segunda-feira, 29 de julho de 2013

Cadernos do cárcere (Volume 1) – Antonio Gramsci

Editora: Civilização brasileira
ISBN: 978-85-2000-511-8
Tradutor: Carlos Nelson Coutinho
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 496
Sinopse: Escritos por Gramsci no longo período em que esteve preso nos porões da ditadura fascista italiana, os Cadernos do Cárcere constituem uma das obras mais importantes da teoria política deste século pois, entre outras coisas, são a fonte de conceitos e expressões que se integrariam ao nosso vocabulário cotidiano como “intelectual orgânico”, “hegemonia”, “sociedade civil” e outros.



“O materialismo histórico, compreendido corretamente, não é um mero economicismo, mas é sim uma dialética real, que compreende a história superando-a com a ação, e que não separa história e filosofia, mas – colocando os homens sobre seus pés – faz destes os artífices conscientes da história, e não os joguetes da fatalidade, na medida em que os seus princípios, isto é, os seus ideais, centelhas que brotam das lutas sociais, são precisamente estímulos à práxis que, mediante a sua ação, se subverte.”


“Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecânico, tenha sido um “aroma” ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo dos narcóticos), tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter “subalterno” de determinados estratos sociais. Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu estou momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim a longo prazo, etc.” A vontade real se disfarça em um ato de fé, numa certa racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência, etc., próprias das religiões confessionais. Deve-se insistir sobre o fato de que, também nesse caso, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma intervenção direta sobre a “força das coisas”, mas de uma maneira implícita, velada, que se envergonha de si mesma; portanto, a consciência é contraditória, carece de unidade crítica, etc. Mas, quando o “subalterno” se torna dirigente e responsável pela atividade econômica de massa, o mecanicismo revela-se num certo ponto como um perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o modo de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo social de ser. Os limites e o domínio da “força das coisas” se restringiram. Por quê? Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não o é mais: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era “resistente” a uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é mais resistente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor . Mas, mesmo ontem, será que ele era apenas simples “resistência”, simples “coisa”, simples “irresponsabilidade”? Não, por certo; deve-se, aliás, sublinhar que o fatalismo é apenas a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real. É por isso que se torna necessário demonstrar sempre a futilidade do determinismo mecânico, o qual, explicável como filosofia ingênua da massa e, somente enquanto tal, elemento intrínseco de força, torna-se causa de passividade, de imbecil autossuficiência, quando é elevado a filosofia reflexiva e coerente por parte dos intelectuais; e isto sem esperar que o subalterno torne-se dirigente e responsável. Uma parte da massa, ainda que subalterna, é sempre dirigente e responsável, e a filosofia da parte precede sempre a filosofia do todo, não só como antecipação teórica, mas também como necessidade atual.”


“Coloca-se a questão: não seria necessário, ao contrário, referir-se apenas aos grandes intelectuais adversários, deixando de lado os secundários, os repetidores de frases feitas? Tem-se a impressão, precisamente, de que se pretende combater apenas contra os mais débeis e, até mesmo, contra as posições mais débeis (ou mais inadequadamente sustentadas pelos mais débeis), a fim de obter fáceis vitórias verbais (já que é impossível falar de vitórias reais). Cria-se a ilusão de que existe uma semelhança qualquer (que não formal e metafórica) entre uma frente ideológica e uma frente político-militar. Na luta política e militar, pode ser conveniente a tática de penetrar nos pontos de menor resistência para ganhar condições de investir sobre o ponto mais forte com o máximo de forças, colocadas à disposição precisamente por causa da eliminação dos auxiliares mais débeis, etc. As vitórias políticas e militares, dentro de certos limites, têm um valor permanente e universal, podendo o fim estratégico ser alcançado de uma maneira decisiva com efeitos gerais para todos. Na frente ideológica, ao contrário, a derrota dos auxiliares e dos seguidores menores tem uma importância quase insignificante; nela, é preciso lutar contra os mais eminentes. Se não for assim, confunde-se o jornal com o livro, a pequena polêmica cotidiana com o trabalho científico; os menores devem ser abandonados à casuística infinita da polêmica jornalística.”
Uma nova ciência alcança a prova da sua eficiência e fecunda vitalidade quando demonstra saber enfrentar os grandes campeões das tendências opostas, quando resolve com os próprios instrumentos as questões vitais colocadas por estas tendências ou quando demonstra peremptoriamente que tais questões são falsos problemas.
É verdade que uma época histórica e uma determinada sociedade são representadas sobretudo pela média dos intelectuais e, consequentemente, pelos medíocres; mas a ideologia difusa, de massa, deve ser diferenciada das obras científicas, das grandes sínteses filosóficas, que são, ademais, as suas verdadeiras culminações, as quais devem ser nitidamente superadas, ou negativamente, demonstrando-lhes a falta de fundamento, ou positivamente, contrapondo-lhes sínteses filosóficas de maior importância e significação. Lendo o Ensaio Popular de Bukharin, temos a impressão de alguém que não pode dormir por causa da claridade da lua e que se esforça por matar a maior quantidade possível de vaga-lumes, convencido de que assim a claridade diminuirá ou desaparecerá.”


“A filosofia da práxis “basta a si mesma”, contendo em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e integral concepção do mundo, não só uma total filosofia e teoria das ciências naturais, mas também os elementos para fazer viva uma integral organização prática da sociedade, isto é, para tornar-se uma civilização total e integral.”


“No prefácio de O Capital, está dito: “Na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção, que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social... Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até aqui. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela... Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência”.”


“A superstição científica traz consigo ilusões tão ridículas e concepções tão infantis que a própria superstição religiosa termina enobrecida. O progresso científico fez nascer a crença e a espera em um novo Messias, que realizará nesta terra o Eldorado; as forças da natureza, sem nenhuma intervenção do esforço humano, mas através de mecanismos cada vez mais perfeitos, darão em abundância à sociedade todo o necessário para satisfazer seus carecimentos e viver com fartura. Contra este fanatismo, cujos perigos são evidentes (a supersticiosa fé abstrata na força taumatúrgica do homem conduz paradoxalmente à esterilização das próprias bases desta força e à destruição de todo amor pelo trabalho concreto e necessário, em troca de fantasias, como se se tivesse fumado uma nova espécie de ópio), é necessário combater com vários meios, dos quais o mais importante deveria ser um melhor conhecimento das noções científicas essenciais, divulgando a ciência através de cientistas e de estudiosos sérios e não mais de jornalistas oniscientes e de autodidatas presunçosos. Na realidade, por se esperar muito da ciência, ela é concebida como uma bruxaria superior e, por isso, torna-se impossível valorizar com realismo o que a ciência oferece de concreto.”


“Mas não podem impedir, nem o devem, que cada geração use a linguagem que melhor se adapte ao seu modo de pensar e de compreender o mundo.”


“De Man tem a pedante pretensão de trazer à luz e ao primeiro plano os chamados “valores psicológicos e éticos” do movimento operário; mas pode significar isso, como pretende De Man, uma refutação peremptória e radical da filosofia da práxis? Isso seria como afirmar que o fato de deixar claro que a grande maioria dos homens ainda se encontra na fase ptolomaica signifique refutar as doutrinas de Copérnico, ou que o folclore deva substituir a ciência. A filosofia da práxis sustenta que os homens adquirem consciência de sua posição social no terreno das ideologias; ela excluiu o povo, por acaso, deste modo de tomar consciência de si? É uma observação óbvia, contudo, a de que o mundo das ideologias é (em seu conjunto) mais atrasado do que as relações técnicas de produção: um negro recém-chegado da África pode se tornar um trabalhador de Ford, mesmo mantendo-se por muito tempo um fetichista e mesmo permanecendo persuadido de que a antropofagia é uma maneira de alimentação normal e justificada. De Man, feita uma investigação a respeito, que conclusões poderia extrair deste fato? Que a filosofia da práxis deva estudar objetivamente o que os homens pensam de si mesmos e dos outros é indubitável; mas isto implica aceitar passivamente, como eterno, este modo de pensar? Não seria isto uma manifestação do pior dos mecanicismos e fatalismos? A tarefa de toda iniciativa histórica é modificar as fases culturais precedentes, tornar a cultura homogênea, em um nível superior ao precedente, etc. Na realidade, a filosofia da práxis trabalhou sempre naquele terreno que De Man acredita ter descoberto, mas trabalhou buscando inová-lo, não conservá-lo passivamente. A “descoberta” de De Man é um lugar-comum; e sua refutação, uma ruminação pouco saborosa.”


“O elemento popular “sente”, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende e, menos ainda, “sente”. Os dois extremos são, portanto, por um lado, o pedantismo e o filisteísmo, e, por outro, a paixão cega e o sectarismo. Não que o pedante não possa ser apaixonado, ao contrário; o pedantismo apaixonado é tão ridículo e perigoso quanto o sectarismo e a mais desenfreada demagogia. O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história, com uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada, com o “saber”; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência deste nexo, as relações do intelectual com o povo-nação são, ou se reduzem, a relações de natureza puramente burocrática e formal; os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio (o chamado centralismo orgânico). Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas vivida), só então a relação é de representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realiza-se a vida do conjunto, a única que é força social; cria-se o “bloco histórico”.”


“A afirmação de Hegel de que na história todo fato se repete duas vezes; correção de Marx, segundo a qual na primeira vez o fato se verifica como tragédia, na segunda como farsa. Este conceito já fora delineado por Marx na Contribuição à crítica da filosofia do direito: “Os deuses da Grécia, já tragicamente feridos de morte no Prometeu acorrentado de Ésquilo, tiveram de morrer novamente de forma cômica nos diálogos de Luciano. Por que essa marcha da história? Para que a humanidade possa alegremente separar-se do seu passado. Este alegre destino histórico é o que reivindicamos para os poderes políticos da Alemanha”.


“A objeção de senso comum que pode ser feita ao ceticismo é esta: que, para ser coerente consigo mesmo, o cético não deveria fazer mais do que viver como um vegetal, sem se misturar aos assuntos da vida comum. Se o cético intervém na discussão, isso significa que acredita que pode convencer, ou seja, não é mais cético, pois representa uma determinada opinião positiva, que frequentemente é má e só pode triunfar na medida em que convence a comunidade de que as outras são ainda piores, já que são inúteis.”


“Não se leva suficientemente em conta que muitos atos políticos são motivados por necessidades internas de caráter organizativo, isto é, ligados à necessidade de dar coerência a um partido, a um grupo, a uma sociedade. Isto é evidente, por exemplo, na história da Igreja Católica. Se alguém pretendesse encontrar, para todas as lutas ideológicas no interior da Igreja, a explicação imediata, primária, na estrutura, estaria perdido: muitos romances político-econômicos foram escritos por esta razão. É evidente, ao contrário, que a maior parte destas discussões são ligadas a necessidades sectárias, de organização. Na discussão entre Roma e Bizâncio sobre o estatuto do Espírito Santo, seria ridículo buscar na estrutura da Europa Oriental a afirmação de que o Espírito Santo procede apenas do Pai, e, na do Ocidente, a afirmação de que ele procede do Pai e do Filho. As duas Igrejas, cuja existência e cujo conflito estão na dependência da estrutura e de toda a história, colocaram questões que são princípio de distinção e de coesão interna para cada uma, mas poderia ter ocorrido que cada uma delas tivesse afirmado precisamente o que a outra afirmou: o princípio de distinção e de conflito teria se mantido idêntico e este problema da distinção e do conflito é que constitui o problema histórico, não a casual bandeira de cada uma das partes.”


“A estrutura e as superestruturas formam um “bloco histórico”, isto é, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção.”


“Deve-se observar que, com muita frequência, o otimismo não é mais do que um modo de defender a própria preguiça, as próprias irresponsabilidades, a vontade de não fazer nada. É também uma forma de fatalismo e de mecanicismo. A pessoa conta com fatores alheios à própria vontade e operosidade, exalta-os, incendeia-se aparentemente num sagrado entusiasmo. E o entusiasmo não é mais do que adoração exterior dos fetiches. Reação necessária, que deve ter como ponto de partida a inteligência. O único entusiasmo justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a operosidade inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a realidade existente.”


“O freudianismo é mais uma “ciência” a ser aplicada às classes superiores, e se poderia dizer que o “inconsciente” só começa depois de algumas dezenas de milhares de liras de renda.”


“Durante a guerra o Papa era o chefe dos bispos que benziam as armas dos alemães e dos austríacos, e dos bispos que benziam as armas dos italianos e dos franceses, sem que nisto houvesse contradição.”


“A religião é uma concepção da realidade com uma moral conforme a esta concepção, apresentada em forma mitológica.” (Croce)


“Interessa bem pouco à propriedade o trabalho socialmente necessário, mesmo para as finalidades da própria construção científica; o que interessa é o trabalho particular, nas condições determinadas por um dado aparato técnico e por um dado mercado imediato de víveres, bem como por um dado ambiente imediato ideológico e político, pelo que, quando alguém quiser fundar uma empresa, tentará identificar essas condições mais adequadas à finalidade do lucro máximo “particular” e não raciocinará por “médias” socialmente necessárias. Mas, quando o próprio trabalho se tornar gestor da economia, também ele deverá, por causa dessa mudança fundamental de posição, preocupar-se com as utilidades particulares e com as comparações entre essas utilidades, com o objetivo de extrair delas iniciativas de movimento progressista.”


“Quando é possível falar de um início para a ciência econômica? Pode-se falar desse início desde quando se fez a descoberta de que a riqueza não consiste no ouro (e, portanto, ainda menos na posse do ouro), mas sim no trabalho.”


“Um preconceito típico de intelectuais é o de medir os movimentos históricos e políticos com o metro do intelectualismo, da originalidade, da “genialidade”, ou seja, da completa expressão literária e das grandes personalidades brilhantes, e não, ao contrário, com o metro da necessidade histórica e da arte política, isto é, da capacidade concreta e atual de adequar o meio ao fim.”


“O homem, neste sentido, é vontade concreta, isto é, aplicação efetiva do querer abstrato ou do impulso vital aos meios concretos que realizam esta vontade. Cria-se a própria personalidade: 1) dando uma direção determinada e concreta (“racional”) ao próprio impulso vital ou vontade; 2) identificando os meios que tornam esta vontade concreta e determinada e não arbitrária; 3) contribuindo para modificar o conjunto das condições concretas que realizam esta vontade, na medida de suas próprias forças e da maneira mais frutífera. O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa. Transformar o mundo exterior, as relações gerais, significa fortalecer a si mesmo, desenvolver a si mesmo. É uma ilusão e um erro supor que o “melhoramento” ético seja puramente individual: a síntese dos elementos constitutivos da individualidade é “individual”, mas ela não se realiza e desenvolve sem uma atividade para fora, transformadora das relações externas, desde aquelas com a natureza e com os outros homens em vários níveis, nos diversos círculos em que se vive, até a relação máxima, que abarca todo o gênero humano. Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente “político”, já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os outros homens realiza a sua “humanidade”, a sua “natureza humana”.”


“Se se observa bem, deve-se chegar à conclusão de que o ideal de todo elemento da classe dirigente é o de criar as condições nas quais os seus herdeiros possam viver sem trabalhar, de renda. Como é possível que uma sociedade seja sadia quando se trabalha para estar em condições de não mais trabalhar? Dado que este ideal é impossível e malsão, isto significa que todo o organismo está viciado e doente. Uma sociedade que afirma trabalhar para criar parasitas, para viver do chamado trabalho passado (que é uma metáfora para indicar o trabalho atual dos outros), destrói, na realidade, a si mesma.”


O que é o homem? É esta a primeira e principal pergunta da filosofia. Como respondê-la? A definição pode ser encontrada no próprio homem, isto é, em cada homem singular. Mas é correta? (...) Se observarmos bem, veremos que, ao colocarmos a pergunta “o que é o homem”, queremos dizer: o que é que o homem pode se tornar, isto é, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode “se fazer”, se pode criar sua própria vida. Digamos, portanto, que o homem é um processo, precisamente o processo de seus atos. Observando ainda melhor, a própria pergunta “o que é o homem” não é uma pergunta abstrata ou “objetiva”. Ela nasce do fato de termos refletido sobre nós mesmos e sobre os outros; e de querermos saber, em relação com o que vimos e refletimos, aquilo que somos, aquilo que podemos vir a ser, se realmente e dentro de que limites somos “criadores de nós mesmos”, da nossa vida, do nosso destino. E nós queremos saber isto “hoje”, nas condições de hoje, da vida “de hoje”, e não de uma vida qualquer e de um homem qualquer. A pergunta nasceu e recebeu seu conteúdo de determinadas e especiais maneiras de considerar a vida e o homem. A mais importante delas é a “religião” e uma determinada religião: o catolicismo. Na realidade, ao perguntarmos “que é o homem”, qual é a importância que tem a sua vontade e a sua atividade concreta na criação de si mesmo e de sua vida, queremos dizer: “o catolicismo é uma concepção exata do homem e da vida? Sendo católicos, isto é, fazendo do catolicismo uma norma de vida, erramos ou acertamos?” Todos têm a vaga intuição de que fazer do catolicismo uma norma de vida é um equívoco, tanto assim que ninguém se atém ao catolicismo como norma de vida, mesmo declarando-se católico. Um católico integral – isto é, que aplicasse em cada ato de sua vida as normas católicas – pareceria um monstro, o que é, se pensarmos bem, a crítica mais rigorosa e mais peremptória do próprio catolicismo. Os católicos dirão que nenhuma outra concepção é seguida rigorosamente, no que têm razão. Mas isto demonstra apenas que não existe de fato, historicamente, uma maneira de conceber e de agir igual para todos os homens e nada mais que isso; não há nenhuma razão favorável ao catolicismo, se bem que este modo de pensar e de agir esteja organizado há séculos com esta finalidade, o que ainda não ocorreu com nenhuma outra religião com os mesmos meios, com o mesmo espírito de sistema, com a mesma continuidade e centralização. Do ponto de vista “filosófico”, o que não satisfaz no catolicismo é o fato de, não obstante tudo, ele colocar a causa do mal no próprio homem individual, isto é, conceber o homem como indivíduo bem definido e limitado. É possível dizer que todas as filosofias que existiram até hoje reproduziram esta posição do catolicismo, isto é, conceberam o homem como indivíduo limitado à sua individualidade e o espírito como sendo esta individualidade. É neste ponto que o conceito do homem deve ser reformado. Ou seja, deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um processo), no qual, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único elemento a ser considerado. A humanidade que se reflete em cada individualidade é composta de diversos elementos: 1) o indivíduo; 2) os outros homens; 3) a natureza. Mas o segundo e o terceiro elementos não são tão simples quanto poderia parecer. O indivíduo não entra em relação com os outros homens por justaposição, mas organicamente, isto é, na medida em que passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos. Desta forma, o homem não entra em relações com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica. E mais: estas relações não são mecânicas. São ativas e conscientes, ou seja, correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual. Daí ser possível dizer que cada um transforma a si mesmo, modifica-se, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o centro estruturante. Neste sentido, o verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser – nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que todo indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, construir uma personalidade significa adquirir consciência destas relações; modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações. Mas estas relações, como vimos, não são simples. Enquanto algumas delas são necessárias, outras são voluntárias. Além disso, ter consciência mais ou menos profunda delas (isto é, conhecer mais ou menos o modo pelo qual elas podem ser modificadas) já as modifica. As próprias relações necessárias, na medida em que são conhecidas em sua necessidade, mudam de aspecto e de importância. Neste sentido, o conhecimento é poder. Mas o problema é complexo também por outro aspecto: não é suficiente conhecer o conjunto das relações enquanto existem em um dado momento como um dado sistema, mas importa conhecê-los geneticamente, em seu movimento de formação, já que todo indivíduo é não somente a síntese das relações existentes, mas também da história destas relações, isto é, o resumo de todo o passado. Dir-se-á que o que cada indivíduo pode modificar é muito pouco, com relação às suas forças. Isto é verdadeiro apenas até certo ponto, já que o indivíduo pode associar-se com todos os que querem a mesma modificação; e, se esta modificação é racional, o indivíduo pode multiplicar-se por um elevado número de vezes, obtendo uma modificação bem mais radical do que à primeira vista parecia possível.”


“O fato de que a “sociedade industrial” não seja constituída apenas por “trabalhadores” e “empresários”, mas também por “acionistas” vagantes (especuladores), complica todo o raciocínio de Agnelli: ocorre que, se o progresso técnico permite uma maior margem de lucro, este não será distribuído racionalmente, mas “sempre” irracionalmente, aos acionistas e afins. Ademais, hoje é impossível dizer que existam “empresas sadias”. Todas as empresas se tornaram malsãs, o que não é dito por prevenção moralista ou polêmica, mas objetivamente. Foi a própria “grandeza” do mercado acionário que criou a doença: a massa dos portadores de ações é tão grande que ela obedece agora às leis de “multidão” (pânico, etc., que tem seus termos técnicos especiais no boom, no run, etc.); e a especulação se tornou uma necessidade técnica, mais importante do que o trabalho dos engenheiros e dos operários.
A observação sobre a crise americana de 1929 iluminou precisamente este ponto: a existência de fenômenos irrefreáveis de especulação, que arrastam também as “empresas sadias”, pelo que é possível dizer que não mais existem “empresas sadias”; portanto, pode-se usar a palavra “sadia” acompanhando-a de uma referência histórica, no sentido do “era uma vez”, isto é, quando existiam certas condições gerais que permitiam certos fenômenos gerais, não apenas em sentido relativo, mas também em sentido absoluto.”