domingo, 25 de agosto de 2013

As terras ásperas, de Rachel de Queiroz

Editora: Record/Altaya

ISBN: 978-85-0115-908-3

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Com sensibilidade de mestra, a autora pinta cenas corriqueiras, como episódios vividos nas ruas do Rio, aborda temas do cotidiano, recortados do noticiário dos jornais, coleciona impressões de viagem ao exterior, expõe anotações sobre amigos, hábitos e costumes...



“Você, homem do século XX, não tem bem noção, no seu cotidiano, de quanto depende da proteção da ciência e da técnica. Não é um ser autônomo, capaz de prover as suas mais mínimas necessidades. É tão condicionado a máquinas quanto um rato de Pavlov às campainhas da gaiola. Toda a sua vida depende das máquinas – é incrível. Desde o relojinho de pilha, no pulso, até tudo o que o cerca dentro de casa – geladeira, filtro, fogão, lava-louças, lava roupas, condicionador de ar, batedeira, liquidificador, torradeira, forno, enceradeira, aspirador, telefone, TV, rádio, máquina de escrever, COMPUTADOR! Você não mexe um dedo sem máquinas. Você é mais robotizado que um robô.

Sempre que faço viagens aéreas, transcontinentais ou transatlânticas, dentro daquela segurança e daquele conforto do avião – o ar pressurizado, a comida quente, a bebida gelada, o banheiro completo, a música ambiente, o alto-falante informando sobre o tempo lá embaixo –, sim, dentro daquele casulo voador, de repente eu penso: Meu Deus, e bastará uma pequena falha nos motores, uma fratura na asa, um buraco na fuselagem, e tudo isso se desarticula (não viu no desastre do foguete Challenger, foram só uns rebites que afrouxaram), tudo se rompe, explode, nos expele para o ar frio a 40 graus abaixo de zero, para as águas do mar, para a floresta amazônica. Se morrer, tudo bem, acabou, pronto. Mas e se a gente escapa? Estaremos muito mais indefesos e vulneráveis do que o mais primitivo homem da Idade da Pedra. Não sabemos como arranjar abrigo, fazer fogo, não distinguimos os bichos e os frutos comestíveis. Não temos como nos defender das feras de terra ou de mar. Em alguns segundos, a gente passará das condições mais sofisticadas de civilização à condição bruta de um extraterreno, ignorante, incapaz, lançado num ambiente hostil e estranho.

Isso é bom para rebater o orgulho dos homens ante essas maquininhas que hoje são a razão da sua vida. Pensavam que eram deuses, que nada lhes era mais proibido? Pois neste seu paraíso de fios de arame e rodelinhas de latão, basta um pequeno descontrole de funcionamento para desmoronar tudo, acabar tudo. E se vão ver nus e inermes, num mundo inimigo, desconhecido, que eles deliberadamente ignoraram”.

 

 

“A ecologia é como o amor a pátria. Em seu nome, quanta barbaridade se comete.”

 

 

“O pior é que o castigo não ensina nada: enquanto se vive se erra, como sempre foi.”

 

 

“A velhice é o mais indesejável dos progressos. A gente é, de certa forma, como aquelas bonecas russas que contém várias bonecas, uma dentro da outra, e que se vai descartando até chegar à mais bonita, que é a menor. Só que, no processo de crescimento, a mudança é a inversa, vai-se do menor para o maior. Embora o modelo menor continue a ser, como nas bonecas, o mais bem acabado e o mais bonito.”

 

 

“Ah, os homens fazem de tudo para embelezar, amenizar, poetizar, sublimar a morte, criando os rituais solenes da partida. Mas em vão. Pois é o próprio morto que estraga suas pompas fúnebres. O morto não quer saber de exposição, nem esplendores, nem luzes, nem músicas, nem coroa de flores. O morto só precisa ser oculto, devolvido à terra, desfazer-se. O morto não espera por ninguém: ele parte sem adeus. Antes nos amava. Morto nos repele, nos ignora, não quer saber de lágrimas nem de amores. Ele é o grande indiferente, já partiu, de-fi-ni-ti-va-men-te.

Creio que é o que mais nos horroriza na morte: o definitivo daquele rompimento. Não há briga entre vivos que não possa ser remediada, ou pelo menos prolongada em nova briga. A morte corta como uma guilhotina. Aquele que se interessava até pelos teus pensamentos ocultos, por tua mínima palavra ou gesto, que segurava febrilmente a tua mão, no desespero de não se apartar, de repente te larga, te esquece, te corta, te desconhece. Como se ele nunca tivesse existido – como se você nunca tivesse existido para ele. Acabou, acabou tudo. O que os amantes rompidos jamais aceitam de verdade, a morte realiza num fechar de olhos, num suspiro leve, num parar de coração. Primeiro havia tudo. Um instante, e não haverá mais nada. Nem agora, nem amanhã, nem nunca, nem pelos séculos dos séculos.

É isso a morte. O não ser. O não estar. O não ver, o não querer. O não. Por toda a eternidade.”

 

 

“No caso dos gregos, os homens não são feitos à semelhança de Deus, mas os deuses é que são criados à semelhança dos homens, com todas as suas paixões e iniquidades.”

 

 

“O homem progride mas não muda.”

 

 

“Assim mesmo tenho medo daquele possível aventureiro com que dom João VI ameaçava o filho, e que nos vinha empolgar a coroa! Chego a temer até o ‘bispo’ Macedo! É que eu vi pela televisão o estrago que ele fez no congresso do Maracanã. O dinheiro lhe chovia em cima como mariposas, os acólitos só tinham o trabalho de encher os sacos enormes com a volante pecúnia que tombava das mãos dos fieis sobre a arena. E se o povão dá com tanto gosto a um cara daqueles o que ele menos tem, que é o dinheiro, imagine só como não dará voto, que é de graça!...

É isso, realmente, o que mais me apavora.”

 

 

“Os Napoleões, os Césares, os Alexandres, os Tarmelões, nenhum deles incitava os seus soldados com o brado verdadeiro das suas ambições pessoais. “Vamos matar, assaltar vizinhos inocentes, vamos ficar ricos à custa da miséria e do sangue dos mais fracos!”. Não, o discurso deles é sempre generoso e grandiloquente: “Vamos reparar aquela injustiça, esmagar quem nos ameaça, redimir um povo do erro ou da tirania em que se engolfa!”. Quando eles tocam os clarins e reúnem os exércitos, essa voz do clarim como que eleva os homens para a generosidade das paixões heroicas. E eles, os manipuladores das almas (e dos corpos!), sabem muito bem o efeito hipnótico da chamada ao heroísmo.”

 

 

“O homem, quer como indivíduo, quer como nação, não nasceu para a felicidade, mas apenas para a procura dela.”

 

 

“Pois que, mesmo aqui no Brasil, os aviões voam sempre lotados para Miami e Disneilândia; e a cada menino rico que viaja em férias correspondem pelo menos dez meninos de rua, pedindo trocado, roubando – quando podem – e cheirando cola.”

 

 

“Os profetas nunca são felizes. Primeiro, ninguém acredita neles; depois os culpam porque acertaram.”

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Esperando Godot - Samuel Beckett

Editora: Cosac Naify

ISBN: 978-85-7503-458-3

Tradutor: Fábio de Souza Andrade

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas: 240

Sinopse: Junto a uma árvore desfolhada, no meio de um descampado, dois vagabundos, maltrapilhos mas pontuais, atendem dia após dia ao chamado de um certo senhor Godot, que prima por não comparecer ao encontro supostamente marcado. Esta é a substância escassa de Esperando Godot obra-prima de Samuel Beckett (1906-1989), o dramaturgo, romancista e poeta irlandês agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1969. Escrita em francês, durante o pós-guerra, a peça estreou em Paris no ano de 1953, e logo se firmou como um divisor de águas no teatro do século XX, questionando toda a tradição dramática do Ocidente. Os recursos cênicos e narrativos aqui utilizados por Becket logram atingir uma dimensão mítica com meios que eram, na época, e até hoje, absolutamente inovadores: a disjunção do modelo retórico das falas, a profundidade trágica em personagens clownescos, a gestualidade dramática ganhando ares de coreografia, o abandono dos solilóquios em favor das exposições narrativas etc.

A espera e a angústia de Vladimir e Estragon repetem-se ao infinito. Contudo, embora não tenha sido construída segundo as linhas tradicionais, com exposição, desenvolvimento, peripécia e desenlace, a obra tem uma estrutura firme, baseada justamente na repetição, nos leitmotifs e no equilíbrio exato de elementos variáveis, como um recurso irônico para acentuar os contrastes.

A nova tradução de Fábio de Souza Andrade – professor de Teoria Literária da USP, autor da tese “Samuel Beckett: o silêncio possível”, e que já publicou, também na coleção Prosa do Mundo, a outra peça mais famosa de Beckett, Fim de partida – vem acompanhada de uma pequena fortuna crítica, reunindo fragmentos de ensaios, críticas e memórias escritos por alguns dos maiores especialistas na obra beckettiana. Esta edição conta ainda com uma significativa compilação de fotos das montagens mais importantes e/ou mais inovadoras, dos principais colaboradores de Beckett (como o diretor Roger Blin e o artista plástico Giacometti) e do próprio autor participando da direção dos espetáculos. Por fim, há sugestões de leitura, indicando textos obrigatórios para quem deseja se aprofundar no assunto, além de algumas das versões cinematográficas mais relevantes da peça.



“– Juntos, tivéssemos sido os primeiros em nos jogar da Torre Eiffel. Então, sim que o passávamos bem. Agora já é muito tarde. Nem sequer nos deixariam subir.”

 

 

“– Quanto mais gente encontro, mais feliz sou. Com a criatura mais insignificante alguém aprende enriquece-se, saboreia melhor sua felicidade.”

 

 

“– As lágrimas do mundo são imutáveis. Por cada um que começa a chorar, em outra parte há outro que cessa de fazê-lo. O mesmo se passa com a risada. Não falemos, pois, mal de nossos tempos; são piores que os passados. Claro que tampouco devemos falar bem. Não falemos.”

 

 

“– Bem é verdade que ficando de braços cruzados, pesando os prós e os contras, também fazemos honra a nossa condição. O tigre se precipita em auxílio de seus semelhantes sem pensá-lo. Ou refugia-se no mais espesso da selva. Mas a questão não é esta. – “O que fazemos aqui?”, é o que temos que nos perguntar. Temos a sorte de sabê-lo. Sim; em meio desta imensa confusão, uma só coisa está clara: esperamos que venha Godot.”

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Cartas do Front: relatos emocionantes da vida na guerra – Andrew Carrol (org.) (Parte I)

Editora: Zahar
ISBN: 978-85-378-0030-0
Tradução: Sérgio Lopes
Opinião★★★★☆
Páginas: 440
Sinopse: Cartas do front revela a dimensão humana da guerra. O livro de Andrew Carroll reúne correspondências de soldados e civis que participaram de vários conflitos na história mundial - das mensagens manuscritas da Guerra de Independência norte-americana aos e-mails enviados do Afeganistão. Emocionante, envolvente e dramático, o livro mostra que, na verdade, a guerra é uma sucessão de histórias particulares e anônimas. Ao longo de três anos, Carroll foi a diversos países, como Afeganistão, Iraque e Estados Unidos para pesquisar cartas e e-mails que nunca tivessem sido publicados. Cartas do front foi construído a partir dos depoimentos e do material recolhidos nestas viagens. Esta edição brasileira inclui um capítulo dedicado à correspondência dos pracinhas da FEB durante a Segunda Guerra Mundial. Soldados com saudade de casa, crianças temendo a morte nos campos de concentração e mulheres de militares sofrendo com a abstinência sexual emergem das páginas como personagens reais. Seus relatos emocionam, perturbam, fazem rir e chorar. O livro é dividido em capítulos temáticos e, além do horror e do desespero dos conflitos, apresenta casos marcados pelo amor, pela surpresa e pelo humor.



“Poucas horas antes de deixar Sarajevo, perguntei a Amir qual fora, para ele, o momento mais sombrio da guerra. Houve muitos, respondeu, mas o pior ocorreu durante o primeiro inverno do cerco à cidade. Sem eletricidade ou óleo combustível, os moradores morriam de frio em suas casas. Certa noite, o pai de Amir saiu para apanhar lenha, que começava a faltar em toda a cidade. (Até o final da guerra, praticamente todas as árvores de Sarajevo seriam cortadas. Alguns indivíduos, desesperados, apelaram para o artifício de desencavar túmulos e despedaçar caixões, simplesmente pela madeira.) Um soldado sérvio ou, mais provavelmente, um franco-atirador, avistou o pai de Amir e o baleou pelas costas. Os vizinhos conseguiram arrastá-lo para um carro e seguiram para um hospital. Antes do cerco, esse trajeto levaria somente alguns minutos. Por causa das barricadas que bloqueavam o caminho mais rápido até o hospital, no entanto, e devido ao perigo de transitar por certas localidades, viram-se obrigados a percorrer vagarosamente as ruas de Sarajevo. Apinhado de pacientes gravemente feridos, até mesmo o hospital estava às escuras. O pai de Amir sangrou até a morte, antes que um médico pudesse ao menos examinar seu ferimento.
Depois de ouvir essa, e com todas as outras histórias de atrocidades ainda frescas na memória, deixei escapar: “Meu Deus, você deve odiar os sérvios.”
“Não!”, respondeu Amir com firmeza. “Não e não. Já houve ódio demais. Estou cheio de tudo isso. Minha namorada é sérvia. Muitos sérvios em Sarajevo e em toda a Bósnia sofreram também. Muitas pessoas na Sérvia não sabiam o que estava acontecendo, pois Milosevic mentia para elas. Uma hora isso precisa acabar. Já houve o bastante. Tem que acabar.” Quando lhe perguntei como podia ter tamanha compaixão, ele respondeu: “Somente quem passou por isso pode realmente entender como é ruim.” Esse sentimento seria um dos temas recorrentes em minha viagem.
A primeira vez que o assunto me chamou a atenção foi durante minha visita a Volgogrado, apenas uma semana antes. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando ainda se chamava Stalingrado, a cidade foi o cenário daquela que é considerada uma das mais sangrentas batalhas de todos os tempos. Dezenas de milhares de civis foram mortos nas primeiras 36 horas de bombardeio alemão, que se iniciou em 23 de agosto de 1942. Doenças proliferavam à medida que os corpos apodreciam nas ruas e os cachorros se alimentavam dos cadáveres. As tropas de ambos os lados coagiam meninos e meninas a servirem como batedores e mensageiros, com a função precípua de entregar mensagens e encher os cantis dos soldados no rio Volga e ambos os lados executavam as crianças suspeitas de ajuda ao inimigo. “A questão filosófica de saber se a violência é, em algum momento, justificável, já me atormentou”, escreveu de Stalingrado, em 29 de agosto, o tenente russo Joseph Maranov à sua amada Lola. “Agora”, continuou ele, “meu sonho, meu objetivo é destruir, sufocar e despedaçar o inimigo.” Aproximadamente meio milhão de russos e meio milhão de soldados alemães e do eixo morreram em cinco meses de selvageria. “Você não pode compreender o ódio”, me disse um russo depois de perceber que eu estava lendo um livro sobre Stalingrado. “Em seu país, vocês vivenciaram os ataques de 11 de Setembro. Quantos morreram? Isso aqui era o 11 de Setembro todos os dias por quase 200 dias”.
Um guia local me levou para ver a sólida estátua da Mãe Rússia, que se encontra majestosamente no topo da mais alta montanha de Volgogrado e homenageia a resistência dos soldados e civis que defenderam a cidade. É 30 metros mais alta que a Estátua da Liberdade. A mão direita empunha uma espada, erguida em desafio, e a esquerda estende-se na direção de onde vieram as tropas do eixo. A centenas de metros dali, um memorial guarda uma chama que jamais se apaga, em homenagem àqueles que pereceram. Quando meu guia e eu entramos, ouvi uma música tranquila, mas um pouco melancólica.
“Qual é o compositor russo?”, perguntei.
Meu guia respondeu: “Na verdade é Schumann.”
Fiquei perplexo: Escolheram um compositor alemão para o Memorial de Stalingrado? Por que não optaram por um russo?”. O Guia explicou que, quando construíram o monumento, na década de 1960, decidiram mandar uma mensagem de reconciliação aos alemães que vêm prestar seus respeitos aos mortos.”

Memorial aos heróis Mortos na Batalha de Stalingrado
Os três soldados russos, sentados na base da estátua, são menores que os dedos do pé esquerdo da Mãe Rússia



“Os veteranos que ofereceram cartas tão reveladoras esperavam que elas pudessem ter um valor catártico para homens e mulheres que servem hoje nas Forças Armadas. Ninguém pode entender verdadeiramente a vida militar – as constantes pressões, a separação dos entes queridos, tanto a excitação quanto o terror de seguir para o combate, o choque devastador de perder um companheiro – como aqueles que já passaram por isso. Os mais antigos veteranos simpatizam profundamente com a atual geração de soldados e querem que saibam que há algum conforto em perceber que outros também suportaram as mesmas dificuldades.”


“O que mais me impressionou nas cartas foi a força das descrições. Na verdade, muito mais que tudo que já lera. “Deparei-me com um dos nossos rapazes – irreconhecível graças a decomposição”, escreveu o capelão canadense Willian Mayse à sua esposa durante a Primeira Guerra Mundial.
Ele jazia exatamente como caíra – a cabeça desaparecera –, mas todos os equipamentos estavam afivelados, seu rifle e capacete jaziam ao lado. Como recordação, cortei-lhe a fivela do cinto, e enterramos o que restara dele. Procurei algo que o pudesse identificar, mas foi em vão. Pobre rapaz, em algum lar distante no Canadá alguém esta chorando a perda do marido, filho ou namorado. O mais triste de tudo é que jamais saberão como morreu, ou onde foi enterrado, e, até mesmo agora, podem se apegar à esperança de que ainda esteja vivo...
Muitos dos que contribuíram com cartas expressaram sua frustração com o fato de a cultura popular frequentemente romantizar a guerra. Como demonstrado pelas próprias cartas, essa reclamação não é nova. “Afirmas que gostaria de estar aqui”, escreveu o major Oscar Mitchell a sua amiga Sylvia Helene Hairston, em 15 de abril de 1944. Mitchell estava servindo no cenário China-Burna-Índia da Segunda Guerra Mundial, e apressou-se em desencorajar Sylvia e qualquer um que desejasse idealizar a vida nas linhas de frente:
Embora a maioria das pessoas acredite saber o que é a guerra, será que sabe mesmo? – estando tão distante das frentes de batalha, será possível saber?
Só se sabe o que é a guerra quando se veem os aviões em formação no começo da manhã, voando em direção aos alvos... e se vê esta mesma formação voltando à noite. Mas o número já não é mais o mesmo! Doze partiram, nove voltaram. Fica-se ali, parado, olhando para o alto, observando-se afastarem-se, na direção do horizonte, e então desaparecer. O que de fato aconteceu? Aqueles que mergulharam em chamas... terão morrido como nos filmes? Creio que não. Não com um sorriso nos lábios e um brilho alegre nos olhos, mas talvez com a terrível e dolorosa consciência de que tudo chegava ao fim! É preciso ver a leva de feridos voltando da frente de batalha... acima de tudo, ver a luz se apagar nos olhos desses homens. Jovens tremendo devido à exaustão nervosa e chorando como bebês. São, ou foram, homens fortes, que não tiveram ou que jamais terão a chance de viver uma vida normal... As pessoas podem acreditar que sabem como é a guerra. Esse conhecimento é ilusório. Tenho um corpo despedaçado pela guerra, tomado de pavor até o fundo da alma. Quando estava nos EUA, a guerra era distante, irreal. Eu lia, via as fotos, mas agora eu sei.
Muitos daqueles que forneceram cartas descrevendo a dura realidade da guerra enfatizaram que não se consideram pacifistas. Acreditam que haja crueldade e brutalidade no mundo – tirania, genocídio, escravidão – e, se esses terríveis males não puderem ser derrotados por meios pacíficos, que seja usada a violência para destruí-los. Os veteranos de guerra que encontrei são, particularmente, patriotas arrebatados e orgulhosos de seu serviço militar, e suas cartas falam com grande convicção sobre a coragem dos companheiros mortos e a importância de honrar as liberdades pelas quais deram a vida.
O que abominam é a glorificação da guerra por si só. Acreditam que maquiar ou ocultar sua fealdade somente banaliza o sacrifício feito por homens e mulheres em serviço. Eles desejam que as pessoas compreendam o preço que ela cobra, não só de quem combate, mas também de seus familiares – e, em especial, daqueles que receberão um telefonema ou uma visita, informando-lhes da morte de seu ente querido. Os ferimentos que lhes são impostos são tão traumáticos e dolorosos quanto aqueles suportados nos campos de batalha, e permanecerão para o resto de suas vidas. Os choques emocionais decorrentes da guerra reverberam muito além da assinatura dos tratados de paz.
E enquanto muitos veteranos de guerra reconhecem o fascínio de partir para o combate e lembram perfeitamente o intoxicante arrebatamento que advém de se estar sob o fogo inimigo, também reconhecem que a euforia raramente se conserva. Marcado por exaustão, fome e infindáveis horas de marcha e espera, este prazer desaparece por completo ao ver um amigo baleado ou despedaçado e, mais tarde, despachado para casa em um caixão envolto em uma bandeira. Também os civis, em geral, compartilham um sentimento inicial de excitação quando do anúncio da guerra, e há uma inegável eletricidade e tensão no ar no começo de qualquer conflito. Novamente, os veteranos sabem que esse fervor desaparece com facilidade. Além disso, a suspeita de que o apoio em casa começa a esmorecer causa um efeito incapacitante sobre o moral da tropa.
O que enfatizam, acima de tudo, é que uma declaração de guerra é a mais importante decisão que pode ser tomada por uma sociedade – e, quando o fizer, deve estar preparada para as consequências. O que a guerra exige daqueles que servem nas Forças Armadas, bem como o sofrimento que inflige aos que não se alistam, é frequentemente muito pior do que possa imaginar quem não a vivenciou na própria carne.”


“Tua pátria precisa de ti. Teus quatro irmãos morreram para defendê-la. Se não vieres, não mais o considero meu filho. Não admitirei covardes na família.”
Uma mãe francesa de St. Pierre, escrevendo ao filho em novembro de 1914.


“Para ex-prisioneiros de guerra que estão prestes a se reencontrar com suas esposas ou noivas, saber que suas amadas permaneceram fieis a eles, às vezes por anos a fio, apenas aumentava o sentimento de felicidade. Era justamente a perspectiva desses reencontros que dava a muitos prisioneiros a força necessária para suportar a provação física e mental, à qual muitas vezes parecia impossível sobreviver. Homer James Colman, um soldado norte-americano de Salt Lake City, Utah, servindo no 57º Regimento de Infantaria, passou quase três anos como prisioneiro de guerra depois que as tropas norte-americanas entregaram as Filipinas aos japoneses em maio de 1942. Depois de cinco meses de combate brutal, Colman e 10 mil outros prisioneiros aliados foram obrigados a participar da infame Marcha da Morte de Bataan, uma caminhada de 100 quilômetros sob o calor tropical, sem comida, água ou remédios, o que se provou fatal para muitos soldados já doentes e famintos. Antes de embarcar para o Pacífico, em maio de 1941, Colman ficara noivo de Mary Parkman, uma jovem de Columbus, Geórgia. Eles só voltaram a se ver na primavera de 1945. A salvo e de volta aos EUA, Colman, que convalescia no Hospital Militar Walter Reed em Bethesda, Maryland (ele perdera quase metade de seu peso enquanto estivera prisioneiro), enviou à sua noiva a seguinte carta reafirmando a ela seu amor e sua devoção:
Minha querida Mary,
Levarei mais ou menos um dia para terminar esta carta que te escrevo. Provavelmente, será a última carta que escreverei a Mary Parkman. Embora ela jamais deixe de ser minha namorada, a próxima vez que eu escrever, a destinatária será Mary Colman, minha mulher. Adeus, Mary Parkman. Foste a mais fiel e adorável namorada, que, ao longo de tanto tempo, esperou sozinha, por horas, semanas e anos de incerteza por um soldado que a deixou com lágrimas nos olhos. Foste uma das milhares de bravas mulheres que fizeram o mesmo nestes últimos quatro terríveis anos e que, a menos que a população mundial mude sua natureza da noite para o dia, continuarão vendo seus homens partirem para lutar uns contra os outros.
Mas eu tive sorte e tinha tuas preces para me trazer de volta para casa.
Eu poderia passar o resto de minha vida a dizer-te o quanto significavas para mim, durante aquelas longas noites de espera, e, no entanto, jamais seria capaz de descrever esse quadro com exatidão; as noites e os dias em que tu eras minha única razão para viver e por quem voltar, e o preciso momento em que percebi, em São Francisco, que poderia voltar a falar contigo de verdade. Então veio a percepção que eu a veria em breve, não em um ou dois anos, mas em poucas e curtas semanas, quando te teria em meus braços e te beijaria, e sentiria o perfume de teus cabelos, e tudo o que és estaria ali. Esses sentimentos que antes foram meus sonhos mais agradáveis agora são realidade.
E meu coração esta repleto de gratidão, não por ter regressado, mas por ter, ao voltar, te encontrado à minha espera. Só isso compensa milhares de vezes tudo o que por ventura te ofereci.
Pois todo o meu coração e todo o meu amor são teus, foram e continuarão a ser enquanto nós dois vivermos. Deus me dê a força e o poder para te fazer feliz.
E seu eu for capaz de te trazer a paz e a felicidade que quero que tenhas, então também serei feliz, pois não mais seremos apenas Mary Parkman e Jim Colman – duas pessoas distintas. Pois tu serás eu, e eu serei tu, e haverá apenas um onde antes haviam dois.
Então, nesta última carta à minha noiva, como estará em toda e qualquer carta à minha esposa, veja e encontre todo o amor que há aqui para ti. E talvez possas ver em alguma parte a vida a dois que será a tua e a minha e a de nossos filhos. Uma vida que será cheia de ternura, compreensão e amor, e desse particular pedaço de felicidade pelo qual nós dois lutamos tanto tempo para possuir.
Boa noite, querida.
Para sempre, teu
Jim
Uma semana depois os dois se casaram na capela do hospital Walter Reed.


“Os pais são aqueles a quem mais frequentemente os soldados confidenciam a vívida violência da guerra ou a severidade de sua própria situação, e, em geral, o fazem com a seguinte recomendação: “Não conte a mamãe.” Em momentos em que temem demonstrar fraqueza a seus pais, no entanto, ou em que retornam a um estado quase infantil de vulnerabilidade, ou em momentos de grande estresse emocional, geralmente quando estão em perigo, os combatentes despejam seus sentimentos no papel e apelam para suas mães em busca de carinho e consolo. (Sabe-se que os soldados gravemente feridos nos campos de batalha gritam por suas mães nos momentos de lucidez. É um som que muitos veteranos relembram como uma das mais torturantes memórias auditivas da guerra.) Durante a Segunda Guerra Mundial, o soldado italiano Fiorigi A. Contro empreendeu uma fuga durante a esmagadora derrota dos exércitos alemão e italiano em El Alamein, no Egito, imposta pelo VIII Exército do general britânico Bernard Montgomery. Das quase 70 mil baixas de ambos os lados, nessa que foi a principal batalha de 1942, mais de 50 mil eram alemães e italianos, e Contro chegou muito perto de ser um deles. Longe do perigo, escreveu a seguinte carta à sua mãe, descrevendo a aterradora retirada.
À minha mãe,
A senhora não sabe quantas dificuldades encontrei em minha vida; não lhe contarei aquelas de que não sabe, para não deixá-la ainda mais triste, mas uma memória entre tantas permanece mais forte.
Era uma sombria noite de abril, domingo de Ramos. Depois de um susto rápido e inesperado causado por um grupo de caças inimigos que se aproximava, tentamos decolar de um aeroporto improvisado. Conseguimos, mas, dez minutos depois, todo um esquadrão de Junkers surgiu voando em formação pouco acima da superfície da água, para que não fossem detectados pelo radar. Fomos atacados de frente pelos aviões, que eram mais ágeis e bem armados do que nós, e num instante ficamos completamente estupefatos, e começamos a cair, um a um, irremediavelmente no golfo.
Senti balas arranharem minhas costas quatro vezes. Nosso avião foi atingido várias vezes: no motor, neste momento em chamas, no nariz e na cauda.
Um soldado na minha frente transformou-se em meu escudo e ficou banhado em sangue. O piloto que dera a ordem para saltar do avião tinha os intestinos à mostra.
O avião, com seus 18 homens mortos ou feridos a bordo, pegava fogo e perdia altitude, e a única escolha que tínhamos era pular sem paraquedas, apenas com um colete salva-vidas.
Fui o primeiro a chegar à porta e, enquanto hesitava a respeito do que fazer, senti um forte empurrão em minhas costas, que me lançou no ar. Caí na água nas proximidades do cabo Bon.
Estava aterrorizado pelo enorme perigo que enfrentava e ainda sob o fogo das metralhadoras. Lutei desesperadamente para alcançar a praia, que não parecia distante.
Quando consegui cuspir toda a água que havia engolido e recuperar o fôlego, chamei dois nomes: “Deus!” e “Mamãe!”. Nunca havia passado por tal situação.
Mas, então, eu estava exausto e não tinha mais forças. Naquele momento, outro avião foi abatido e despencou com o nariz pra baixo. Ouvi um assobio ensurdecedor perto de mim... Fechei os olhos e pensei que iria morrer. Entreguei-me ao que quer que fosse que Deus houvesse reservado para mim.
Mas ainda não era minha hora, e aquela carcaça em chamas caiu tão perto de mim que uma onda gigantesca me empurrou para a terra, como se eu fosse um pedaço de cortiça. Busquei abrigo em uma espécie de caverna, e ali permaneci, quase morto e exausto, ouvindo o terrível som da infindável metralhadora dos aviões.
A guarda costeira me encontrou em péssimas condições físicas. Mais tarde, recuperei-me e acordei com os olhos cheios de lágrimas, como se acordasse de um pesadelo. Descrevi minha longa odisseia à curiosa plateia a meu redor, que ficou impressionada com o que acontecera.
Mas, na verdade, eu queria ficar em paz para que pudesse passar novamente em minha cabeça o filme da memória, no qual a senhora, minha querida e boa mãe, era a personagem principal.
A senhora lembra que, quando eu era pequeno, havia um grande tanque atrás de nossa casa de campo, que usávamos para dar água ao rebanho da vizinhança? Eu ainda usava fraldas, era um belo dia de primavera, e fui ao tanque para pegar umas pequenas flores amarelas. Aproximei-me e me estiquei todo... perdi o equilíbrio e caí na água. Gritei e a senhora veio correndo, minha mãe zelosa e gentil, e carregou-me para dentro de casa e me enxugou perto da lareira. Mudou minha roupinha e prometi que permaneceria por perto.
Mas minhas palavras e minhas promessas foram inúteis porque assim que a senhora virou as costas corri para o tanque e caí outra vez. E novamente a senhora veio correndo, e, gentilmente explicou-me por que eu precisava ter mais cuidado e me repreendeu um pouco, então pediu-me que tomasse conta das galinhas. Uma delas correu para o tanque e vi aquelas lindas flores que havia achado tão encantadoras; então, agarrado a um galho, estiquei minha mão, mas o galho partiu-se, e caí de novo na água.
Outra vez a senhora me recolheu com muita paciência, e decidiu levar-me para a cama onde caí no sono, sonhando com aquelas flores.
Quando acordei, minha caminha estava coberta de flores amarelas; quem as pegara para mim? “Papai”, a senhora disse.
A vida dá realmente muitas voltas.
Quando acordei na terra desconhecida depois de cair no mar, não tive o doce conforto de flores, havia apenas a triste realidade.
Quando eu era um garotinho, não tive medo, e enquanto eu hesitava na porta da fuselagem, quando somente um empurrão de um companheiro me deu coragem para confrontar o perigo, eu não poderia contar com sua ajuda porque a senhora não estava fisicamente aqui para me tranquilizar. Mas sei que foi a sua mão que me salvou daquele desastre. Suas preces diárias e sua presença confiante e sagrada estão sempre comigo, erguendo-me onde quer que eu esteja. Nossas almas se comunicam! A força do zelo materno se expande muito, muito além de tudo.
Então essa memória, que jamais esquecerei, é para a senhora. À senhora dedico toda minha afeição e amor, todo o meu cuidado, acima de todas as coisas.
Fiorigi A. Contro
Em Capua, próximo a Nápoles, 7 de maio de 1943.


“Sem dúvida, deves ter pensado que me esqueci completamente de ti. Se tais pensamentos ocuparam tua cabeça, espero que me perdoes, pois estive muito mal. Ainda agora tenho tremores nas mãos. Empreendi fugas maravilhosas. Fui ferido na perna por estilhaços de bombas, mas eram apenas feridas na carne. Algumas vezes, o impacto me arrancava o capacete e logo eu apalpava a cabeça em busca de sangue, porém o mais próximo disso que cheguei foi quando uma bala atingiu meu rosto e cobriu de sangue a túnica, e outra bala arrancou-me todo o cabelo da sobrancelha deixando apenas um pequeno arranhão. Como é estranho ver sangue, nosso próprio sangue, quando você esta bem no meio de tudo isso. É claro que me envolvi em algumas dificuldades e agradeço a Deus por estar vivo para contá-las. Por vezes, foi simplesmente aterrador. Que estranho modo de vida este de estar entre bombas e balas, noites e dias sem dormir. Eu costumava passar mal diante da funesta visão de corpos caídos ao redor, com uma cabeça a rolar sem corpo, pernas e braços por toda parte, muitas vezes tomei nossos próprios mortos como escudo. Quando os turcos tentavam me acertar, a bala se chocava com o corpo à minha frente: Oh, Gill, isto é o inferno na Terra. Talvez o inferno possa ser ainda pior, mas, na verdade, não acredito que o seja.
Frederick C. Trenne, um soldado neozelandês, escreveu em 12 de janeiro de 1916 a seu amigo G. Harry Gillespie sobre o combate em Galípoli.


“Balas, bombas e baionetas foram responsáveis pela maior parte das fatalidades da Primeira Guerra Mundial, mas as armas tecnologicamente “avançadas” eram particularmente temidas por um vasto contingente de tropas que jamais vira ou escutara falar de tais engenhocas antes. “Essa guerra é terrível”, escreveu o soldado gurca Shed Karn Das à Índia, sua terra natal. “Não há lugar onde um homem possa estar em segurança na terra nem debaixo da terra, no ar nem no mar. É isso a verdadeira guerra? ... Por tudo isso, seria possível julgar que Deus esta descontente com os povos do mundo”.”


Após uma visita à frente ocidental, o artista britânico Paul Nash promete à sua esposa que representará em suas telas a “amarga verdade” da guerra.
A ofensiva de Passchendaele, comandada por sir Douglas Haig, foi um demorado banho de sangue em meio a um grande lamaçal, no qual combateram soldados exaustos que, ao final, pouco conquistaram. As forças aliadas tomaram vários quilômetros de território estrategicamente insignificante ao custo de 310 mil baixas. (Para os alemães, a conta fechou em torno de 260 mil.) Embora não tenha participado dos combates, Paul Nash, um artista de 28 anos, esteve em Passchendaele; Nash se alistara em 1914, mas retornara à Inglaterra devido à um acidente não relacionado aos combates. Tornou-se então, um artista oficial da guerra e, após se recuperar e fazer inúmeros apelos para voltar à ação sem demora, foi enviado a frente ocidental. “Meu amor”, começa Nash na carta endereçada à esposa, após sua chegada a Ypres. “Nesta tarde, subirei as linhas até um dos QGs da brigada, de onde, por uma ou duas noites, poderei ver coisas maravilhosas.” Nash, que esperava ansiosamente assistir a uma batalha com toda a sua fúria dramática, defrontou-se, porém, com um espetáculo inimaginável de desespero e aniquilação. Funcionários do Governo encorajaram Nash e outros companheiros a criar uma arte motivadora e patriótica. Devastado pela visão quase apocalíptica que tivera, no entanto, Nash enfatizou que sua obra seria um testemunho da barbárie da guerra, independentemente do que os burocratas desejavam ou solicitavam. Escreveu ele à esposa:
Retornei na noite passada de uma visita ao QG da brigada no alto das linhas e, não importa quanto viva, jamais esquecerei essa experiência. Assisti ao mais aterrorizante pesadelo que parece ter saído da imaginação de Dante ou Poe, inexprimível, completamente indescritível. Os 15 desenhos que fiz talvez lhe deem uma vaga ideia dos horrores, mas é preciso estar presente para compreender sua terrível natureza e o que os homens na França têm de enfrentar.
Todos temos uma vaga ideia dos horrores de uma batalha e podemos evocar, com a ajuda de alguns dos mais inspirados correspondentes de guerra e nos retratos do Daily Mirror, a visão de um campo de batalha, no entanto nenhum desenho pode expressar o que acontece neste país – o cenário ordinário de batalhas que se desenrolam por dias e noites, mês após mês. Somente o mal e o demônio encarnado podem ser os cicerones desta guerra; não se percebe nenhum vislumbre da mão de Deus. O poente e o nascente são blasfemos, escarnecem do homem; apenas a chuva negra vinda das nuvens sufocantes e intumescidas, através da amarga escuridão da noite, é uma atmosfera condizente com um país igual a este. A chuva continua; a lama fétida torna-se mais diabolicamente amarela, as crateras de bombas repletas de água branca e esverdeada, as estradas e os atalhos estão cobertos por uma camada de lama, as negras árvores agonizantes transpiram e as bombas jamais deixam de cair.
Elas voam e despedaçam à nossa frente, arrancando os troncos apodrecidos das árvores,  despedaçando as sinalizações das estradas, abatendo cavalos e mulas; aniquilando, mutilando, enlouquecendo; mergulham na cova que é esta terra; um grande túmulo, e fazem o cômputo dos infelizes que morreram. Oh, é inominável, ímpio, desesperador. Não sou mais um artista interessado e curioso, sou um mensageiro que dará voz a homens que lutam contra aqueles que desejam perpetuar a guerra. Frágil e inarticulada será minha mensagem, mas representará uma amarga verdade, que talvez faça arder suas almas abomináveis.
Nenhuma carta até agora chegou, espero que eles as enviem. Sê gentil com teu amor e não o repreenda por escrever tão pouco, para ninguém mais ele escreveu até o momento. Em um ou dois dias, ele terá mais a dizer e não será tão sombrio. Desejo ouvir tudo a respeito da minha querida. Conte-me se mandou ao John minhas lembranças.
Por enquanto, adieu, minha querida.
Com um longo beijo, daqueles que só nós sabemos dar, de teu mais apaixonado e entusiasta amor.
Paul”