As perdas eram pesadas, embora não excessivamente, novamente segundo os aniquiladores padrões do nosso século; mas curiosamente poucas dessas perdas deveram-se realmente ao inimigo. Somente 6 ou 7% por cento dos marinheiros britânicos que morreram entre 1793 e 1815 sucumbiram diante dos franceses; 80% morreram devido a doenças e acidentes. A morte no campo de batalha era um risco pequeno; somente 2% das baixas em Austerlitz e talvez 8 ou 9% das de Waterloo corresponderam de fato às mortes em combate. Os riscos realmente aterradores da guerra eram a negligência, a sujeira, a má organização, os serviços médicos deficientes e a ignorância em termos higiênicos, que massacravam os feridos, os prisioneiros e, em propícias condições climáticas, como nos trópicos, praticamente todos. As operações militares propriamente ditas matavam pessoas, direta ou indiretamente, e destruíam equipamento produtivo, mas como vimos, nada faziam à ponto de interferir seriamente no curso normal da vida e do desenvolvimento de um país. As exigências econômicas da guerra e a guerra econômica tinham consequências muito maiores. Pelos padrões do século XVIII, as guerras revolucionárias e napoleônicas eram excessivamente caras, e de fato seus custos chegavam a impressionar os contemporâneos, talvez mais do que as perdas humanas que provocavam. Certamente a queda no ônus financeiro da guerra na geração pós-Waterloo foi muito mais notável do que a queda nas perdas de vidas humanas: estima-se que enquanto as guerras entre 1821 e 1850 custaram uma média de menos de 10% por ano do valor equivalente em 1790-1820, a média anual de mortes causadas pela guerra permaneceu a um nível um pouco menor que 25% do período anterior.”

 

 

“Fora da Europa, é difícil falar de nacionalismo. As muitas repúblicas latino-americanas que substituíram os velhos impérios espanhol e português (para sermos exatos, o Brasil se tornou uma monarquia independente e assim permaneceu de 1816 a 1889), com suas fronteiras frequentemente refletindo pouco mais do que a distribuição das propriedades dos nobres que tinham apoiado essa ou aquela rebelião local, começaram a adquirir interesses políticos estáveis e aspirações territoriais. O ideal pan-americano original de Simon Bolívar (1783- 1830) na Venezuela e San Martin (1778-1850) na Argentina foi impossível de realizar, embora persistisse como uma poderosa corrente revolucionária em todas as regiões unidas pela língua espanhola, exatamente como o pan-balcanismo, o herdeiro da unidade ortodoxa contra a islâmica, persistiu e pode ainda persistir hoje em dia. A grande extensão e variedade do continente, a existência de focos de rebelião independentes no México (que deram origem à América Central), na Venezuela e em Buenos Aires, e o especial problema do centro do colonialismo espanhol no Peru, que foi libertado a partir de fora, impunham uma fragmentação automática. Mas as revoluções latino-americanas foram obra de pequenos grupos de aristocratas, soldados e elites afrancesadas “evoluídas”, deixando a massa da passiva população branca, católica e pobre, e dos índios, indiferente ou hostil. Só no México a independência foi conquistada pela iniciativa de um movimento de massa agrário, isto é, indígena, que marchou sob a bandeira da Virgem de Guadalupe; e por isso o México trilhou desde então um caminho diferente e politicamente mais avançado que o resto da América Latina continental. Entretanto, mesmo entre a minúscula camada dos latino-americanos politicamente decisivos, seria anacrônico falarmos nesse período de algo mais que o embrião da “consciência nacional” colombiana, venezuelana, equatoriana etc.”

 

 

“Na Índia a terra pertencia – de jure ou de facto – a coletividades autogovernadas (tribos, clãs, comunas de aldeias, irmandades, etc.), e o governo recebia uma percentagem de sua produção. Embora algumas terras fossem de certa forma alienáveis, e algumas relações agrárias pudessem ser interpretadas como arrendamentos e alguns pagamentos rurais como renda, não havia de fato nem senhores feudais, nem arrendatários, nem propriedade individual da terra ou arrendamento no sentido inglês. Era uma situação totalmente desagradável e incompreensível para os governantes e administradores britânicos, que então trataram de inventar a organização rural com que estavam familiarizados.”

 

 

“As massas de novos proletários tinham que se adaptar ao ritmo industrial de trabalho por meio da mais cruel disciplina ou então eram largadas para apodrecerem caso não a aceitassem. E ainda assim, até hoje, o coração se contrai ante a visão do panorama construído por aquela geração: Esta sombria devoção ao utilitarismo burguês, que os evangelistas e puritanos partilhavam com os agnósticos “filósofos radicais” do século XVIII, que a verbalizaram em termos lógicos para eles, produziu sua própria beleza funcional nas estradas de ferro-pontes e armazéns, e seu horror romântico nas infindáveis fileiras de casinhas cinzentas ou avermelhadas envoltas em fumaça e dominadas pelas fortalezas das fábricas.

A nova burguesia vivia fora dessa paisagem (se tivesse acumulado dinheiro suficiente para se mudar), ministrando autoridade, educação moral e assistência ao esforço missionário entre os pagãos negros no exterior. Seus homens personificavam o dinheiro, que provava seu direito de dominar o mundo; suas mulheres, que o dinheiro dos maridos privava até da satisfação de realmente executar o trabalho doméstico, personificavam a virtude da classe: ignorantes (“seja boa, doce donzela, e deixe quem quiser ser inteligente”), sem instrução, pouco práticas, teoricamente assexuadas, sem patrimônio e protegidas, elas foram o único luxo a que se permitiu a era da frugalidade e do cada um por si.”

Um comentário:

Sugestão de Livros disse...

Livro bastante interessante.

Vejam só a falta que a globalização fazia :D " “A alimentação da Europa era essencialmente regional. Os produtos de outros climas eram ainda raridades próximas do luxo, exceto talvez o açúcar, o mais importante alimento importado dos trópicos e cuja doçura provocou mais amargura humana do que qualquer outro.”

Discurso sustentável :D "Os reis fugirão para os desertos, para a companhia dos animais selvagens que a eles se assemelham; e a Natureza recuperará os seus direitos.”

Interessante: "Napoleão deu à ambição um nome pessoal no momento em que a dupla revolução (industrial e francesa) tinha aberto o mundo aos homens de vontade."

Impressionante: “É no próprio interesse do trabalhador”, disseram os empregadores a Viller-mé no final da década de 1830, “que ele deve estar sempre fustigado pela necessidade, pois assim ele não dará a seus filhos um mau exemplo, e sua pobreza será uma garantia de sua boa conduta”.

Verdade: "Dificilmente poderia deixar de advertir que a distribuição crescentemente desigual das rendas nacionais neste período (“os ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres”) não era um acidente, mas o produto das operações do sistema."

Muito legal: "O socialismo era o filho do capitalismo."