sábado, 29 de maio de 2010

Campanha no Afeganistão - Steven Pressfield

Editora: Suma de letras

ISBN: 978-85-6028-026-1

Tradução: Domingos Demasi

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 317

Sinopse: Este romance histórico recria a invasão de Alexandre, o Grande, aos reinos afegãos em 330 a.C., uma campanha que sinistramente prenuncia as táticas, terrores e frustrações dos conflitos contemporâneos no Iraque e no Afeganistão


 

“Ordens foram dadas para não passar na espada os prisioneiros diante de suas esposas. É melhor levá-los para o deserto, deixar seu destino desconhecido; isso provoca um terror ainda mais permanente por causa da crença dos nativos em djins e demônios. O cheiro de sangue atrai lobos, que devoram os cadáveres. As alcateias aprendem a nos seguir. Seus olhos amarelos brilham à luz das tochas. Não conseguimos afugentá-los, mesmo quando lhes arremessamos pedras.”

 

 

“– Está imaginando o que é ser um soldado, não é mesmo?

Digo-lhe que estou.

Ele aponta para um animal carregado, escalando a trilha adiante de nós.

– Nós somos mulas, rapaz. Mulas que matam.”

 

 

“O clarão é terrível nesta altitude. Instruídos por nossos shikaris, preparamos “viseiras” de couro e de madeira e as amarramos sobre os olhos. Caso contrário, teremos cegueira de neve. A luz, de qualquer modo, queima completamente. Abrasa através das paredes de pele de bode das tendas ou de um cobertor duplo de lã; furtamos crina de cavalo das catapultas por torção para fazer quebra-luzes que enrolamos no alto de nossas viseiras. Mantendo os olhos meio fechados, podia-se enxergar. A vista é espetacular.

– A que altura você acha que estamos? – perguntei a Pendão no topo de um espinhaço.

Ele apontou para um pico 60 metros abaixo.

– Na nossa terra, aquele seria o olimpo.”

 

 

“Certa noite, escrevo uma carta para minha noiva. Ash observa.

– Você lhe conta tudo, meque?

– Tudo o que ela precisa saber.

E ele cacareja alegremente.”

 

 

 “Se atacamos de um telhado e um homem se ferir, é um inferno tirá-lo de lá. Se invadimos pelo solo, você luta pelo morro acima numa escuridão total. Os aposentos internos não têm janelas. Irromper dentro deles é mergulhar num armário. Poeira sufoca tudo; o inimigo espreita de trás de biombos e se acocora dentro de buracos-armadilhas. Em uma casa, Dados levou uma lança bem nos ovos. Tirá-lo de lá custou a Ruivo sua orelha e uma seta machate – uma flecha de junco com uma ponta particularmente perversa – debaixo do queixo. Tivemos de cortar fora a parte superior com alicate de ferro e puxar a coisa ao contrário pela ponta, a um triz de sua carótida. O inimigo é mestre em bancar o morto. A gente passa por um cadáver num corredor escuro e, de repente, ele ganha vida, pulando sobre você com adagas em ambas as mãos. O inimigo dispara nafta dentro de cântaros com pavio de trapos; quando estes quebram contra uma parede, pintam com chamas qualquer arrasta-pé (soldado) azarado no qual o líquido espirra.

Há apenas uma resposta para tal resistência, que é a de não deixar nada com vida.”

 

 

“– A linguagem importa, Costas. As palavras significam algo. Como você ousas pintar com belas frases os atos de horror que nos transformam, os que precisam executá-las, de soldados em açougueiros e de homens em animais? Olhe meus pés. Essa cor preta não é de terra. Posso esfregar minha pele com lixívia e soda cáustica: o sangue humano nunca sai.”

 

 

“‘Levar à morte?’ Por que não diz isso claramente? O modo como encapuzamos esses sacanas azarados, com suas próprias mantas, amarramos seus membros e colocamos curvados e enfileirados, cu-com-umbigo, com seus companheiros. Deixar o pescoço nu, ordens do sargento. Um golpe, amigo. Cuidado com a mão, ou você se corta. Cadê essa imagem em todas as suas crônicas? Cadê a fila de homens vivos, ajoelhados na terra com as mãos amarradas para trás? Cadê os aventais que usamos, como os açougueiros do ossuário, e como, quando tudo chega ao fim, lançamos no fogo cada peça de roupa, de tão intenso que é o fedor? Você não conta isso, conta? Nem como os homens que massacramos se debatem no chão, se contorcendo para longe do fio da lâmina, como precisamos prender seus pés entre nossas pernas, ou que isso requer dois de nós. Que chance é dada a essas vítimas? Quanto menos, melhor; nenhuma, se possível. Quando nos aproximamos delas, estão tão embrulhadas que é como se estivéssemos massacrando pacotes. Os soldados os chamam de “sacos”. Sacos de sangue. Sacos de entranhas. Meu Deus, que fedor quando os intestinos abertos de um homem são expostos ao ar. Isso não aparece nos seus despachos, não é mesmo? Não lemos nada sobre o som que faz o “resultado”, ao se percorrer com um porrete a fileira de homens com as gargantas cortadas, esmagando crânios como nozes, enquanto as vítimas ainda vivas rezam sem voz ou nos maldizem em meio ao sangue gorgolejado ou imploram por suas vidas. Os silenciosos são os mais pavorosos. Homens corajosos, melhores do que nós.” (...)

(Pendão) Volta-se para Lucas.

– Eu o admiro, Lucas. Você é um bom soldado e mostrou coragem ao dizer o que pensa. Mas, com todo o respeito, meu amigo, sua posição é a de uma mulher. Suas palavras são as palavras de mulheres. Você devia ter vergonha de si mesmo, só de pensar isso, como eu sei que seu pai e seus irmãos sentiriam vergonha, se soubessem. O papel de um homem é lutar, realizar, conquistar. Em que era foi diferente? A vocação de um homem, se ele é homem, é exercer sua supremacia ou morrer tentando. Como Sarpédon dirigiu-se ao seu amigo Glauco, conduzindo-o à batalha no campo de Tróia,

Vamos alcançar a glória para nós, ou concedê-la a outros.

     – Glória – rebate Lucas – anda em falta por aqui.”

 

 

“– Ser soldado – diz meu irmão Filipe – não é uma profissão digna. Quem age como um animal é um animal.”

 

 

“– Que esposa eu poderia aceitar, cara menina? A que mulher eu poderia dar felicidade? Já uso prostitutas do exército tempo demais. Gosto delas. Não preciso me justificar para elas. Entende? Posso embalar de fato um bebê em meu joelho? – Ele ri sombriamente. – Já estou na guerra, desde garoto até a idade adulta, dois terços de minha vida. Que outro ofício conheço? Meu lar, no máximo, fica no inferno, onde os que amo esperam por mim. – Sorri. – Creio que não os manterei esperando por muito tempo.”

Caim – José Saramago

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3591-539-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 174
Sinopse: Neste novo romance, o vencedor do prêmio Nobel José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com Deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.

“Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva tinham tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraísos existentes no espaço celeste. De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ficou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira definição de um até aí ignorado pecado original, nunca ficou bem explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer dificuldade em compreender que estar informado sempre será preferível a desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar.
Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à ordem de deus que adão e eva descobriram que estavam nus. Nuzinhos, em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos filhos, no fim das contas, são tão bons ou tão maus como os demais.”


“Foi neste exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. Tanto tempo sem dar notícias, e agora aqui estava, vestido como quando expulsou do jardim do éden os infelizes pais destes dois. Tem na cabeça a coroa tripla, a mão direita empunha o ceptro, um balandrau de rico tecido cobre-o da cabeça aos pés. Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasse a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal, pagará por isso, Tão ladrão é o que vai a vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa, Deus está inocente, tudo seria igual se não existisse, Mas eu, porque matei, poderei ser morto por qualquer pessoa que me encontre, Não será assim, farei um acordo contigo, Um acordo com o réprobo, perguntou caim, mal acreditando no que acabara de ouvir, Diremos que é um acordo de responsabilidade partilhada pela morte de abel, Reconheces então a tua parte de culpa, Reconheço, mas não o digas a ninguém, será um segredo entre deus e caim, Não é certo, devo estar a sonhar, Com os deuses isso acontece muitas vezes, Por serem, como se diz, inescrutáveis os vossos desígnios, perguntou caim, Essas palavras não as disse nenhum deus que eu conheça, nunca nos passaria pela cabeça dizer que os nossos desígnios são inescrutáveis, isso foi coisa inventada por homens que presumem de ser tu cá, tu lá com a divindade, Então não serei castigado pelo meu crime, perguntou caim, A minha porção de culpa não absolve a tua, terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador a testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação, acrescentou o senhor, mas é também o sinal de que estarás toda a vida sob a minha protecção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas, Aceito, disse caim, Não terias outro remédio, Quando principia o meu castigo, Agora mesmo, Poderei despedir-me dos meus pais, perguntou caim, Isso é contigo, em assuntos de família não me meto, mas com certeza vão querer saber onde está abel, e suponho que não lhes irás dizer que o mataste, Não, Não, quê, Não me despedirei dos meus pais, Então, parte. Não havia mais nada a dizer. O senhor desapareceu antes que caim tivesse dado o primeiro passo. (...) A eva e adão ainda restava a possibilidade de gerarem um filho para compensar a perda do assassinado, mas bem triste há-de ser a gente sem outra finalidade na vida que a de fazer filhos sem saber porquê nem para quê. Para continuar a espécie, dizem aqueles que creem num objectivo final, numa razão última, embora não tenham nenhuma ideia sobre quais sejam e que nunca se perguntaram em nome de quê terá a espécie de continuar como se fosse ela a única e derradeira esperança do universo. Ao matar abel por não poder matar o senhor, caim deu já a sua resposta. Não se augure nada bom na vida deste homem.”


“Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o filho isaac. No terceiro dia de viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.”


“Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou o moço, se não tivesse aparecido aquele homem para segurar-te o braço, que o senhor o cubra de bênçãos, estarias agora a levar um cadáver para casa, A ideia foi do senhor, que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência, E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é rancoroso, Acho que sim, respondeu abraão em voz baixa, como se temesse ser ouvido, ao senhor nada é impossível, Nem um erro ou um crime, perguntou isaac, Os erros e os crimes sobretudo, Pai, não me entendo com esta religião, Hás-de entender-te, meu filho, não terás outro remédio, e agora devo fazer-te um pedido, um humilde pedido, Qual, Que esqueçamos o que passou, Não sei se serei capaz, meu pai, ainda me vejo deitado em cima da lenha, amarrado, e o teu braço levantado, com a faca a luzir, Não era eu quem estava ali, em meu perfeito juízo nunca o faria, Queres dizer que o senhor enlouquece as pessoas, perguntou isaac, Sim, muitas vezes, quase sempre, respondeu abraão, Fosse como fosse, quem tinha a faca na mão eras tu, O senhor havia organizado tudo, no último momento interviria, viste o anjo que apareceu, Chegou atrasado, O senhor teria encontrado outra maneira de te salvar, provavelmente até sabia que o anjo se ia atrasar e por isso fez aparecer aquele homem, Caim se chama ele, não esqueças o que lhe deves, Caim, repetiu abraão obediente, conheci-o ainda não era nascido, O homem que salvou o teu filho de ser degolado e queimado no molho de lenha que ele próprio havia trazido às costas, Não o foste, meu filho, Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto eu ter morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos, Onde foi que ouviste esse nome, A gente sonha, pai.”


“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.”


“No regresso, por causalidade, detiveram-se por um momento no caminho onde abraão tinha falado com o senhor, e aí caim disse, Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas.”


“Então Caim disse, Se bem entendi, o senhor e satã fizeram uma aposta, mas job não pode saber que foi alvo de um acordo de jogadores entre deus e o diabo, Exactamente, exclamaram os anjos em coro, A mim não me parece muito limpo da parte do senhor, disse caim, se o que ouvi é verdade, job, apesar de rico, é um homem bom, honesto, e ainda por cima muito religioso, não cometeu nenhum crime, mas vai ser castigado sem motivo com a perda dos seus bens, talvez, como tantos dizem, o senhor seja justo, mas a mim não me parece, faz-me recordar sempre o que aconteceu com abraão a quem deus, para o pôr à prova, ordenou que matasse o seu filho isasc, em minha opinião, se o senhor não se fia das pessoas que creem nele, então não vejo porque tenham essas pessoas de fiar-se do senhor, Os desígnios de deus são inescrutáveis, nem nós, anjos, podemos penetrar no seu pensamento, Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar desta contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama, Foi ele quem te deu a vida, A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto, Deus está em todo o lado, Sobretudo quando manda matar, uma só criança das que morreram em sodoma bastaria para o condenar sem remissão, mas a justiça, para deus, é uma palavra vã, agora vai fazer sofrer job por causa de uma aposta e ninguém lhe pedirá contas, Cuidado, caim, falas demais, o senhor está a ouvir-te e tarde ou cedo te castigará, O senhor não ouve, o senhor é surdo, por toda a parte se lhe levantam súplicas, são pobres, infelizes, desgraçados, todos a implorar o remédio que o mundo lhes negou, e o senhor vira-lhes as costas, começou por fazer uma aliança com os hebreus e agora fez um pacto com o diabo, para isto não valia a pena haver deus. Os anjos protestaram indignados, ameaçaram deixá-lo ali sem emprego, com o que o debate teológico terminou e as pazes mais ou menos ficaram feitas. Um dos anjos chegou mesmo a dizer, Creio que o senhor apreciaria discutir contigo sobre estes assuntos, Talvez algum dia, respondeu caim.”


“A mulher de job, de quem até agora não tínhamos ouvido uma palavra, nem sequer para chorar a morte dos seus dez filhos, achou que já era hora de desabafar e perguntou ao marido, Ainda continuas firme na tua rectidão, eu, se fosse a ti, se estivesse no teu lugar, amaldiçoaria a deus ainda que daí me viesse a morte, ao que job respondeu, Estás a falar como uma ignorante, se recebemos o bem da mão de deus, por que não receberíamos também o mal, esta foi a pergunta, mas a mulher respondeu irada, Para o mal estava aí satã, que o senhor nos apareça agora como seu concorrente é coisa que nunca me passaria pela cabeça, Não pode ter sido deus quem me pôs neste estado, mas satã, Com a concordância do senhor, disse ela, e acrescentou, Sempre ouvi dizer aos antigos que as manhas do diabo não prevalecem contra a vontade de deus, mas agora duvido de que as coisas sejam assim tão simples, o mais certo é que satã não seja mais que um instrumento do senhor, o encarregado de levar a cabo os trabalhos sujos que deus não pode assinar com seu nome.”


“Suponho que o senhor estará feliz, disse aos anjos, ganhou a aposta contra satã e, apesar de tudo quanto está a sofrer, job não o renegou, Todos sabíamos que não o faria, Também o senhor, imagino, O senhor primeiro que todos, Isso quer dizer que ele apostou porque tinha a certeza de que ia ganhar, De certo modo, sim, Portanto, tudo ficou como estava, neste momento o senhor não sabe mais de job do que aquilo que sabia antes, Assim é, Então, se é assim, expliquem-me por que está job leproso, coberto de chagas purulentas, sem filhos, arruinado, O senhor arranjará maneira de o compensar, Ressuscitará os dez filhos, levantará as paredes, fará regressar os animais que não foram mortos, perguntou caim, Isso não sabemos,  E que fará o senhor a satã, que tão mau uso, pelos vistos, parece ter feito da autorização que lhe foi dada, Provavelmente nada, Como, nada, perguntou caim em tom escandalizado, mesmo que os escravos não contem para as estatísticas, há muita outra gente morta, e ouço que provavelmente o senhor não irá fazer nada, No céu as coisas sempre foram assim, não é nossa culpa, Sim, quando numa assembleia de seres celestes está presente satã, há qualquer coisa ali que o simples mortal não entende.”


“Não sabes a força que têm os anjos, com um só dedo levantariam uma montanha, o que me vale é serem tão disciplinados, não fosse isso e já teriam organizado um complô para me deporem, Como satã, disse caim, Sim, como satã, mas a este já lhe encontrei a maneira de o trazer contente, de vez em quando deixo-lhe uma vítima nas mãos para que se entretenha, e isso lhe basta, Tal como fizeste a job, que não ousou amaldiçoar-te, mas que leva no coração toda a amargura do mundo, Que sabes tu do coração de job, Nada, mas sei tudo do meu e alguma coisa do teu, respondeu caim, Não creio, os deuses são como poços sem fundo, se te debruçares neles nem mesmo a tua imagem conseguirás ver, Com o tempo todos os poços acabam por secar, a tua hora também há-de chegar. O senhor não respondeu, mas olhou fixamente caim e disse, O teu sinal na testa está maior, parece um sol negro a levantar-se do horizonte dos olhos, Bravo, exclamou caim batendo palmas, não sabia que fosses dado à poesia, É o que eu digo, não sabes nada de mim.”


“Entretanto, porém, uma das noras de noé, a mulher de cam, havia morrido num acidente. Ao contrário do que deixámos antes dito ou dado a entender, havia uma grande necessidade de mão-de-obra na barca, não de marinheiros, é certo, mas de pessoal de limpeza. Centenas, para não dizer milhares de animais, muitos deles de grande porte, enchiam a abarrotar os porões e todos cagavam e mijavam que era um louvar a deus. Limpar aquilo, baldear toneladas de excrementos todos os dias era uma duríssima prova para as quatro mulheres, uma prova física em primeiro lugar, pois dali saíam exaustas as pobres, mas também sensorial, com aquele insuportável fedor a merda e urina que traspassava a própria pele. Foi num desses dias de tempestade desabalada, com a arca a ser sacudida pela tormenta e os animais a atropelarem-se uns aos outros, que a mulher de cam, tendo escorregado no chão imundo, foi acabar sob as patas de um elefante. Lançaram-na ao mar tal como se encontrava, ensanguentada, suja de excrementos, um mísero despojo humano sem honra nem dignidade. Por que não a limparam antes, perguntou caim, e noé respondeu, Vai ter muita água para se lavar. A partir deste momento e até o final da história, caim irá odiá-lo de morte.”

A engenhosa Letícia do Pontal – Carlos Nejar

Editora: Objetiva
ISBN: 978-85-7302-504-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 308
Sinopse: Uma quixote de saias em busca do seu moinho. Que mistérios rondam Letícia do Pontal? É uma bela mulher? Ou é a imagem do feminino que se projeta no céu? Aquele céu que nos protege e nos condena a vagar atrás dos nossos desejos. A engenhosa Letícia do Pontal, do grande poeta e acadêmico Carlos Nejar é uma alegoria sobre o homem e o tempo, sobre a poesia do mundo que jorra suas sábias palavras através de Letícia – uma nuvem que nos espreita.
Considerado pelo autor como sua obra máxima, o livro é fruto de um trabalho de 16 anos, que reúne e justifica sua criação. Através de uma linguagem muito própria – onde poesia e prosa se misturam o tempo todo – Nejar revela a nossa alma quixotesca. Os ideais que se desenham no horizonte, nesta tênue linha que nos separa da ilusão.
Uma alegoria sobre o homem e o tempo, seu texto impõe-se como fábula de amor e guerra, das grandezas e fraquezas do coração. O reino do maravilhoso encontra seu fiel intérprete, onde o humor se mescla à sátira e à paródia, o lirismo à sabedoria das mais estranhas experiências.


“Não há reservas para o sonho humano.”


“Filosofa apenas o que está cativo: para libertar-se.”


“A dor não tem semente, só frutos.”


“– Tudo está acontecendo, mesmo quando não acontece – falou-me Letícia, após a audiência. E pega sentido. É na paragem que se criam as calamidades. E fui acompanhando o raciocínio. Assim, o que vai acontecer está no acontecido. E medra devagar, desde o miolo. O grito já vem vindo antes da dor. E o vento vem vindo antes do vento. Com um rumor que a noite sequer percebe. Porque apenas um sonho escapou de seu pesadelo e veio à luz. Tudo está acontecendo, mesmo quando nada, nem um til ou pedra, ou casca de árvore, parece estar caindo. A imobilidade é quando se plasma o germe de todo o movimento futuro.”


“Fechamos a janela para o ar, fechamos a porta. Fechamos os quartos, a sala, a casa. E depois nos queixamos que a falta de ar nos sufoca!”


“– O amor é uma casa – disse Letícia, distraída entre as folhas. – Precisa ser morada para durar.”


“Quem poupa os maus acaba punindo os bons.”


“Só quem ama, discerne. E só quem discerne, esquece.”


“Foi quando minha mente foi se associando, em ondas, ao que li, do filósofo espanhol Miguel de Unamuno: “Cada um tem seu método, como cada um tem sua loucura. Apenas, estimamos, cordato, aquele cuja loucura coincide com a da maioria.”


“O vizinho Edilberto veio falar com Letícia. Queria emprestado o nosso cavalo para ir à feira. E ela disse que não, sentia muito. Nem livro nem cavalo se empresta! Edilberto insistiu. Então a Nuvem deu a desculpa de ter ele saído comigo. E Alecrim, o cavalo, relinchou, lá da porteira, onde estávamos. O vizinho se empertigou:
– Posso escutá-lo! – disse.
E Letícia, com delicada altivez, falou:
– Se preferes acreditar na palavra do cavalo a acreditar na minha, não mereces que lhe seja emprestada coisa alguma!”


“O definhar do ser é a instância para a metamorfose. A morte não é expiação, é descoberta.”


“Porque o que tem de ser, insiste.”


“A imaginação é a memória do porvir.”


“A espécie humana é mais digna de riso do que de piedade.”


“Tirante isso, que não nos aturdiu, saímos inocentes, egressos do primeiro dia da criação. Talvez porque o primeiro dia da criação estava em todos os dias.”


“– Quem crê demais em si mesmo não pode ser verdadeiro.”


“O tempo na fome é de uma intensidade intolerável.”


“– Porque as palavras são coisas vivas que advêm de coisas mais vivas ainda.”


“– Viver é estar chegando.”


“Os críticos não picam por mal, mas porque querem dizer que existem.”


“Tende mais receio da abundância que da escassez.”


“(...) pois tudo o que é humano tem declínio.”

domingo, 16 de maio de 2010

Moby Dick – Herman Melville

Editora: Cosac Naify
ISBN: 978-85-7503-670-9
Tradução: Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza.
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 656
Sinopse: Versão definitiva da obra-prima Moby Dick, ou A Baleia, considerado um dos maiores romances norte-americanos. O livro traz o relato de um marinheiro letrado, Ishmael, sobre a última viagem de um navio baleeiro de Nantucket, o Pequod, que parte da costa leste dos Estados Unidos – com sua tripulação multiétnica – rumo ao Pacífico Sul, onde encontra o imenso cachalote branco que, no passado, arrancara a perna do vingativo capitão Ahab. Ao longo de 135 capítulos, Herman Melville (1819-1891) explora com brilhantismo e ironia os mais variados gêneros literários: da narrativa de viagens ao teatro shakespeariano, do sermão à poesia popular, passando pela descrição científica e a meditação filosófica.
A nova tradução se vale da longa experiência acadêmica da tradutora Irene Hirsch com a obra de Melville e de um minucioso trabalho de pesquisa de vocabulário náutico por parte do tradutor Alexandre Barbosa de Souza.
O volume inclui ainda fortuna crítica com três textos fundamentais para a compreensão da obra: uma resenha de Evert Duyckinck, publicada em 1851; o clássico ensaio de D. H. Lawrence, incluído em Studies in Classic American Literature, de 1923, e um trecho do célebre estudo de F. O. Mathiessen, American Renaissance, de 1941. Além disso, a edição traz apêndice com Glossário Náutico Ilustrado e bibliografia.


“Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão bêbado”.


“Em que recenseamento de seres vivos estão incluídos os mortos da humanidade; por que há um provérbio que afirma que os mortos não falam, embora saibam mais segredos que Goodwin Sands; como se explica que, ao nome daquele que partiu ontem para outro mundo, nós associemos uma palavra tão significativa e inverídica, e no entanto não a associemos a ele, que parte para as Índias mais remotas; por que as companhias de seguro pagam pela morte de imortais; em que paralisação eterna e imóvel, e transe mortífero e desesperado, jaz o antigo Adão, morto há sessenta séculos; como é possível que ainda não encontremos consolo pela perda daqueles que afirmamos estar na mais completa bem-aventurança; por que todos os vivos se esforçam tanto para não mencionar os mortos; por que motivo um simples ruído num túmulo assusta uma cidade inteira? Todas essas coisas têm seu significado.
Mas a Fé, como um chacal, se alimenta por entre os túmulos, e mesmo dessas dúvidas mortais recolhe sua esperança mais vital.”


“Pois é, existe a morte neste negócio baleeiro – um modo caótico, rápido e sem palavrório de empacotar o homem para a Eternidade. Mas e daí? Parece-me que estamos profundamente equivocados a respeito dessa história de Vida e Morte. Parece-me que, olhando para as coisas espirituais, somos como ostras observando o sol através da água e achando que a água espessa é o ar mais sutil.”


“De resto, todas as coisas que Deus ordena são difíceis de cumprir – lembrem-se disso – e por isso é mais frequente ouvi-Lo comandar do que tentar nos persuadir. E para obedecermos a Deus temos que desobedecer a nós mesmos; é nesta desobediência de nós mesmos que consiste a dificuldade de obedecer a Deus.”


“Como o Ramadã, (a Quaresma) ou Jejum e Penitência de Queequeg iria continuar durante o dia, resolvi não incomodá-lo até o cair da noite; porque sinto muito respeito pelas obrigações religiosas das pessoas, por mais ridículas que sejam, e não subestimaria nem mesmo uma congregação de formigas adorando um cogumelo.”


“As memórias mais profundas não concedem epitáfios.”


““Não quero no meu bote”, dizia Starbuck, “homem que não tenha medo de baleia.” Com isso parecia querer dizer não apenas que a coragem mais útil e confiável é a que surge de uma avaliação justa do perigo iminente, mas também que um homem totalmente destemido é um sujeito muito mais perigoso do que um homem covarde.”


“É mesmo duvidoso que Stubb pensasse na morte; mas, se lhe ocorresse tal ideia depois de um agradável jantar, consideraria, como um bom marinheiro, que se tratava de um chamado do vigia para subir ao topo do mastro e ocupar-se com algo cuja natureza descobriria ao cumprir a ordem, e não antes.”


“– Raios me partam, valeria a pena nascer neste mundo nem que fosse apenas para dormir. A propósito, essa é praticamente a primeira coisa que os bebês fazem, e isso também é um pouco esquisito. Raios me partam, mas tudo é esquisito, quando se pensa a respeito. Mais isso é contra os meus princípios. Não pensar, meu décimo primeiro mandamento, e dormir quando puder, o décimo segundo.”


“Quem ofereceu um jantar aos amigos uma só vez já provou o que é ser César. É um feitiço do czarismo social que não encontra resistência.”


“São poucos os homens cuja coragem resiste à reflexão prolongada sem o alívio da ação.”


“O primeiro barco de que lemos notícia flutuou num oceano que, em vingança digna de um Português, inundou um mundo inteiro sem nem deixar sequer uma viúva. Aquele mesmo oceano se agita agora; aquele mesmo oceano destruiu os navios naufragados do ano passado. Sim, mortais insensatos, o dilúvio de Noé ainda não cessou; dois terços do belo mundo ele ainda cobre.”


“Quando os botes a circundaram mais de perto, toda a sua porção superior, grande parte da qual em geral fica submersa, estava bem visível. Seus olhos, ou melhor, os lugares onde antes estavam, podiam ser vistos. Do mesmo modo que substâncias estranhas crescem nos olhos dos nós dos carvalhos mais nobres, quando derrubados, assim também nos lugares onde os olhos da baleia haviam estado saíam bulbos cegos, uma comiseração horrível de ser vista. Mas não havia clemência. Apesar de toda a sua idade, apesar da sua única barbatana e dos seus olhos cegos, ela devia morrer aquela morte horrível, assassinada para iluminar as núpcias alegres e outras festividades dos homens, e também para iluminar as igrejas solenes que pregam que todos devem ser incondicionalmente inofensivos uns para os outros.”


“De camisetas e de ceroulas, lançamo-nos ao freixo dos nossos remos, e depois de fazer força por várias horas estávamos quase desistindo da caça, quando as baleias, numa hesitação generalizada, deram sinais de que estavam, por fim, sob a influência daquela estranha perplexidade da indecisão inerte, que os pescadores, quando a percebem nas baleias, dizem que estão sarapantadas. As compactas fileiras marciais em que haviam nadado, depressa e com determinação, até ali, agora se desfaziam numa balbúrdia desmedida; e, como os elefantes do rei Poro na batalha da Índia contra Alexandre, pareciam ensandecidos de consternação. Espalhavam-se em todas as direções, formando vastos círculos irregulares, nadando sem rumo de um lado para o outro, e os seus sopros espessos e curtos demonstravam claramente estarem confusas de pânico. Isso ficava ainda mais estranhamente demonstrado por algumas dentre elas que, estando completamente paralisadas, flutuavam indefesas como navios despedaçados quase a pique. Se esses Leviatãs fossem um simples rebanho de ovelhas perseguidas no pasto por três lobos ferozes, não teriam demonstrado mais horror. Mas essa timidez eventual é uma característica de quase todas as criaturas que vivem em rebanhos. Embora formem manadas de dezenas de milhares, os búfalos do oeste, com as suas jubas de leão, fogem quando veem um cavaleiro solitário. Seres humanos também são testemunhas de que, quando aglomerados no aprisco da plateia de um teatro, ao menor sinal de alarme de fogo, logo começa o corre-corre em busca das saídas, empurrando, pisoteando, apertando e atirando uns aos outros à morte. Melhor, portanto, é refrear todo espanto diante de baleias estranhamente sarapantadas, pois não existe insensatez de animal algum da terra que não seja infinitamente superada pela loucura dos homens.”


“Muito esforço e poucos ganhos para aos que pedem ao mundo que lhes dê uma explicação; o mundo não pode explicar-se.”


“Nem, àquelas alturas, deixou de passar por sua mente monomaníaca que toda a angústia de seu sofrimento fosse consequência direta de um infortúnio anterior; e ele parecia ver com clareza que, como o réptil mais venenoso do pântano perpetua sua espécie tão inevitavelmente quanto o cantor mais doce do bosque; assim também toda a desgraça, como a felicidade, gera naturalmente acontecimentos similares a si. Não exatamente como, pensou Ahab; já que a linhagem e a posteridade da Dor superam as da Alegria. Pois, para que não se subentenda isso: que se pode inferir certos ensinamentos canônicos que alguns deleites naturais deste mundo não gerarão filhos no outro mundo, mas, ao contrário, devido à esterilidade da alegria, serão seguidos de todo o desespero infernal; ao passo que os fatais sofrimentos criminosos gerarão com fertilidade para o além-túmulo uma prole eterna de tristezas sucessivas; para que não se subentenda isso, parece haver uma desigualdade, quando se analisa o assunto com profundidade. Pois, pensou Ahab, se mesmo na felicidade terrena mais elevada sempre existe oculta uma certa mesquinhez insignificante, enquanto, no fundo, todas as dores do coração escondem um significado místico e, em certos homens, uma grandeza angelical; assim, sua análise diligente não desmente a dedução óbvia. Percorrer a genealogia dessas altas misérias mortais nos conduz afinal às primogenituras sem origens dos deuses; de modo que, diante de todos os alegres sóis fecundos e das rotundas luas outonais, iluminando o suave farfalhar da colheita, é necessário dar-se conta disso: de que os próprios deuses nem sempre são felizes. O sinal de nascença, triste e indefectível na fronte do homem, é apenas a marca da tristeza dos que a imprimiram.”


“– É extraordinário como são amigáveis os idiotas!”

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A estrada – Cormac McCarthy

Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-6028-126-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 240
Sinopse: Num futuro não muito distante, o planeta encontra-se totalmente devastado. As cidades foram transformadas em ruínas e pó, as florestas se transformaram em cinzas, os céus ficaram turvos com a fuligem e os mares se tornaram estéreis. Os poucos sobreviventes vagam em bandos.
Um homem e seu filho não possuem praticamente nada. Apenas uns cobertores puídos, um carrinho de compras com poucos alimentos e um revólver com algumas balas, para se defender de grupos de assassinos. Estão em farrapos e com os rostos cobertos por panos para se proteger da fuligem que preenche o ar e recobre a paisagem. Eles buscam a salvação e tentam fugir do frio, sem saber, no entanto, o que encontrarão no final da viagem. Essa jornada é a única coisa que pode mantê-los unidos, que pode lhes dar um pouco de força para continuar a sobreviver.
A estrada representa uma mudança surpreendente na ficção de Cormac McCarthy e talvez seja sua obra-prima. Mais que um relato apocalíptico, é uma comovente história sobre amadurecimento, esperança e sobre as profundas relações entre um pai e seu filho.


“Nesta estrada não há homens inspirados por Deus. Eles se foram e eu fiquei, eles levaram consigo o mundo.”


“Costumávamos falar da morte, ela disse. Não falamos mais. Por que isso?
Não sei.
É porque ela está aqui. Não há mais nada para falar.
Eu não te deixaria.
Não me importo. Não quer dizer nada. Pode pensar que eu sou um puta infiel se você quiser. Tenho um novo amante. Ele me dá o que você não consegue dar.
A morte não é um amante.
Ah é sim.
Por favor não faça isso.
Sinto muito.
Não consigo fazer isso sozinho.
Então não faça. Não posso te ajudar. Dizem que as mulheres sonham com o perigo daqueles que estão sob seus cuidados e os homens com seu próprio perigo. Mas eu não sonho com nada. Você diz que não consegue fazer isso sozinho? Então não faça. É tudo. Porque eu estou exausta deste meu coração libertino e isso já faz muito tempo. Você fala sobre tomar uma posição firme mas não há posição a tomar. Meu coração foi arrancado de mim na noite em que ele nasceu então não peça por um lamento agora. Não há nenhum. Talvez você venha a ser bom nisso. Eu duvido, mas quem sabe. A única coisa que eu posso te dizer é que você não vai sobreviver por conta própria. Eu sei porque nunca teria chegado tão longe. A uma pessoa que não tivesse ninguém seria aconselhável que se juntasse a algum fantasma passável. Trazê-lo à vida com seu sopro e persuadi-lo a seguir em frente com palavras de amor. Oferecer-lhe cada migalha fantasma e protegê-lo do perigo com seu corpo. Quanto a mim minha única esperança é o nada eterno e espero por ele com todo meu coração.
Ele não respondeu.
Você não tem nenhum argumento porque não existe um.
Você vai dizer adeus a ele?
Não. Não vou.
Só espere até amanhã. Por favor.
Tenho que ir.
Ela já tinha se levantado.
Pelo amor de Deus, mulher. O que eu digo a ele?
Não posso te ajudar.
Para onde você vai? Você não consegue nem mesmo enxergar.
Não preciso.
Ele se levantou. Estou te implorando, ele disse.
Não. Não vou. Não posso.

Ela se foi e a frieza do gesto foi seu último presente. Usaria uma lasca de obsidiana. Ele mesmo lhe ensinara. Mais afiado do que o aço. A ponta com a espessura de um átomo. E ela estava certa. Não havia argumento. A centena de noites em que eles tinham ficado sentados debatendo os prós e os contras da autodestruição com a honestidade de filósofos acorrentados à parede de um hospício. Pela manha o menino não disse nada em absoluto, e quando eles tinham guardado suas coisas e estavam prontos para pôr o pé na estrada ele se virou para o local de seu acampamento lá atrás e disse: Ela foi embora, não foi? E ele disse: Sim, foi.”


“Pela manhã eles saíram da ravina e seguiram pela estrada novamente. Ele tinha entalhado para o menino uma flauta com um pedaço de bambu de beira de estrada e tirou-a do casaco e deu-a a ele. O menino a apanhou sem dizer nenhuma palavra. Depois de algum tempo ficou para trás e o homem pôde ouvi-lo tocando. Uma música informe para a era que estava para vir. Ou talvez a última música na Terra fosse evocada das cinzas de sua ruína. O homem se virou e olhou para ele, lá atrás. Estava perdido em sua concentração. O homem pensou que ele parecia alguma criança trocada, um changeling, perdido e solitário, anunciando a chegada de um espetáculo itinerante em vilarejos e aldeias, sem saber que atrás dela os atores foram todos levados pelos lobos.”


“No outro lado da cidade encontraram uma casa solitária num campo e atravessaram e entraram e caminharam pelos quartos. Depararam-se consigo num espelho e ele quase sacou o revólver. Somos nós, papai, o menino sussurrou. Somos nós.”


“Quando acordou novamente achou que a chuva tinha parado. Mas não foi isso que o acordou. Ele tinha sido visitado num sonho por criaturas de um tipo que nunca tinha visto antes. Não falavam. Ele achou que tinham estado agachadas ao lado do seu catre enquanto dormia e que tinham escapulido quando ele acordou. Virou-se e olhou para o menino. Talvez compreendesse pela primeira vez que, para o menino, ele próprio era um alienígena. Um ser de um planeta que já não existia. Cujas histórias eram suspeitas. Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que tinha perdido sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele. Tentou se lembrar do sonho mas não conseguiu. Tudo o que restava era a sensação. Pensou que talvez eles tivessem vindo avisá-lo. De quê? De que ele não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio. Mesmo agora alguma parte dele desejava que nunca tivessem encontrado aquele refúgio. Alguma parte dele desejava que tudo tivesse terminado.”


“Onde os homens não podem viver deuses também não se sentem bem.”


“Você acha que seus pais estão observando? Que eles te inscrevem em seu livro-razão? Contra o quê? Não há livro algum e seus pais estão mortos no chão.”


“Em dois dias quando chegaram a uma estrada ele colocou a bolsa no chão e se sentou curvado com os braços cruzados sobre o peito e tossiu até não conseguir mais. (...) Ali acamparam e quando ele se deitou soube que não poderia avançar mais e que aquele era o lugar onde morreria. O menino ficou sentado a observá-lo, lágrimas jorrando dos olhos. Oh Papai, ele disse.”