domingo, 27 de julho de 2014

A Torre Negra: Canção de Susannah, de Stephen King

Editora: Suma de Letras

ISBN: 978-85-81050-26-3

Tradução: Mário Molina

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 408

Sinopse: Penúltimo livro de uma saga de sete volumes, Canção de Susannah é um livro chave para os leitores que acompanham a série, revelando e desenvolvendo alguns dos mistérios que povoam A Torre Negra.

Mia roubou o corpo de Susannah Dean, usando o poder do Treze Preto para transportá-la para a Nova York de 1999, onde pretende dar à luz em segurança ao seu “xapinha”. Mas quem é o pai da criança? E que papel desempenha o Rei Rubro nessa história? Para salvar a Torre Negra, é preciso não apenas resgatar Susannah, mas também manter em segurança o terreno baldio de Calvin Tower, antes que ele perca o local para a Corporação Sombra. Para isso, o restante do katet se une aos Mannis, tentando abrir um portal na Gruta do Vão da Porta. Enquanto Eddie e Rolland aterrissam no Maine dos anos 1970 e Jake, Oi e Callahan perseguem Susanna por Nova York, a trama se arma para um final duplamente explosivo que deixará o leitor ansioso pelo próximo livro.



“Estava olhando para Eddie com um ar de quem pede desculpas e com algum medo. O rapaz estava em terrível aflição, isso era claro. E era um pistoleiro. Um pistoleiro podia se descontrolar e, quando isso acontecia, o golpe nunca era sem alvo.”

 

 

“A coisa está nas mãos do ka (destino) e na minha terra havia um ditado que dizia o seguinte: “O ka não tem coração nem mente”.”

 

 

“– A raiva é a mais inútil das emoções – Henchick entoou –, destrutiva para a mente e prejudicial ao coração.”

 

 

“Como diamantes, a morte é para sempre.”

 

 

“Susannah olhou em volta. Quando seu rosto ficou de frente para o centro do castelo – para o que Susannah achou que era o pátio interno – ela captou um cheiro antigo de podridão. Mia viu-a torcer o nariz e sorriu. – Ié, eles já se foram há muito tempo e as máquinas que os últimos deixaram para trás estão quase todas paradas, mas o cheiro de sua morte permanece, não é? O cheiro da morte sempre se conserva.”

 

 

“Embora a verdade às vezes doa, as mentiras costumam voltar para nos morder, não é?”

 

 

“Ele disse que escrever sobre os aparecidos no oeste do Maine ensinou-lhe algo que jamais esperara aprender numa idade tão avançada: que há coisas em que as pessoas simplesmente não acreditam, mesmo quando você consegue provar que existem. Donnie costumava citar o verso de um poeta grego. “A coluna da verdade tem um buraco no meio”. (...)

Eddie se perguntava se alguém conhecia a profundidade desse buraco.”

 

 

“Na Terra da Memória, o tempo é sempre Agora. No Reino do Passado, o relógio faz tiquetaque... mas seus ponteiros nunca se mexem. Há uma Porta Não-Encontrada (Ah, perdida) e a memória é a chave que a abre.”

sábado, 19 de julho de 2014

Aristóteles: obras completas (introdução geral) – António Pedro Mesquita

Editora: Biblioteca de Autores Clássicos
ISBN: 972-27-1371-X
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 752
Sinopse: O presente volume é constituído por quatro secções. A primeira, mais curta, trata da edição das Obras Completas. A segunda corresponde a um breve conspecto da biografia aristotélica, onde se procura reunir a melhor informação disponível e identificar algumas das dúvidas que a este respeito ainda permanecem. A terceira parte é preenchida por quatro estudos. Que tratam sucessivamente da história, estrutura e natureza da coleção aristotélica, da evolução e linhas de força do seu pensamento, de certos problemas de datação das suas obras principais e, finalmente, das dificuldades provocadas pela tradução de alguns conceitos centrais. No final do volume, e como quarta e última secção, encontra-se uma bibliografia selecionada, onde são reunidas as fontes e as obras auxiliares ou instrumentais utilizadas nas versões portuguesas, bem como a literatura secundária mais geral ou mais relevante sobre as obras traduzidas e os temas nelas abordados.



“Platão chamaria a Aristóteles “o leitor”, repetindo frequentemente: “Vamos a casa do leitor”.
O interesse desta tirada, a ser verdadeira, não reside tanto no apontamento de uma idiossincrasia do Estagirita, de um traço da sua personalidade ou de um seu costume absorvente, mas na apreensão de uma profunda alteração nos hábitos de leitura que o filósofo introduziu na cultura grega.
Com efeito, até Aristóteles, os livros não eram lidos, mas sim escutados.
O Grego coevo não lia seguindo ele próprio com os olhos as maiúsculas do texto, ou soletrando em surdina as letras que ia desenrolando no papiro, muito menos, como é evidente, folheando as páginas inexistentes dos volumosos cilindros.
Reclinava-se passivamente para saborear, como numa representação teatral, as frases que um servo educado recitava.
A novidade introduzida por Aristóteles foi a de acumular numa só pessoa a dupla função de recitador e de ouvinte, fazendo assim evoluir a noção arcaica de “leitor” como aquele que lê alto para outrem e fundando a partir dela a noção moderna de “leitor” como alguém que lê baixo, ou em pensamento, para si mesmo.
Neste sentido, chamar a Aristóteles “o leitor”, como fazia Platão, significava assinalar, e quiçá estranhar, esta mudança, senão verberar ironicamente uma excentricidade de meteco.
Com efeito, no regime cultural em que cobra sentido, o leitor é um escravo e ler uma ocupação servil. (...)
A partir de Aristóteles, deparamo-nos com um modo inteiramente novo de investigar, de fazer ciência e de produzir cultura. E a anedota relativa ao dito platônico surpreende justamente esta revolução in fieri.
Há, pois, razão em declarar que, com Aristóteles, o mundo grego passou do ensino oral para o hábito de ler.
Ora, este lance produzirá toda uma catadupa de mudanças radicais na atividade científica.
Não é exagero dizer-se que, com ela, é a própria noção moderna de investigador que surge.
Em Aristóteles, a institucionalização de rotinas de pesquisa, a atenção à recolha de dados, o pendor para o colecionismo histórico ou erudito, a criação da transmissão escolar e da prosa científica, o interesse sistemático pela tradição das disciplinas, são diretamente devedores desta primeira inovação.
Não devemos esquecer que, num tratado de tanta relevância metodológica como o primeiro livro dos Tópicos, ele próprio recomenda a prática de sublinhar e anotar os manuscritos à margem, de os transcrever e de elaborar fichas de trabalho, rotinas indissociáveis da leitura direta dos textos e, ao mesmo tempo, condições indispensáveis daqueles feitos.
E há mesmo bons motivos para pensar que a enorme produção de Aristóteles, tanto em termos absolutos como comparativos, deriva desta nova facilidade no acesso aos livros e das técnicas que ela permite.”


O IMPÉRIO DE ALEXANDRE
Na dilacerante polêmica acerca da Macedônia que, durante dezenas de anos, dividiu os atenienses em pró e anti, as razões estavam bem distribuídas.
Verdadeiramente, entre os amigos, como eram em geral os filósofos, e os adversários, recrutados sobretudo no partido popular, não havia diferença quanto aos fins, mas sim quanto aos meios.
Para ambos, como em geral para todos os Gregos, o grande, o verdadeiro, o único inimigo estratégico da Hélade era o império persa, em que se corporizava uma secular história sangrenta de contendas e guerras e, principalmente, em que residia, à época, a única ameaça real e consistente (parecia então) ao modo de vida grego.
Os Persas eram os bárbaros – e eram bárbaros perigosos.
E por “bárbaros” entendiam eles: seres inferiores, naturalmente feitos para serem escravos, porque a ignorância culposa da sua humanidade os fazia sofrer sem remorso nem vergonha a indignidade de servirem um amo onde os Gregos obedeciam à neutralidade objetiva da lei e de entregarem a um só a soberania que era originariamente de todos.
Mais do que a estranheza da língua, que relevava sobretudo do simbólico, o que distinguia os Gregos dos bárbaros era, para eles, um modus vivendi, tanto político como espiritual, que os fazia crer acima e antes de tudo no império da lei, na soberania do cidadão e na autonomia da cidade e, portanto, deplorar a visão soturna, para oriente, de extensos territórios lavrados por servos ao ritmo do chicote de um sátrapa, representante corrupto e venal do imperador todo-poderoso, qual deus absconditus no seu casulo distante.
Pelo contrário, os Macedônios eram apenas uma espécie de gregos degenerados, diminuídos da sua condição natural de homens livres à degradante situação de súbditos de um soberano absoluto, “à maneira oriental”.
Ora, o que dividia pró-macedônios e antimacedônios era uma questão tática, não uma questão estratégica: a percepção que cada um deles respectivamente tinha do “inimigo principal”, isto é, daquele que, na circunstância, estava em condições de fazer pior e provocar um dano mais profundo e prolongado ao modus vivendi helênico.
Para os primeiros, entre os quais se encontrava Aristóteles, a Macedônia, como nação grega, e nação grega poderosa – de fato, a única potência grega regional que sobrevivera à hecatombe das lutas fratricidas do século anterior –, era uma prevenção contra os apetites da Pérsia.
Ser pró-macedónio era, portanto, escolher o mal menor, preferindo tolerar as grosserias marciais dos boiardos do Norte, na expectativa de as poder polir pelo convívio, de modo a preservar o que mais importava, a saber, as liberdades e prerrogativas do homem grego, o autogoverno das Cidades e a estrutura criativa da πóλις, de onde havia surgido e em que se condensava toda a grandeza e originalidade, não só material, mas sobretudo espiritual, do gênio grego.
Mas os antimacedônios viam mais longe.
Pressentindo que a cobiça indisfarçável dos reis da Macedônia era o sinal de um espírito ele próprio oriental, desconfiaram, com razão, de que o que os animava não era a simples ambição de manter um ascendente, uma predominância ou mesmo um protetorado sobre as cidades gregas, mas sim a volúpia de mandar sobre elas como senhores absolutos.
Para eles, portanto, diante de uma Pérsia decadente, enfraquecida e sonolenta, a Macedônia era, agora, o verdadeiro perigo.
Mais do que isso, no domínio dos fantasmas noturnos, como, em breve, no das duras realidades da vigília, a Pérsia era agora a Macedônia.
Este um difícil aprendizado que alguns dos ingênuos e bem-intencionados aliados da Macedônia haveriam de fazer dolorosamente à sua custa, como Calístenes de Olinto, mandado executar por Alexandre em 327, por se ter recusado a prostrar-se a seus pés como perante um soberano asiático.
É que os homens como Calístenes haviam-se alistado na causa de Alexandre, não por causa de Alexandre, mas por causa da Grécia. Não tinham aderido ao seu sonho oriental para expandir qualquer território ou para criar qualquer império, mas para destruir um, e com ele a ameaça permanente que pendia sobre as cidades gregas. Não tinham percorrido desertos sem fim até ao fim do mundo conhecido por desejos de conquista, que nunca tinha movido alma grega nenhuma, mas para conservar as suas próprias intactas e incólumes.
Pelo contrário, Alexandre, é lícito pensá-lo, era para si mesmo a sua própria causa e o seu próprio sonho.
Os antimacedônios tinham tido razão: na loucura divina do imperador estava o germe daninho da escravidão oriental. E os Gregos não mais se livrariam dela, até bem próximo dos nossos dias.
É possível que o próprio Aristóteles se tenha dado conta disso, pelo menos após a execução do seu sobrinho e colaborador, com o qual parece ter mantido um permanente contato, recebendo dele notas, observações e amostras para as investigações comuns, se é certo que na carta a Alexandre intitulada Sobre as Colônias, escrita provavelmente por essa altura, criticava o projeto oriental do rei, especialmente no que toca à sua política de miscigenação.
Mas era tarde.
Alexandre tinha de ir até ao fundo do seu destino histórico, ou, o que vinha a ser o mesmo, tinha de ir até ao fundo do Universo.
Por isso, continuava, implacável e imparavelmente, a conquistá-lo.
À data da sua morte precoce, havia construído a pulso, e num tempo recorde, o maior império que a Antiguidade tinha conhecido, estendendo-se do Norte da Grécia à margem do Ganges.
Foi aí que a sua hora chegou, vítima de malária ou de “mão amiga”.
Morreu de febres a 13 de Junho de 323 a. C., com 33 anos incompletos. Alexandre fizera um império – e fizera nascer novos impérios.
Volvidos cinquenta anos, uma nova época de estabilidade se abria, desenhada com sangue pelas espadas dos seus generais.
O que ele criara – uma realidade imperial de matriz grega – e o que eles criaram – os grandes impérios helenísticos – decidiram a sorte da civilização grega clássica.
A sua morte foi a morte da πóλις.
Para lá dele, começara a era da globalização. Era o helenismo, tempo de uma civilização e de uma cultura em que homens como Aristóteles estavam a mais.”


“Quanto ao caráter de Aristóteles, o seu próprio texto dá-nos algumas indicações preciosas.
Podemos reconduzir a cinco as principais informações que os escritos nos fornecem: o horror às generalizações sem contrapartida na experiência; a atenção aos detalhes; o rigor na observância dos procedimentos metodológicos; o otimismo e a confiança no progresso do conhecimento; a tolerância para com a fragilidade humana e a complacência perante o fracasso.
A tradição antiga nem sempre é tão caridosa.
Numerosos testemunhos dão-no como inclinado para o abuso do sarcasmo, o que, aliás, é confirmado por algumas anedotas e por alguns apotegmas conservados, bem como por diversos passos da sua obra.
Outros traços teriam sido o gosto pela solidão, a autoconfiança e a ambição, bem como a capacidade de persuasão.
Mais no sentido dos textos vão a temperança e a moderação consigo mesmo, a dignidade e a firmeza na doença, quiçá mesmo a resignação.”


“A expressão “ecletismo” provém de œklŠgein, “escolher”, e aplica-se para designar a seleção de elementos doutrinários de diferentes filosofias e a sua fusão numa síntese geral. São conhecidas diversas correntes ecléticas na Antiguidade helenística e tardia, nomeadamente o ecletismo estoico, o ecletismo platônico e o ecletismo aristotélico. O segundo, testemunhado especialmente pela IV Academia e pelo platonismo médio, caracteriza-se pela inclusão de elementos de origem estoica numa doutrina matricialmente platônica.”


“Em sentido próprio, o ceticismo se refere a uma corrente filosófica do helenismo, iniciada por Pírron de Élis, que se prolongou, com vários matizes, por toda a Antiguidade. Caracterizam-na a suspensão do juízo, baseada na consciência da inapreensibilidade da natureza das coisas, e, consequentemente, a indiferença perante todas elas, de onde decorre a verdadeira felicidade, entendida como independência em relação aos desejos e às inclinações. O cepticismo das II e III Academias abriu uma forma ontológica e epistemológica, também chamado “probabilismo”, desta corrente.”


“A Escola Cínica foi uma escola socrática dirigida por Antístenes, seu fundador, e especialmente por Diógenes de Sínope (morto, já muito velho, cerca de 322 a. C.), que, pelo seu ensinamento e pela sua vida, de caráter ostensivamente frugal, configurou o modelo lendário do filósofo cínico e justificou o próprio nome atribuído à escola (que provém da palavra “cão”), significando o ideal de retorno à natureza que a norteia. Embora de índole predominantemente ética (onde avulta a sua identificação da felicidade, encarada como fim do homem, com a virtude, por estrita oposição com o prazer), a filosofia cínica contém também uma ontognosiologia, que claramente se opõe à platônica, pela sua postulação exclusiva do individual e do corpóreo e pela sua completa denegação dos universais.
A escola cínica veio a prolongar a sua influência ao longo da época helenística, designadamente através do estoicismo, com que mantém evidentes consonâncias e até uma relação histórica, se, como quer a tradição, é certo que o fundador do estoicismo, Zenão de Cítia, foi discípulo do filósofo cínico Crates de Tebas.”


“Na Escola Cirenaica, como nas demais originadas no ensinamento socrático, com exceção da platônica, há o predomínio da reflexão ética sobre a reflexão metafísica, lógica ou cosmológica. Neste domínio, a especificidade da filosofia cirenaica revela-se pela afirmação do primado da sensação e no apontamento do prazer como fim da ação humana, entendendo-o, no entanto, como o prazer do instante, o qual só é possível pela libertação de todas as emoções e inclinações provenientes das expectativas e dos cálculos de futuro. A influência que exerceu sobre o epicurismo é evidente.”


“O epicurismo é, a par do estoicismo e do ceticismo (pirrônico), uma das três grandes correntes filosóficas que surgem com a cultura helenística e que a vão marcar até ao final da Antiguidade. Se o estoicismo foi profundamente influenciado pela escola cínica, fundada em Atenas pelo discípulo socrático Antístenes, já o epicurismo denota uma evidente relação com a escola cirenaica, também derivada do socratismo, através de Aristipo de Cirene. Todavia, esta última influência verifica-se predominantemente no domínio da ética, em que ambas as escolas adotam uma solução hedonista para o problema do bem supremo, de acordo com a qual a felicidade reside no prazer (ou, mais precisamente, na ausência de dor), através do abandono de todos os desejos, temores e expectativas. Ao invés, em metafísica, o epicurismo optará por uma ontologia materialista baseada no atomismo de Leucipo e Demócrito e por uma epistemologia empirista, para a qual o conhecimento verdadeiro repousa sobre os sentidos.”


“A obra completa de Aristóteles seria constituída por cerca de cento e sessenta e nove escritos, cobrindo a totalidade de seções que determinamos no corpus, dos quais cento e dezoito seriam autênticos, trinta e sete espúrios e catorze duvidosos.
Se nos ficarmos apenas pelos autênticos, a comparação dá vinte e nove títulos para a obra conservada contra cento e dezoito para a obra completa. Conclui-se portanto que a obra conservada representa apenas cerca de um quarto do total e que oitenta e nove obras autênticas de Aristóteles se perderam, no todo ou em parte.”


“Dizer que Aristóteles nunca foi platônico, ou mesmo, como Düring, que “Aristóteles se colocou desde o início em oposição aberta a Platão”, declaração que, tendo em atenção os textos subsistentes, deve ser subscrita ipsissima verba, de modo algum implica que ele começou por formular teorias em oposição a Platão, mas apenas que, desde o início, Aristóteles jamais partilhou das intuições centrais que fazem do platonismo o que ele é, ou, ainda, que as suas próprias estiveram sempre em oposição íntima às de Platão.
O motivo é que existe uma contradição de princípio, ao nível do ponto de vista reitor, entre o pensamento aristotélico e o pensamento platônico, independentemente das zonas de coincidência que, em diversos aspectos, estruturais ou de superfície, se podem achar entre os dois pensamentos.
Neste quadro, pode dizer-se que, ao entrar na Academia, Aristóteles estava já filosoficamente formado, no sentido em que, ao nível do travejamento essencial da sua concepção do mundo, se encontrava dotado de uma identidade própria que o tornava antecipadamente imunizado contra a concepção platônica.
E a razão é simples: o primado que no seu pensamento é conferido ao indivíduo.
Esse o contributo asclepíada da sua personalidade. Mas não por um suposto vezo empirista da sua ideação. Antes pela sensibilidade colhida no convívio com a atividade clínica, cuja vinculação à singularidade tinha sido já, à época, devidamente reconhecida, tanto do ponto de vista prático como do teórico.
Neste sentido, Aristóteles nunca foi platônico – embora também se deva dizer que nunca teria sido Aristóteles se não tivesse havido Platão.
Por quê?
Porque foi no platonismo que Aristóteles se deparou com os desafios que a sua própria natureza lhe impunha fossem superados e descobriu os problemas que a sua intuição própria obrigava a serem resolvidos.
O maior desses desafios e desses problemas é, sem dúvida, a teoria platônica das ideias. E a resposta a ambos podemos encontrá-la na metafísica de Aristóteles, desde uma época tão primitiva quanto a da redação das Categorias.
Mas mais do que isso: Platão e a Academia facultaram-lhe também os meios e os instrumentos para construir a sua própria filosofia.
Já foi frequentemente observado que toda a silogística e a teoria da ciência aristotélica arrancam da dialética. Num certo sentido, é mais do que isso: todo o pensamento de Aristóteles arranca da prática da discussão na Academia e é ela que lhe permite descobrir os grandes conceitos e princípios que estruturam transversalmente o seu pensamento.”


“Podemos reconhecer a unidade do pensamento em cinco grandes características do gênio filosófico de Aristóteles, que constituem simultaneamente cinco aspectos transversais da sua ideação:
1) Na ordem da investigação, o cruzamento da observação (num sentido lato, que engloba a tradição e as opiniões sufragadas pela maioria ou pelos mais sábios) e da análise, subordinados a um modelo aporemático de pesquisa;
2) Na ordem da explicação, a opção finalista. O modelo teleológico de compreensão penetra todas as regiões em que a filosofia aristotélica intervém, da física à ética, da psicologia à política, da biologia à metafísica;
3) Na ordem da compreensão, a recusa da unicidade. Aristóteles é, como provavelmente nenhum outro filósofo anterior, sensível à pluralidade e à complexidade do real, na diversidade das suas manifestações e no caráter incontornavelmente multíplice dos princípios a que, dentro de cada domínio de análise, elas devem ser reconduzidas;
4) Na ordem da exposição, o primado do argumento. A filosofia grega é, por temperamento, uma filosofia em que a argumentação desempenha um papel de relevo. Parmênides, de cujo Poema subsistiram trechos bastante extensos, ou Platão, nos seus diálogos, dão-nos abundante ilustração desse vezo. Mas em nenhum deles se pode dizer que tudo o mais (exemplos, adorno literário, rasgos de eloquência, efeitos retóricos) é, como em Aristóteles, sacrificado à apresentação dos argumentos, sem cedências (não há aqui o proêmio parmenídeo, nem as alegorias e os mitos de Platão) e subordinando tudo a um regime puramente argumentativo de exposição, cuja fórmula típica é: enunciado do problema; posições anteriores; refutação; teses próprias; argumentos; objeções; resposta às objeções. Só raros momentos de ironia e um gosto particular pela citação (especialmente evidente na Ética a Nicômaco) perturbam de vez em quando esta regra;
5) Na ordem da fundamentação, a recondução para o indivíduo como último irregressível em todas as áreas de indagação e para a sua circunscrição ontológica (a teoria da substância) como ponto de referência constante.
Daqui decorre a permanência de determinadas doutrinas, princípios, conceitos e metodologias, que atravessam a obra aristotélica de cabo a cabo.”

domingo, 6 de julho de 2014

Área de segurança Gorazde: a guerra na Bósnia Oriental* – Joe Sacco

Editora: Conrad
ISBN: 978-85-8719-351-3
Tradução: Sérgio Augusto Miranda
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 240
Sinopse: Joe Sacco é conhecido no meio dos quadrinhos por combinar narrativas próximas do documental aliadas a desenhos preto e branco. Este trabalho traz as suas impressões da cidade de Gorazde na Bósnia durante a guerra. Ele mostra como os moradores do lugar conseguiam sobreviver durante a ocupação sérvia. Para tanto empreendeu quatro viagens à cidade.

“Logo estávamos na sala de alguém, tomando café, sabendo das novidades dos últimos três anos e meio.
A fome?
Terrível.
Os valores e esperanças aniquilados?
Rapaz!
As granadas caindo?
Você não acreditaria!
(Talvez você não acredite mesmo.)
Mas eu estava tentando quebrar o gelo com Emira, a tradutora de 19 anos que nos foi designada durante a tarde.
– Então, o que você faz para se divertir aqui?
– Eu não me divirto.”


“Tudo bem. Talvez esta festa não fosse grande coisa. Apenas uns drinques e um barulhão de uma banda chamada Bálcãs.
Mas nossos novos amigos... brindavam como ressuscitados.
Não como se houvesse amanhã, mas porque haveria um amanhã...”


“Suada tinha 15 anos quando a encontrei...
Ela me contou que era muito agitada antes de a guerra começar e a escola fechar. Mas quando encontrou os corpos dos vizinhos em pedaços, depois dos bombardeios, ela quase não saiu de casa por meses.
Durante um cessar-fogo ou uma pausa entre bombardeios, ela disse, finalmente se aventurou a ver uma amiga na vizinhança, uma caminhada curta.
– Eu não reconheci a cidade – falou. – As coisas estavam tão destruídas que eu comecei a gritar o nome dela na rua até que ela saiu para me encontrar. Eu não sabia exatamente onde estava.”


Irmandade e Unidade
Edin me diz:
– Eu tive uma boa infância. Não fazia qualquer distinção entre crianças sérvias, croatas e muçulmanas. Nós estávamos sempre juntas... Pescando nas florestas, no parque, no estádio... A população daqui de Gorazde era misturada. Meus vizinhos a esquerda eram sérvios, do outro lado da rua e à nossa direita, muçulmanos...
– Uma época, eu passava muito tempo com um amigo sérvio. Ele ficava na minha casa durante o dia. À noite... se minha mãe queria que eu comesse, ela o chamava para jantar comigo... Passei toda minha vida com (meus amigos sérvios) Boban, Miro, Goran... Fiquei bêbado com eles muitas vezes... Estávamos juntos em todas as festas, em qualquer lugar. Não fazíamos distinção.
– A moderna Iugoslávia foi moldada a partir da destruição do Reino da Iugoslávia, após a Segunda Guerra, pelo líder da resistência comunista Josip Broz, conhecido como Tito. Das seis repúblicas iugoslavas criadas por Tito, a Bósnia era a mais diversa etnicamente. Ela tinha grandes populações de croatas, sérvios e muçulmanos. Cada um desses grupos étnicos tinha uma história particular e um passado cultural, mas eles eram eslavos do sul e falavam essencialmente a mesma língua. As principais diferenças eram religiosas. Os croatas são católicos, os sérvios são cristãos ortodoxos e os muçulmanos, que genericamente descendem dos eslavos, se converteram ao islamismo durante uma ocupação de 500 anos pelos otomanos.
– Algumas das maiores cidades da Bósnia, como Sarajevo, eram uma mistura balanceada e tinham um grande espírito de tolerância. Gorazde fica no vale Drina, na Bósnia Oriental, onde vilas e cidades eram habitadas por muçulmanos e sérvios. Mais de meio milhão de pessoas viviam no vale do Drina, de acordo com o censo de 1991. Destes, 51,7% eram muçulmanos e 44,4%, sérvios. No distrito administrativo de Gorazde, a população era de 70,2% de muçulmanos e 26,2% de sérvios. Na cidade de Gorazde, 9.600 muçulmanos viviam ao lado de 5.600 sérvios.
– Tito manteve sua política de “irmandade e unidade” na Iugoslávia, reprimindo os sinais de nacionalismo étnico entre os diferentes povos iugoslavos. Se Tito conseguiu criar uma identidade iugoslava, fez sem crises políticas ou qualquer ressentimento nacionalista. Estes ressentimentos seriam utilizados pelos políticos, nas manobras pelo poder, assim que o presidente vitalício Tito morresse.
– O período e a política de Tito, na opinião da grande maioria da população, foram muito bons e não se repetirão. Em geral, o povo lamentou o final desse período. É a minha opinião também. Apesar de o Tito ser autoritário, na sua Iugoslávia, croatas, sérvios e muçulmanos viveram juntos por meio século, e depois da sangria entre eles, na Segunda Guerra Mundial.
– Mais de um milhão de iugoslavos morreram na Segunda Guerra, a maioria na mão de outros iugoslavos. Quando os países do eixo ocuparam e desmembraram o reino da Iugoslávia, em 1941, instalaram croatas fascistas, os ustasha, no seu próprio estado, que foi expandido para abrigar a Bósnia. A fúria com que os ustasha promoveram seu programa de genocídio e carnificina forçou a conversão religiosa e a expulsão da população sérvia restante, deixando até mesmo os nazistas horrorizados. Suas vítimas supriram os dois grupos de resistência rivais, os chetniks e os Partisans.
– Os chetniks, um tipo de aliança ampla entre sérvios nacionalistas e monarquistas, procuravam estabelecer uma Sérvia grande, limpa de não-sérvios. Agitavam uma guerra cruel contra os croatas da Bósnia, os cidadãos muçulmanos (vistos como colaboradores dos ustasha) e os Partisans, que eles viam como rivais do pós-guerra. Os Partisans, a força de resistência comunista liderada por Tito, também era um grupo predominantemente sérvio (o próprio Tito era meio croata, meio esloveno), mas recebia muitos recrutas muçulmanos e croatas, descontentes com o crescimento do regime ustasha e a crueldade dos chetniks. Os Partisans lutavam uma guerra contra as forças do eixo, geralmente de forma defensiva, e lideravam uma campanha agressiva contra os Chetniks, a quem eventualmente atacavam.
– Os muçulmanos da Bósnia podiam ser encontrados em todos os lados do conflito. Uns poucos se aliaram aos Chetniks. Outros se juntaram à perseguição dos sérvios pelos Ustasha. Milhares se voluntariaram aos alemães para formar uma divisão muçulmana da SS, que cometeu atrocidades anti-sérvios. Enquanto o caos se espalhava, alguns muçulmanos formavam unidades de defesas autônomas para proteção contra todas as ameaças. Em número cada vez maior, eles se aliaram aos multiétnicos Partisans, que criavam mais represálias aos Chetniks.
– Centenas de milhares de sérvios foram mortos na guerra, a maioria pelos Ustasha. Mas os muçulmanos perderam uma grande porcentagem da sua população em ataques e massacres Chetniks, geralmente, na Bósnia Oriental. Houve muitas mortes na guerra, de muçulmanos por Chetniks. Os Chetniks vinham e iam para onde queriam, em pequenos grupos, queimando casas, matando pessoas, estuprando mulheres... Muçulmanas, nesta área, não tinham como se defender.
– Os Chetniks estupraram e massacraram muitos dos meus primos e muçulmanos da área. As piores coisas aconteciam em Foca. A vila da minha família, Bucije, acima do rio Drina, os Chetniks destruíram tudo... quem eles encontravam pelo caminho, matavam. Estamos falando de homens...
– Quando as pessoas ouviam que eles estavam vindo, se escondiam ou fugiam para outros lugares, o mais rápido possível. Meu avô se escondeu com a ajuda de sua esposa, por quase um ano, sob o chão do estábulo das vacas.
– Naquela época, os muçulmanos... escaparam de Gorazde... Eles se agruparam e fugiam de um lugar para o outro, por causa dos traidores, dos Chetniks e dos Ustasha. Meus avós conseguiram chegar em Brcko e Visoko. Meu avô e minha avó tentaram me explicar algumas vezes o que aconteceu durante a Segunda Guerra, mas eu não escutava ou então fingia que escutava.”


Desintegração
O doutor Alija Begovic me diz:
– Um vizinho de infância, um amigo sérvio... apenas uns dias antes de tudo começar disse, “O que você acha? Como podemos resolver esse problema?” Eu disse a ele que a única solução era nos unirmos... que tínhamos que construir uma “muralha da China” ao redor de Gorazde e viver juntos. Ele disse que não poderíamos viver juntos, que a única solução era separar os povos. Eu entendi que o objetivo deles era limpar a área.
– Pouco mais de uma década após a morte de Tito, em 1980, a Iugoslávia começou a se fragmentar, e a figura central na ruptura e nas tragédias seguintes era o homem que se tornaria o presidente sérvio, Slobodan Milosevic. Ele usou e encorajou o nacionalismo sérvio e o sentimento de vítima para consolidar seu poder na Sérvia e estender sua influência sobre os sérvios que viviam nas outras repúblicas:
–... Novamente temos batalhas e discussões. Elas não são lutas armadas, mas apesar disso, não podem ser descartadas – dizia ele.
– Com uma série de intrigas políticas, Milosevic usurpou a autonomia das províncias sérvias de Kosovo e Vojvodima e tomou para si os votos para a presidência rotativa da Iugoslávia, que substituiu as regras de Tito.
– Eslovênia e Croácia, com seu nacionalismo incitado e desconfiado do crescente poder de Milosevic, declararam sua independência da Iugoslávia em 1991. A Eslovênia, que não tinha uma população sérvia significante, conseguiu permissão para deixar a federação após dez dias de conflito. Na Croácia, porém, uma guerra brutal começou quando uma minoria sérvia – cujos interesses e irritabilidade foram chutados pela liderança croata – criou seu próprio estado.
– Eles tinham o apoio de Milosevic e das armas pesadas do EPI (Exército Popular da Iugoslávia), que evoluiu de uma instituição federal para um meio de construção da grande Sérvia, um estado que encamparia os sérvios vivendo dentro das fronteiras sérvias.
– No território que eles consolidaram, os sérvios se livraram brutalmente dos civis croatas. Os sérvios estavam convencidos de que se preveniam de seu próprio extermínio, pelo que eles consideravam ser o ressurgimento de um estado ustasha. Seus líderes nacionalistas usaram dos crimes étnicos do passado para alimentar um novo ciclo de violência étnica e despedaçar a ideia de “irmandade e unidade” para sempre.
– A Bósnia estava agora numa encruzilhada. Ela podia se manter numa Iugoslávia expurgada, composta por uma Sérvia dominante e chauvinista e por seu aliado Montenegro, ou procurar a independência e se arriscar numa guerra.
– Na primeira eleição livre da Bósnia, em 1990, os eleitores preencheram suas cédulas com votos étnicos, colocando três partidos nacionalistas no poder. Estes partidos formaram um governo de coalizão, mas para diferentes fins. O partido sérvio (SDS) queria a Bósnia dentro da Iugoslávia. Já o croata (HDZ) e o muçulmano (SDA) queriam separar a Bósnia.
– O homem nomeado para comandar a presidência rotativa da Bósnia foi Alija Izetbegovic, que era também líder do partido muçulmano.
– Pondo de lado os argumentos de que uma Bósnia independente seria uma sociedade multirracial interna, o partido sérvio atiçou o medo, dizendo que os sérvios viveriam como uma minoria dominada por muçulmanos, quer pretendiam criar uma república islâmica. Desconsiderando que os grupos étnicos estavam muito interligados, o SDS argumentou que apenas uma divisão étnica da Bósnia evitaria a guerra.
– Os sérvios começaram estabelecendo áreas autônomas, e o líder do seu partido, Dr. Radovan Karadzic, deu esse aviso para a liderança muçulmana que protestava:
– “Vocês querem levar a Bósnia-Herzegovina para o mesmo caminho de inferno e sofrimento em que a Eslovênia e a Croácia estão... e não pensem que vocês talvez estejam fazendo com que o povo muçulmano desapareça, porque ele não pode se defender no caso de uma guerra...”
– “Suas palavras e modos ilustraram porque outros se recusavam a ficar nesta Iugoslávia. Ninguém mais quer este tipo de Iugoslávia que o Sr. Karadzic deseja. Ninguém, exceto talvez os sérvios. Eu quero dizer aos cidadãos da Bósnia-Herzegovina para não terem medo, porque não haverá guerra. Dito isso, durmam em paz”, disse Alija Izetbegovic.
– O SDS abandonou a assembleia e estabeleceu seu próprio parlamento sérvio. O governo da Bósnia, enquanto isso, continuava buscando a soberania, e a Comunidade Europeia reconheceu sua independência em 6 de abril de 1992. Naquela noite, os separatistas sérvios declararam seu próprio estado independente, que eles chamaram depois de República Srpska.
– Eu passei cinco anos na faculdade (em Sarajevo)... Lá ouvi que haveria problemas se começasse uma guerra. Eu pensei... seria melhor se estivesse com meus pais. Peguei um ônibus e voltei pra Gorazde – me disse Edin.
– Eu tinha um bom amigo sérvio morando a três casas da minha. Ele esteve comigo nos oito anos do primário. Liguei pra ele e perguntei se podíamos sair juntos:
Não, não posso... Talvez mais tarde... Eu não posso sair com você. Meu povo me delataria.
Tudo bem, se não quer sair comigo, mas eu quero que sejamos bons vizinhos...
– Na minha vizinhança, havia ao mesmo tempo guardas armados muçulmanos e sérvios porque não era seguro. Tudo era possível. Talvez viesse alguém de fora, de Visegrado, de outra parte da cidade e matasse meu vizinho sérvio. Mas eles pensariam que um vizinho muçulmano teria feito isso. Ou talvez viesse alguém para matar um muçulmano, e eles achariam que foi um vizinho sérvio. Seria melhor se nós pudéssemos... patrulhar a vizinhança juntos... durante a noite.
– O dia-a-dia era sempre o mesmo, mas era possível sentir algo no ar – perigo. A cada dia a tensão crescia... porque os líderes desta cidade brigavam no rádio... tentando encontrar uma solução para ambas as nacionalidades. Em alguns cafés e bares, as pessoas eram muçulmanas e, a 15 metros, outro bar estava lotado de sérvios... Eu não me sentia confortável indo sozinho a um bar sérvio.
– Perguntei a muitos sérvios... bons amigos... qual a razão... e a resposta era sempre a mesma... ‘Por que vocês não querem viver conosco num mesmo país, com Montenegro e Sérvia?’
– Meu amigo me disse: ‘Não espere boas relações entre nós no futuro próximo. Você tentará matar todos os sérvios na Bósnia e criar um país muçulmano’. Eu disse a ele que não era verdade e, se fosse, eu não iria querer viver num país muçulmano.
– Nos últimos dias antes da guerra, não se ouvia mais ‘olá, vizinho, como está?’
– A guerra estourou no noroeste da Bósnia, nas cidades de Bijeljina e Zvornik, no início de abril de 1992. Num padrão já estabelecido na Croácia, grupos paramilitares da Sérvia, a EPI de Milosevic e os sérvios nacionalistas locais começaram uma limpeza étnica nas áreas habitadas pelos não-sérvios. O governo bósnio estava completamente despreparado para uma guerra e depois foi atrapalhado pela ONU e seu embargo à antiga Iugoslávia. Os bombardeios sérvios a Sarajevo começaram, mas Gorazde continuava calma.
Dahra complementa:
– Antes da guerra, eu via muitos sérvios colocando suas famílias em ônibus para Belgrado, e eu disse ao meu marido: ‘Algo vai acontecer’. ‘Não seja tola. Não vai acontecer nada. A guerra não vai chegar aqui’ – ele respondeu.
– Eu estava trabalhando numa fábrica e perguntei ao gerente, que era sérvio: ‘Algo está acontecendo? Você mandou sua família para outro lugar?’. Ele respondeu: ‘Não. Quisera eu ter outro lugar para mandá-los... porque não haverá paz entre sérvios e muçulmanos. Não só aqui em Gorazde, mas em toda a Bósnia. Assim, se você puder, mande sua família embora para salvá-los’.
– Nós tínhamos guardas em nossa vizinhança... para afastar pessoas infiltradas. Um deles viu um vizinho sérvio tirando caixas de armas de um caminhão e colocando-as no seu porão. Mas ele falou que as caixas tinham carne e queijo para o mercado, não precisava ter medo. (A filha e o genro depois se tornaram atiradores em Gorazde.)
– Depois disso, os muçulmanos da vizinhança se reuniram e decidiram mandar suas famílias para Sarajevo... nós fomos de ônibus. Nós chegamos numa barreira EPI em Ustipraca, e... eles checaram nossos documentos e nossas bagagens e nos deixaram ir. Quando chegamos a Rogatica, a polícia sérvia nos inspecionou novamente e deixou a gente partir. No centro da cidade, fomos parados de novo, e outra vez a polícia sérvia entrou e pediu nossos documentos. Eles viram um jovem casal, o marido e a esposa, e os levaram para fora do ônibus... nunca mais voltaram. (...)
– Em Sokolac um homem da unidade de Arkan entrou e pediu os documentos. Ele viu que a identidade da minha mãe era de Visegrado:
Você tem casa em Visegrado? – ele perguntou.
Uma não, duas.
E se alguém queimar suas casas?
Creio ter sido boa pros meus vizinhos, ninguém queimaria minhas casas.
Ainda bem que existe gente assim. (...)
– Continuamos... toda a floresta ao redor da estrada estava cheia de soldados do EPI e Chetniks. Eles estavam juntos. Então minha mãe disse ao meu filho: ‘Se esconda atrás da cortina e, se perguntarem quantos anos tem, diga que tem 11...’. ‘Por que?’. ‘Porque senão eles te tiram do ônibus’.
– Não pude acreditar quando chegamos a Sarajevo, quando pus meus pés no chão... Eu disse... ‘Senhor, será que finalmente estaremos a salvo?’. Nós fomos para a casa de parentes... mas depois a casa foi bombardeada, nos mudamos para um centro de refugiados. Então, a primeira lista de mortos em Gorazde chegou, e o primeiro nome era o do meu marido.”


(Por questões de espaço não foi possível inserir quatro histórias significantes para se compreender o conflito: O Primeiro Ataque – páginas 78 a 93, Ao redor de Gorazde – páginas 109 a 119, A ofensiva de 1994 – páginas 162 a 187 e Morte e Libertação – páginas 196 a 208.)

*: Romance gráfico

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Os donos do mundo, de Luís Augusto Símon e Rubens Leme da Costa

Editora: Leitura

ISBN: 978-85-7358-955-9

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 512

Sinopse: Com 500 páginas, o livro tem um enfoque tão simples como original para contar a história das Copas do Mundo: é baseado na história dos homens que conseguiram a maior conquista possível para um jogador de futebol.

Com o perfil de TODOS os campeões, mesmo daqueles que não entraram em campo. Estão ali desde obscuros reservas do Uruguai de 1930, nomes desconhecidos como Riolfo, Calvo e Melogno até Buffon, Pirlo e outros campeões italianos de 2006. Todos eles com uma ficha completa, com o número de jogos e gols na carreira e no Mundial.

Quem ganhou três Copas, mereceu três perfis. O garoto Pelé de 1958, o caçado Pelé de 1962 e o grande Pelé de 1970. O Zagallo jogador de 1958 e 1962 e o Zagallo técnico de 1970.

Além dos campeões, o livro tem o perfil do melhor jogador e de destaques de cada Copa, o que permite a presença de gênios que não ganharam, como Fausto dos Santos e Ferenc Puskas.

O capítulo final, para enfatizar o enfoque do livro em heróis que o mundo venera, tem o depoimento de 28 campeões. Gente como Didi, Parreira, Zagallo, Nílton Santos, Raí, Maspoli, Ghiggia e Schiaffino.

É um livro de pesquisador, mas também um livro de reportagem.


 

O livro “Os donos do mundo” traz curiosidades e belas histórias a respeito do maior torneio do esporte mais popular do mundo.

Aí vão as que compilei (as transcritas exatamente como no livro estão entre aspas – algumas foram resumidas).

 

 

“Não é de hoje que os juízes são questionados. Os “homens de preto” foram duramente criticados na competição de 1930, especialmente pelos times europeus.

Para se ter uma ideia, o treinador da Seleção Boliviana, Ulisses Saucedo, e o romeno Radulescu atuaram como árbitros no Mundial. Mas isso não ocorreu, obviamente, em jogos da Bolívia e da Romênia. Saucedo causou polêmica ao marcar três pênaltis na partida Argentina 6 X 3 México.

Radulescu atuou como bandeirinha em dois jogos. Em um, na vitória da Argentina contra o México, o árbitro brasileiro Almeida Rego foi a “estrela”, ao terminar a partida seis minutos antes do término regulamentar.”

 

 

“Quando a seleção da Copa de 1930 foi escolhida, nada menos que sete jogadores do Uruguai foram escalados. E ninguém brilhou mais do que o zagueiro Nasazzi, algo impensável se analisarmos que, na época, os times tinham apenas dois defensores contra cinco atacantes. Mas chamar Nasazzi de um “simples zagueiro” é um acinte; Nasazzi foi o antecessor do “jeito” Obdúlio Varela de jogar: em campo, ele era dono do time e o primeiro caudilho do futebol. Não é à toa que tinha os apelidos de “Marechal” ou “O terrível”.

Na época a figura do técnico não era importante, e caudilhos como Nasazzi e diretores decidiam quem e como jogar.”

 

 

 O italiano Meazza, eleito craque da copa de 1934, ainda hoje é o artilheiro da série A do italiano – e é considerado o maior craque da história deste país.

 

 

O time austríaco era a sensação da copa de 1934, conhecido como Wunderteam (Time Maravilha), e havia goleado antes da copa a Alemanha duas vezes (6 a 0 e 5 a 0), Suíça (6 a 0), Hungria (8 a 2) e Itália (4 a 2), mas, muito prejudicado pela arbitragem, acabou caindo diante da semifinal contra a anfitriã Itália, num jogo onde a arbitragem foi muito polêmica.

Hitler anexou a Áustria a Alemanha e o craque do time austríaco, Sindelar, se recusou a jogar pela Alemanha. Ele e a sua namorada, Camila Castagnola, foram encontrados mortos no apartamento que dividiam em Viena, envenenados por monóxido de carbono. Alguns especulam que as mortes foram ocasionadas por oficiais nazistas; outros que, deprimido e pressionado, Sindelar se suicidou após a anexação da Áustria ao Reich; e outros pensam que foi somente um defeito numa chaminé.

 

 

Na copa de 1938 o Brasil tinha um ótimo time e dois destaques, o estupendo zagueiro Domingos da Guia e o mago Leônidas da Silva, artilheiro e eleito o craque da copa.

O Brasil foi a estrela do torneio, com jogos que mais pareciam batalhas que não tinham fim. Foi assim contra a Polônia (6 a 5, apenas na prorrogação), ou na primeira partida contra a Tchecoslováquia (houve duas partidas, uma de desempate – os jogos não iam para os pênaltis depois da prorrogação), imortalizada como a “Batalha de Bordeaux”, que rendeu três expulsões, além de dois jogadores da Tchecoslováquia saírem de campo com ossos quebrados (o goleiro Planicka e o atacante Nejedly, com fraturas no braço e na perna, respectivamente).

Na semifinal, sem Leônidas, machucado por conta dos dois violentíssimos jogos contra a Tchecoslováquia, e com um pênalti desnecessário, fora do lance da bola feito pelo próprio Domingos, o Brasil caiu no mundial para a Itália.

 

 

“Leônidas – com uma presença de área devastadora – encantou com sua arte e valentia, chegando a fazer um gol descalço contra a Polônia, após perder a chuteira no gramado pesado e cheio de lama.

É o jogador brasileiro com melhor média de gols em Copas: oito gols em cinco jogos, média de 1,6 gol por jogo.”

 

 

“Domingos da Guia era um zagueiro clássico, de muita inteligência e que sempre dava o bote na hora certa. “Vou pelo atalho”, gostava de brincar.

Era um zagueiro que roubava a bola do adversário sem fazer faltas, tratava a bola com carinho, matando-a no peito e saindo para o jogo, driblando, e sabia lançar.”

 

 

“Zizinho, Leônidas da Silva e Domingos da Guia foram os três maiores nomes do futebol brasileiro antes de Pelé. Três mitos que brilharam nas copas de 1938 e 1950. Os três ficaram sem o título mundial.”

 

 

“Eleito craque da copa de 1950, Zizinho começou no Flamengo em 1939, e após o tricampeonato carioca (1942/1943/1944), tornou-se o dono do time, mas foi misteriosamente negociado com o Bangu, sem ser consultado, em 1950. O pequeno clube pagou uma fortuna por Zizinho e, depois de 10 anos seguidos, 329 jogos e 146 gols, Zizinho deixava o Flamengo, time que tanto amava. (...)

Mas em 1950 o craque da Copa viveu uma dor que quase o matou. Ele simplesmente não conseguia acreditar na derrota. “O silêncio do estádio não saía da minha cabeça. Você olhava para o lado e via as pessoas chorando, não acreditando naquilo, e os uruguaios comemorando. Fiquei dias sem dormir, e quando sonhava, tinha pesadelos com aquele jogo maldito”.

Mestre Ziza é considerado por muitos o maior meia do futebol brasileiro de todos os tempos e sabe que faltou apenas um título mundial para que coroasse uma carreira perfeita. Mas os deuses do futebol, infelizmente, não lhe deram essa chance.

Azar dos deuses.”

 

 

“O gol de Ghiggia, selando a virada por 2 a 1, é uma marca que ainda fica no futebol brasileiro. “Só eu, o Papa e Frank Sinatra calamos o Maracanã”, disse, repetidas vezes.”

 

 

Campeão em 1950, o maior nome da história do futebol uruguaio era um clássico número 5, Obdulio Varela, que comandava o time dentro e fora do campo.

 

 

“Provavelmente o maior meia-esquerda da história, superior mesmo a Diego Maradona, o húngaro Puskas – chamado de “Major Galopante”, sua patente no exército – foi um jogador lendário.

Defendeu o Real Madrid de 1958 a 1966, marcando 157 gols em 182 partidas. Em campeonatos nacionais, ostenta a incrível marca de 515 gols em 533 partidas, sem contar os 84 gols em 85 jogos pela seleção da Hungria.”

 

 

“O brasileiro Didi, eleito o craque da copa de 1958, mostrou todo o seu repertório durante o torneio. Conduziu o time a vitórias seguras e, quando sofreu o primeiro susto, teve personalidade para comandar a reação. Este susto veio com o primeiro gol sofrido na final, contra a Suécia, logo a três minutos de jogo. Didi pegou a bola, caminhou com ela até o meio-campo e assegurou a todos que não seria preciso nervosismo, pois o Brasil venceria. E foi o que aconteceu. O Brasil era campeão do mundo pela primeira vez, sob o comando do “Príncipe Etíope”, o “homem que passava meses sem errar um passe”, como dizia Nélson Rodrigues.”

 

 

“O francês Just Fontaine ostenta um recorde praticamente impossível de ser alcançado: marcou simplesmente 13 gols em meros 6 jogos da copa de 1950. Para se ter uma ideia do tamanho da proeza, basta dizer que a Itália venceu a Copa de 2006 marcando 12 gols em 7 partidas.

Marroquino de nascença, Fontaine era um centroavante clássico, inteligente, veloz e que não desperdiçava chances claras de gols. Fazia uma linha de frente infernal ao lado de Raymond Kopa e Piantoni e só não foram campeões porque encontraram o Brasil nas semifinais. Essa seria, aliás, a única vez que os brasileiros suplantariam franceses em Mundiais, de lembranças tão amargas em 1986, 1998 e 2006.

Fontaine não pôde jogar outras copas devido a problemas físicos, aposentando-se com apenas 29 anos.”

 

 

Nilton Santos, um dos melhores jogadores da história do futebol brasileiro, foi campeão mundial em 1958 e 1962, já veterano. Muitos pensam que se ele tivesse sido escalado em 1950, quando tinha 25 anos, ótima idade para o futebol, talvez o resultado da final contra o Uruguai tivesse sido diferente.

 

 

“Garrincha, com suas duas pernas tortas para o mesmo lado, era um desafio para a geometria. Difícil acreditar que pudesse jogar futebol. E, se o futebol for analisado como um esporte coletivo, de entrega, talvez fosse impossível mesmo. Mas Garrincha jogava outro tipo de futebol. Foi o maior driblador do futebol mundial em todos os tempos. Impossível marcá-lo. Impossível evitar seus cruzamentos certeiros. Garrincha, na verdade, subverteu toda tentativa de se entender o futebol, além de sua capacidade lúdica, de sua função de deixar pessoas alegres e outras tristes, dependendo do resultado.

E quase Garrincha não joga a Copa. Joel, do Flamengo, era o favorito da comissão técnica, abalada com o que entendia ser uma irresponsabilidade tática de Garrincha. João Carvalhaes, psicólogo da seleção, o considerou pouco capaz intelectualmente e pouco apto a decisões.

Se Julinho, destaque da Fiorentina, tivesse aceitado a convocação – considerou que seria deselegante com os jogadores que atuavam no Brasil (não era costume convocar quem jogava fora do país) – Garrincha nem teria sido convocado para a Copa de 1958.

Garrincha fez uma Copa inesquecível e marcou seu nome na história do futebol mundial ao mesmo tempo que afastava a desconfiança de dirigentes e treinadores brasileiros sobre ele. O povo, não. Já era fã e súdito de Garrincha.”

    

 

“Em 1962, Garrincha parecia um alucinado. Um dos artilheiros da Copa, fez gol de esquerda, de direita, de cabeça, driblou defesas inteiras, alucinou marcadores, plateias, comentaristas e virou manchete do jornal El Mercúrio: “De que planeta vem Garrincha?”

Mesmo com 39 graus de febre e longe de suas melhores condições, jogou a final contra a Tchecoslováquia e coroou um dos momentos mais sublimes do futebol em todos os tempos. Eleito craque da copa, foi mais decisivo que Maradona em 1986 ou Romário em 1994.”

 

 

Jogador de muita raça, sério, duríssimo na marcação e com ascendência moral e psicológica sobre os companheiros, Zito, capitão do Santos, era do tipo que mandava o garoto Pelé calar a boca e correr mais. E era obedecido.

Maior liderança dentro e fora dos gramados nas copas de 1958 e 1962, o bicampeão Zito não foi o capitão da seleção em nenhuma das oportunidades. Na primeira, coube a Bellini erguer a taça. Na segunda, a honra coube a Mauro.

 

 

A Inglaterra foi campeã em 1966, desbancando a Alemanha Ocidental, com uma arbitragem muito questionada. Como era a anfitriã, deixou o mundo desconfiado de uma possível “marmelada”.

 

 

“A copa de 1966 ficou marcada pela confirmação do talento da excepcional geração portuguesa de Coluna e Eusébio, um time tão técnico quanto violento, que quase matou Pelé a pontapés na derrota brasileira de 3 a 1, que encerrou as chances do Brasil, ainda na fase de grupos.

Brasil, aliás, que fez uma campanha ridícula. Com uma pré-convocação de 44 jogadores e vários equívocos na lista final – Carlos Alberto torres, por exemplo, foi preterido para entrar Fidélis – e contando com um grupo envelhecido de um lado (Djalma Santos, Bellini, Zito, Garrincha e Gilmar) ou muito inexperiente (Jairzinho, Tostão e Gérson) de outro – e todos eles longe do auge –, o Brasil sequer foi a sombra dos bicampeões de 1958 e 1962, e caiu ainda na primeira fase, vexame inédito para um campeão mundial.

Seria também a última vez que Garrincha e Pelé jogariam juntos (na vitória brasileira contra a Bulgária por 2 a 0). Com os dois em campo, juntos, o Brasil jamais foi derrotado.”

 

 

Bobby Charlton, maior jogador da história da Inglaterra, eleito craque da copa de 1966, quase morreu em 1958 em um acidente de avião que vitimou 8 jogadores do Manchester United e deixou 2 inválidos. Os pilotos haviam feito duas tentativas de decolagem, sem sucesso. Fizeram uma terceira tentativa, que foi fatal.

 

 

“O moçambicano naturalizado português Eusébio, é seguramente um dos cinco maiores centroavantes da história, qualquer que seja a lista. Está entre os imortais, como Gerd Müller, Di Stefano, Romário, Bobby Charlton, e só faltou um título mundial para coroar uma carreira absolutamente brilhante e que fez o Benfica uma verdadeira máquina de títulos, nas décadas de 60 e 70, quando enfrentava em condições de igualdade – e vencia – times mágicos como o Real Madrid do próprio Di Stefano, Puskas e .

Chamado de Pantera Negra, Eusébio jogou 15 anos no Benfica, e fez incríveis 317 gols em 301 partidas, tendo, portanto, média de mais de um gol por jogo.”

 

    

Pelé, autor de mais de mil gols, craque da Copa de 1970 (com a concorrência de Gérson, Jairzinho, Tostão e Rivellino) e único tricampeão mundial da história, foi o maior jogador de futebol de todos os tempos.

 

 

“Atacando, criando ou marcando, Beckenbauer, já mostrava na Copa de 1966 toda a classe e o primor que deslumbraria o mundo nos anos 70. Não é à toa que, ao lado do brasileiro Djalma Santos, é o único jogador a constar em três seleções ideais em Copas do mundo.

Apesar de jamais ter vencido o título de melhor da Copa – perdeu em 1966 para Bobby Charlton, em 1970 para Pelé e 1974 para o vice-campeão Cruijff – já se fazia notar que nascera um jogador incomum.

Beckenbauer era tudo: volante, meia, zagueiro, líbero, cobria os laterais, fazia lançamentos precisos, sempre tocando a bola com maestria e sutileza, com a cabeça erguida, sem sequer olhar para a companheira de ofício. Um verdadeiro espetáculo. Jamais o mundo verá outro igual.

Ganhou quatro campeonatos alemães, quatro Copas da Alemanha, três campeonatos europeus (seguidos, de 74 a 76), e uma Recopa. Foram 12 títulos em 14 anos. Ganhou o prêmio de melhor jogador alemão do ano por quatro vezes, foi duas vezes eleito o melhor jogador europeu. O Kaiser é dono de uma das mais vitoriosas carreiras do futebol mundial.

Foi sinônimo de renovação tática no Mundial, um líbero que atacava e fazia gols.

Beckenbauer até hoje é símbolo de elegância e cavalheirismo e é considerado, ao lado de Cruijff, o maior jogador europeu da história.”

 

 

“Mais um caso de irmão que jogavam juntos pela seleção, Jack Charlton era o irmão mais velho e menos talentoso de Bobby Charlton, e também foi campeão em 1966. Símbolo do Leeds, seu único clube entre 1952 e 1973, que defendeu por 629 vezes e onde anotou 70 gols. Era conhecido pela maneira viril e até desleal com que atuava. Com ele não tinha sutileza e seu próprio irmão foi sua vítima em vários jogos entre os dois times que têm uma imensa rivalidade. Jack e Bobby, aliás, nunca foram muito próximos.”

 

 

“O zagueiro inglês Bobby Moore personificava todo o mito do cavalheirismo inglês e foi eleito o segundo melhor jogador do torneio, atrás de Charlton. Para o técnico Aff Ramsey, Moore era “meu capitão, meu líder, meu braço direito, o espírito e o coração do time”. Em campo, era técnico, marcador leal e sabia jogar com elegância e inteligência.”

 

 

Martin Peters, campeão inglês, era originalmente um meia de muita habilidade, inteligente, de ótimo passe e grande movimentação. Jogador muito versátil, jogou em todas as posições, inclusive de goleiro.

 

 

Campeão inglês em 1966, Flowers e Garrincha tiveram uma história curiosa em 1962. O time brasileiro ficou sabendo que o inglês dissera ter descoberto como anular o infernal ponta brasileiro e que faria isso na partida das quartas de final. Ao ouvir tal disparate, Nilton Santos passou a azucrinar Mané dias e dias seguidos, dizendo que o “inglês vai te parar, disse que ponta da perna torta ele anula rapidinho”. Garrincha teria ficado enfezado com a história e com o tal Fralda – como ele se referia ao rival –, que nem era seu marcador direito e teria jurado o troco. Mordido, Garrincha fez sua melhor partida no Mundial, destruindo os ingleses e alguns o viram berrar para seus companheiros “alguém viu o Fralda em campo? Quero dar um drible nele!”, enquanto os demais caíam na gargalhada.

 

 

“O holandês Johann Cruijff foi para muitos o maior jogador de todos os tempos da Europa. Vestindo sempre a camisa 14, Cruijff era um espetáculo. Centroavante de origem, corria todos os cantos do campo, marcando, driblando e armando, mesmo sendo caçado pelos adversários.

Colocava a bola no seu pé como um ímã e arrancava feito um raio para o ataque, com suas passadas largas, cabeça erguida, dribles desconcertantes, cheios de malícia e verticalidade.”

 

 

“A Holanda de 1974, a Laranja Mecânica, era um sonho de time. Uma equipe avassaladora, que atacava sem parar, tomando os espaços dos rivais, roubando-lhes a bola, a pressionando a saída de bola e levando os adversários ao desespero. Pedro Rocha disse que os 20 primeiros minutos contra eles foi seu maior pesadelo. O sistema de jogo da Holanda era algo nunca visto e foi a única Seleção a vencer no mesmo mundial a Argentina, o Uruguai e o Brasil. E sem tomar gols.”

 

 

Um dos maiores atacantes de todos os tempos, o alemão Gerd Müller estava longe de ser um estilista – fazia gols simples. Baixinho – cerca de 1,65m – e gordinho, Müller parecia tudo, menos um centroavante. Pois essa máquina de fazer gols foi condecorada seis vezes em sua carreira com o troféu de melhor artilheiro da temporada.

Apenas pelo Bayer de Munique anotou 628 gols. Mesmo com o Brasil tendo o melhor time de todos os tempos em 1970, foi ele o artilheiro, com 10 gols. Em 1974 fez o gol da vitória alemã na final da Copa contra a Laranja Mecânica.

 

   

Duas histórias engraçadas envolvem o uruguaio Figueroa, um dos destaques da copa de 1974.

Em 1971 Figueroa foi contratado as pressas pelo presidente do Inter, pois estava para ser comprado por um empresário. Como não conseguiu garantia bancária para pagar o Peñarol, o Inter fez um empréstimo as pressas, e mandou todo o dinheiro (350 mil cruzeiros novos à época) em uma mala, com o diretor Heraldo Hermann. Era o tempo de repressão política e qualquer policial menos avisado poderia entender aquele dinheiro não declarado na alfândega poderia ter fins escusos, mas deu tudo certo e o Inter contratou Figueroa, que reinou no Inter até 1976, levando a ferro e fogo o lema que criou e que balizou sua carreira: “ A área é minha casa, aqui só entra quem eu quero”.

E tome cotovelos para defender a sua área. Em entrevista detalhou mais a sua prática: “Juiz não expulsa ninguém em 10 minutos de jogo. Por isso, aproveito e bato em todo centroavante que aparece. Só não bato no Dario porque ele não sente e no Pelé porque ele revida”.

Foi bicampeão brasileiro pelo Inter (1975 e 1976) e hexacampeão gaúcho, entre 1971 e 1976.

 

 

“A seleção brasileira de 1982 representava uma volta ao passado. Um time com dois volantes clássicos, que marcavam e atacavam (Cerezo e Falcão), dois meias que se completavam (Zico e Sócrates), um ponta-esquerda infernal, dono de um chute mortal (Éder), dois laterais no auge de suas carreiras (Leandro e Júnior) e uma zaga segura e clássica (Oscar e Luisinho).”



          “‘Se Zico jamais ganhou a Copa do mundo, azar da Copa do Mundo’, escreveu certa vez o inspirado jornalista Fernando Calazans.”

 

 

Paolo Rossi, carrasco do Brasil que fez os três gols na derrota brasileira para a Itália em 1982, foi suspenso em 1980 por três anos por participar do “Escândalo de Totocalcio”, um esquema de manipulação de resultados para a loteria esportiva.

Sua pena foi reduzida para dois anos e terminou em 29 de abril de 1982, pouco mais de um mês antes do Mundial. O técnico Enzo Bearzot o levou assim mesmo – o que trouxe as devidas consequências ao Brasil.

 

 

 Dino Zoff foi o maior goleiro da Itália e um dos maiores do mundo no século passado. É o recordista de jogos pela Seleção Italiana (112, com 55 vitórias, 36 empates e 21 derrotas), o recordista de jogos na Série A da Itália (570), o jogador mais velho a ser campeão mundial (tinha 40 anos quando a Itália ganhou a Copa de 1982) e é o goleiro que ficou mais tempo sem sofrer gol por uma seleção: foram 1.142 minutos, entre setembro de 1972 e junho de 1974.

 

 

Em 1986 Maradona jogou como nunca. Como poucos fizeram em um período curto como o da Copa. Deu passes preciosos, lutou pela bola, fez gols. Fez o maior de todos os gols em Copas.

 

 

“Romário havia sido cortado, por indisciplina, do Mundial de Juniores de 1985. Por isso, ficou fora da Copa de 1986. Em 1990 foi reserva de Careca e Müller. Em 1994, porém, foi a sua vez. Marcou um gol em cada um dos três primeiros jogos (contra Rússia, Camarões e Suécia), deu o passe para Bebeto marcar contra os Estados Unidos, fez mais um contra a Holanda e novamente a Suécia e, na final contra a Itália, fez mais um na decisão por pênaltis. Foi eleito o craque da Copa.”

 

 

“No meio de um mar de volantes do time italiano, assistir Roberto Baggio era um alento. Com seu físico frágil, seu jeito tranquilo e sendo um dos raros não católicos do time – é budista –, era a esperança maior de gols e sorte maior aos tifosi.

Com seus toques refinados, passes precisos, inteligência e talento para descobrir o atalho ao gol, cabia a ele o papel de trazer vitórias improváveis.”

 

 

Um volante com apelido de Dunga porque na infância tinha pernas curtas e se parecia com um dos anões da Branca de Neve. Na Copa de 1994 o capitão Dunga conseguiu 206 desarmes (praticamente 30 por jogo), cometeu apenas 12 faltas, sofreu outras sete, levou um cartão amarelo, deu 12 chutes a gol, deu assistência, converteu seu pênalti na  disputa contra a Itália e tornou-se o quarto brasileiro a levantar a Copa do Mundo como capitão da Seleção Brasileira.

 

 

De 1993 a 1997 a carreira de Ronaldo Fenômeno foi tão impressionante que muita gente o comparava a Pelé. Surgiu no Cruzeiro em 1993, fazendo 12 gols em 14 jogos do Brasileiro. Foi artilheiro da Supercopa, com 8 gols, e chegou a sua primeira Copa com 17 anos.

Foi para a Holanda, jogar pelo PSV Eindhoven, até 1996. Fez 55 gols em 56 jogos, sendo artilheiro do Campeonato holandês de 1995, com 30 gols. Foi para o Barcelona, onde marcou 47 gols em 49 jogos. E depois, para o Internazionale de Milão. Foi eleito o melhor do mundo em 1996 e 1997. Foi eleito o craque da Copa de 1998, e, só nestes torneios marcou 15 gols, sendo então o maior artilheiro de todas as Copas.

Sofreu ao longo da carreira com várias lesões, tendo quase que ter parado de jogar, mas se reergueu para ser artilheiro (com 8 gols) e campeão da Copa de 2002. Em 2006, muito fora de forma, foi escalado por Parreira e não teve bom desempenho.

 

 

“Poucos jogadores foram tão subestimados como Rivaldo. Um dos mais importantes jogadores dos últimos 20 anos, o pernambucano de passadas longas, chutes rasteiros venenosos e dribles desconcertantes sempre foi muito contestado, mesmo sendo ídolo do Palmeiras, Deportivo La Coruña e Barcelona. Tivesse feito um pouco mais de marketing na carreira e seria lembrado como um dos grandes da história, lugar onde está, ainda que alguns não concordem.”

 

 

O craque francês Zinedine Zidane nunca havia feito um gol de cabeça em toda a sua carreira, até a final da Copa de 1998 contra o Brasil – onde fez dois.

 

 

“Poucos volantes no mundo são tão eficientes como Andrea Pirlo. O camisa 21 do Milan é um dos jogadores mais versáteis do futebol. Consegue jogar como primeiro volante, segundo volante ou até meia, graças ao seu talento para dar lindos passes, lançamentos precisos. Não fosse suficiente, Pirlo é exímio cobrador de faltas perto da área, batendo sempre de curva com o pé direito.”

 

 

“Algumas coisas parecem sem explicação. Como pode um zagueiro viril, violento e de pouca técnica se tornar não apenas o personagem mais importante de uma final de Copa do Mundo, ao desestabilizar emocionalmente o grande nome do torneio, como ainda acabar como artilheiro de sua Seleção em um Mundial? Pergunte a Marco Materazzi.

Materazzi é um herói nacional e o que fez na final contra a França, arranjando a expulsão de Zidane, e marcando o gol de empate e ainda sendo um dos melhores em campo, parece roteiro de cinema.”

 

 

 

Por questões de espaço não pude me ater, mas ainda passaram deixando boas marcas pelo livro, dentre outros: o brasileiro Djalma Santos, os irmãos alemães Fritz e Ottmar Walter, o goleiro soviético Yashin, o “Aranha Negra”; o brasileiro Vavá, o inglês James Greaves, o argentino Mario Kempes, o brasileiro Falcão e o búlgaro Hristo Stoichkov.

 

 

P.S: O livro foi lançado pouco antes da copa de 2010, não cobrindo deste torneio em diante.