terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Ilíada – Homero

Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-0033-077-3
Tradução: Carlos Alberto Nunes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 576
Sinopse: Ilíada e Odisseia são os maiores clássicos da literatura ocidental. Seus elementos míticos influenciaram a cultura através dos séculos e ainda conseguem dialogar com leitores de hoje. A Editora Nova Fronteira traz ao mercado uma edição especial dessas obras-primas de Homero, num boxe de luxo, com a famosa tradução de Carlos Alberto Nunes.



“Todos, as lanças agucem; a ponto os escudos preparem;
Deem ração abundante aos cavalos de patas velozes
e aos carros passem revista, pensando no próximo embate,
pois todo o dia teremos de a luta manter espantosa.
Pausa nenhuma há de haver, um momento sequer de repouso,
enquanto a Noite não vier aplacar o furor dos guerreiros.
Há de correr muito suor pelo bálteo dos altos escudos,
e, do maneio da lança, hão de os braços tombar de cansados;
muito hão de suar os cavalos, do esforço de os carros puxarem.
Mas se eu alguém vir do prélio sangrento afastado, querendo
nas curvas naus ocultar-se, remédio nenhum, com certeza,
há de livrá-lo de pasto tornar-se de cães e de abutres”.
Disse; os Argivos romperam em grande alarido, tal como
quando vem onda quebrar-se, por Noto impelida, de encontro
a promontório elevado; outras muitas, constantes, o cercam,
que, pelos ventos, de todos os lados, ali são jogadas:
em direção dos navios, desta arte, eles todos se espalham,
fogo nas tendas acendem e logo ao repasto se entregam.
Quem, sacrifícios a um deus; quem, a um outro, perfeitos, fazia,
a suplicarem que de Ares sangrento e da Morte o salvassem.”


     “É terrível de um deus, sempre, a cólera.”


“Não foi a súplica, entanto, por Palas Atena acolhida.
Enquanto à filha de Zeus poderoso elas todas oravam,
encaminhava-se Heitor ao palácio do divo Alexandre,
belo de ver, que ele próprio construíra com a ajuda de artífices
de fama excelsa, os melhores da terra abençoada de Tróia.
Estes, o tálamo e a sala elevaram, e o pátio espaçoso,
perto dos paços de Príamo e Heitor, no ponto alto da Acrópole.
Entra o guerreiro, a Zeus caro, no belo palácio, levando
a forte lança na mão, de onze cúbitos, com reluzente
extremidade de bronze firmada por círculo de ouro.
Acha a Alexandre no tálamo, atento no exame das armas
de primorosa feitura, a apalpar o arco forte e brunido.
A argiva Helena se achava a seu lado, no meio das servas,
a dirigir os trabalhos que todas, cuidosas, faziam.
Vendo-o, com termos violentos, Heitor o censura, dizendo:
“Recomendáveis não são, ó infelizes, esses teus sentimentos.
Fora dos muros, o povo perece na crua peleja.
Por tua causa, acendeu-se esta guerra, que em volta de Tróia
arde, sem pausa nenhuma. Tu próprio, quiçá, te indignaras,
caso encontrasses alguém que fugisse à defesa da pátria.
Vamos; se não, logo logo, há de a chama inimiga atingir-nos”.
Páris, de formas divinas, lhe disse, em resposta, o seguinte:
“É justo, Heitor, o que dizes; contrário à razão não me falas.
Por isso vou contestar-te, pedindo que ouvido me prestes.
Certo, não foi por achar-me agastado com os Troas, que ao tálamo
me recolhi, mas por causa da dor que me o peito angustia.
Neste momento, com doces palavras, a cara consorte
me aconselhava a voltar para a luta. Eu, também, já pensara
que é bem melhor desse modo. A vitória tem suas mudanças.
Por uns instantes espera que as armas de guerra eu envergue;
ou melhor, vai; que em teus passos já sigo, esperando alcançar-te”.
Nada lhe disse, em resposta, o guerreiro do casco ondulante.
Vira-se Helena para esse, com termos afáveis, e fala:
“Caro cunhado da pobre que apenas desgraças espalha!
Fora melhor, bem melhor, que, no dia em que a luz vi do mundo,
arrebatado me houvesse de casa terrível procela,
para nos montes lançar-me, ou nas ondas do mar ressoante,
que me teriam tragado, evitando esta grande catástrofe.
Mas, já que os deuses quiseram que tudo, desta arte, se desse,
fosse-me, então, destinado marido melhor, que as censuras
dos companheiros sentisse e a desonra daí decorrente.
Este, porém, nunca teve firmeza, nem nunca há de tê-la.
Por isso mesmo, estou certa, há de os frutos colher dentro em breve.
Mas entra, um instante sequer, e repousa sobre esta cadeira,
caro cunhado, que mais do que todos, suportas o peso
das consequências de minha cegueira e da culpa de Páris.
Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem,
nas gerações porvindoiras, os cantos excelsos dos vates”.
Disse-lhe Heitor em resposta, o guerreiro do casco ondulante:
“Não é possível, Helena, aceitar-te o convite amigável,
pois o meu peito me incita a correr em ajuda dos nossos,
que já se encontram por certo, impacientes com a minha demora.
A este, porém, manda-o logo, ou se apresse, espontâneo, a vestir-se,
para que possa alcançar-me ainda dentro dos muros de Tróia,
enquanto a casa, de bela feitura, dirijo-me para
mais uma vez ver os criados, a esposa dileta e o filhinho.
É, por sem dúvida, incerto se possa voltar a revê-los,
ou se por mão dos Aquivos os deuses à Morte me entregam”.”


 “Como se dá quando Zéfiro se alça e provoca arrepios
na superfície do mar, que se toma, de pronto, anegrado:
da mesma forma ondulavam Troianos e Acaios valentes
pela planície. Avançando para eles, Heitor assim fala:
“Ora guerreiros troianos, grevados Acaios, prestai-me
toda a atenção, que no peito me ordena falar-vos o espírito!
Os juramentos não quis Zeus potente que fossem mantidos,
pois nos reserva, sem dúvida, muitos e graves trabalhos,
té que possais submeter a cidade de torres altivas,
ou que vencidos fiqueis junto às naves de rápido curso.
Em vosso meio se encontram os homens mais fortes da Acaia.
Desses, o que se atrever a medir-se, em duelo, comigo,
saia das filas e, como adversário de Heitor, se enalteça.
Seja Zeus grande o fiador do que a todos, agora, proponho:
caso, com bronze afiado, me venha a matar, que me tire
esse guerreiro a armadura e a deponha em seu barco ligeiro;
mas restitua meu corpo, que possam, depois, os Troianos
e as venerandas consortes à pira sagrada entregá-lo.
Se Febo Apolo, porém, me fizer vencedor do adversário,
Despojá-lo-ei da armadura e, levando-a para Ílio sagrada,
no templo irei pendurá-la de Apolo, frecheiro infalível,
mas o cadáver será restituído aos navios simétricos,
para que os fortes Aquivos cacheados lhe deem sepultura
e um monumento lhe elevem na margem do largo Helesponto,
para que possam dizer as pessoas dos tempos vindoiros,
quando, em seus barcos de remos, cruzarem o mar cor de vinho:
‘Eis o sepulcro de um homem que a vida perdeu há bem tempo;
pelo admirável Heitor, em combate esforçado, foi morto’.
Isso dirão, certamente; imortal há de ser minha glória”.
Isso disse ele; os presentes calados e quedos ficaram.
De recusar, tinham pejo: porém de anuir, muito medo.
Té que, por fim, Menelau se levanta e, com termos violentos,
os companheiros censura, pois sua aflição era grande:
“Bando covarde de Acaios, não digo de Aqueus, bons de língua!
Para nós todos será grande opróbrio, o mais grave e humilhante,
que nenhum Dânao revele coragem de a Heitor contrapor-se.
Em água e terra virar se pudésseis, em vez de ficarem
todos sentados, assim, onde se acham, com medo e sem honra!
Pois cingirei minhas armas para ir combatê-lo, que, é certo,
só dos eternos do Olimpo depende alcançar a vitória”.
Tendo isso dito, envergou, logo ali, a armadura brilhante.
E, por sem dúvida, o fim, Menelau, da existência encontraras
nas mãos de Heitor, por ser ele dotado de muito mais força
se não tivessem corrido a sustá-lo os mais nobres Aquivos,
conjuntamente com o Rei Agamémnone, rei poderoso,
que, pela destra o tomando, lhe diz as seguintes palavras:
“Enlouqueceste, discíp'lo de Zeus? Não estamos em tempo
de praticar desatinos. Embora não possas, contém-te.
Não te aventures, por coisa de nada, a lutar com o preclaro
filho de Príamo, Heitor, de quem outros, também, se receiam.
O próprio Aquiles, que muito te excede em virtude guerreira,
mostra receio de vir a encontrá-lo no prélio homicida.”


 ““Quando são dois, se um não vê, o outro logo percebe o caminho
mais vantajoso; sozinho qualquer indivíduo prudente
de inteligência mais tarda se torna e de ação menos pronta”.”


(...)” Idomeneu dos Cretenses o chefe, lhe disse, em resposta:
“Junto dos barcos do centro notáveis guerreiros se encontram,
os dois Ajazes e Teucro, o melhor dos archeiros Aquivos
e lutador esforçado nos duros embates de frente.
Penso que bastam para o ímpeto grande deter da investida
do nobre filho de Príamo, Heitor, valoroso guerreiro.
Há de lhe ser mui difícil, embora de lutas sequioso,
sobrepujar-lhes a fúria e vencer-lhes as mãos poderosas,
para lançar fogo às naves; a menos que o próprio Zeus Crônida
um facho aceso resolva arrojar nos navios velozes.
O grande Ajaz Telamônio ninguém poderá dominá-lo,
desde que seja mortal e se nutra dos grãos de Deméter,
e possa ser vulnerado por bronze ou por pedra violenta.
Não cederia terreno, em combate de perto, nem mesmo
ao próprio Aquiles; medir-se com este no curso é impossível.
No lado esquerdo fiquemos, portanto, tal como ora estamos,
para podermos dar glória a qualquer, ou de alguém recebê-la”.”


“Em altas vozes Deífobo pôs-se a jactar-se desta arte:
“Ásio, de fato caiu; mas encontra-se, agora, vingado.
Quando para o Hades descer, estou certo, de sólidas portas,
há de alegrar-se, por ver que lhe dei companheiro de viagem”.
A essas palavras de pura jactância os Aqueus se irritaram.”


“A essas palavras (de sua esposa) o pai dos mortais e dos deuses sorriu;
e, para a deusa voltando-se, disse-lhe, então, em resposta:
“Hera, magnífica, de olhos bovinos, se acaso, ao meu lado,
com pensamentos iguais, no concílio dos deuses sentasses,
em pouco tempo Posido, conquanto o contrário deseje,
de orientação mudaria, adaptando-se aos nossos desígnios.
Mas, se falaste sincera e teu peito enunciou a verdade,
bem; nesse caso dirige-te à tribo dos deuses e manda-me
Íris aqui, juntamente com Apolo, o frecheiro infalível.
A ela a incumbência darei de baixar às fileiras Acaias,
para dizer a Posido, senhor poderoso, que o campo
deixe da guerra e se acolha, de novo, ao seu belo palácio.
A Apolo incumbe o impecável Heitor excitar para a pugna,
força outra vez lhe insuflando e deixando-o esquecido das dores
que tanto lhe a alma excruciam. Deve ele, também, nos Aquivos
medo incutir, obrigando-os, assim, a volverem as costas
em fuga inerme, até a nave alcançarem, provida de remos,
do grande Aquiles Peleio, que, então, mandará para a luta
Pátroclo, o amigo dileto, que a lança de Heitor valoroso,
vai, junto de Ílio prostrar, pós ter ele a inimigos inúmeros
a morte dado, entre os quais o meu filho, o divino Sarpédone.
O divo Aquiles a Heitor matará, ante o feito indignado.
Nesse momento farei que, das naves repulsos, os Teucros,
sem mais descanso se vejam, até que os Aquivos escalem
os muros lisos de Tróia, por traça de Palas Atena.
Mas, antes disso, repito-o, não hei de sofrear minha cólera,
nem deixarei que nenhum imortal os Argivos socorra,
té que não venha a cumprir-se o desejo ardoroso de Aquiles,
como o afirmei que o faria e o asselei com o sinal da cabeça,
quando abraçando-me Tétis os joelhos, pediu, insistente,
que ao filho Aquiles honrasse, o famoso eversor de cidades”.”


“Corre, entrementes, Aquiles, as tendas e o campo e aos Mirmídones
manda, insistente, que se armem. Tal como carnívoros lobos,
que têm perfeita consciência do grande vigor que os distingue,
quando, alcançando um veado galheiro, nos montes o prostram
e o despedaçam; escorre-lhes sangue das fortes mandíbulas;
em alcateia, depois, se dirigem à fonte sombria,
e a superfície da escura corrente com as línguas delgadas
lambem cruor estilando que as águas enturva; o intestino
se lhes dilata, mas grande coragem no peito conservam:
os conselheiros e guias, assim, dos valentes Mirmídones
se congregavam em torno do amigo prestante do neto
de Éaco. Aquiles, o herói belicoso, no meio das turmas
estimulava os guerreiros de carro e os que a pé combatiam.
Eram cinquenta os navios que Aquiles veloz, a Zeus caro,
tinha trazido para Ílio. Cada uma das naves recurvas
com cinquenta homens nos bancos dos remos se achava provida.”


 ““Qual a razão de teu choro, meu filho? Que dor te acabrunha?
Ora me conta sem nada ocultar-me; de Zeus obtiveste
quanto pediste, para o alto, na súplica, as mãos elevando:
que contra as popas premidos, sofrendo trabalhos indignos,
falta sentissem de ti, grande falta, os guerreiros de Acaia”.
Disse-lhe Aquiles, de rápidos pés, a gemer fundamente:
“Sim, minha mãe, é verdade que o Olímpio me fez isso tudo;
mas, que prazer posso eu ter, se perdi o mais caro dos sócios,
Pátroclo, o amigo que acima de todos prezava, estimando-o
como a mim próprio? Perdi-o, e a armadura admirável, encanto
de nossos olhos, Heitor ao privá-lo da vida, tomou-lha,
a que a Peleu, como dádiva excelsa os eternos doaram
no dia em que eles no leito de um homem mortal te puseram.
Fora melhor que entre as ninfas do mar a viver continuasses,
e que Peleu uma esposa mortal escolhido tivesse.
Mas quis o Fado que dor a sofrer também venhas, infinda,
quando perderes o filho, que nunca, de volta da guerra,
hás de acolher no palácio. Viver, continuar entre os homens,
certo, não posso, diz-me a alma, se a Heitor não tirar a existência
com minha lança pontuda, e não vir, desse modo, vingada
a grande perda de Pátroclo, o filho do claro Menécio”.
Tétis, então, a chorar, lhe responde as seguintes palavras:
“Curta existência terás, caro filho, a assim resolveste,
pois logo após o trespasso de Heitor, quer o Fado que morras”.”


“Ora façamos conforme o aconselho; obedeçam-me todos.
Sem dispensar as falanges no campo, da ceia se cuide;
todos se ocupem da guarda; a ninguém se consente que durma.
E se a algum Teucro as riquezas por modo excessivo preocupam
traga-as, então, e as divida entre o povo, que é muito mais útil
serem por nós consumidas a caírem nas mãos dos Acaios.
Mas amanhã logo cedo enverguemos as armas luzentes
para fazer espertar junto às naves o deus Ares forte.
Se o divo Aquiles de fato, pretende afastar-se das naves,
dura experiência há de ter, que não penso em fugir do recontro
dolorosíssimo; sim, arrostando-o com ânimo firme,
hei de alcançar alta glória ou fazer que alta glória ele alcance.
Ao matador, é frequente, o próprio Ares tirar a existência”.
Esse o discurso de Heitor; os Troianos, em peso, o aplaudiram.
Néscios! A todos Atena privara do são raciocínio,
pois aceitaram os planos ruinosos de Heitor, sem que ao sábio
Polidamante ninguém a menor atenção concedesse.”


 “Reúnem-se os deuses, assim, no palácio de Zeus. Movimenta-se
o abalador ao chamado de Témis; das ondas emerge,
em meio aos outros se senta e de Zeus o conselho interroga:
“Fulminador poderoso, por que esta assembleia reuniste?
Tens, porventura, algum plano a respeito de Teucros e dos Aquivos,
cuja contenda voraz está prestes a ser consumida?”
Zeus que bulcões acumula, lhe disse, em resposta, o seguinte:
“Adivinhaste, Posido, o motivo de eu ter-vos chamado.
Ainda que estejam fadados à morte com todos me ocupo.
Nos altos cumes do Olimpo pretendo ficar, deleitando-me
com a visão dos combates. Vós todos, porém, para o meio
ide dos homens de Tróia e dos fortes Aquivos, conforme
vos aprouver, para auxílio levardes a quem vos for grato.
Porque se Aquiles, sozinho, devesse lutar, os Troianos
nem um instante ao Pelida eficaz resistência oporiam,
pois sua vista, somente, lhes causa pavor indizível.
E ora que se acha irritado por causa da morte do amigo,
temo que, contra o Destino, consiga expugnar a cidade”.
Essas palavras do Crônida enorme batalha provocam.
Entram os deuses no campo da luta, em dois bandos cindidos:
Hera desceu para as naves, ao lado de Palas Atena,
do abalador poderoso, Posido, e do nume benéfico,
Hermes, insigne por ser exornado de espírito culto.
Em sua força confiado, também, desce Hefesto com eles,
a coxear, afanoso, nas pernas recurvas e débeis.
Ares, do casco brilhante, se foi para os Teucros, seguido
de Ártemis, deusa frecheira, de Febo de intonsos cabelos,
de Leto e o Xanto, e da bela Afrodite, dos risos amante.”


“O divino Pelida,
ao percebê-lo, saltou para a frente e exclamou a gloriar-se:
“Eis, finalmente, o indivíduo que chama me abriu no imo peito,
com o trespasso do amigo dileto. Mais tempo, decerto,
nas vastas pontes da luta não mais fugiremos um do outro”.
E com turvadas feições, para Heitor, o divino, assim disse:
“Chega-te, e logo hás de ver-te, por certo, no extremo funesto”.
Sem mostrar medo, o impecável Heitor em resposta lhe disse:
“Não penses, ínclito Aquiles, que tuas palavras me assustam,
como se criança ainda eu fosse. Eu, também, poderia estirar-me
em palavrões insultuosos e termos de pura bazófia.
Sei que és valente e que muito inferior do que tu sou, sem dúvida.
Mas o futuro ainda se acha nos joelhos dos deuses eternos.
Ainda que eu seja inferior, poderei da existência privar-te
com minha lança, que até este momento provou ser pontuda”.
Vibra, ao falar, a hasta longa, atirando-a com força. Mas Palas
com um simples sopro a desvia de Aquiles, o herói valoroso,
sopro mui tênue, que junto de Heitor a coloca de novo,
indo cair-lhe ante os pés. Nesse instante lançou-se o Pelida
cheio de fúria, a gritar, contra o célebre filho de Príamo,
só desejando matá-lo. Mas Febo o levou para longe,
mui facilmente – era deus – envolvendo-o em caligem espessa.
Por vezes três ainda o ataca, investindo com a lança, o divino
e velocíssimo herói; por três vezes bateu contra a nuvem.
Quando, porém, pela quarta avançava, semelho a um demônio,
com voz terrível o insulta, dizendo as palavras aladas:
“Mais uma vez, cão danado, escapaste da Morte! Passou-te
perto a desgraça. Livrou-te, sem dúvida, Febo de novo,
de quem obténs real amparo, ao entrares no ardor dos combates.
Hei de dar cabo de ti, onde quer que de novo te encontre,
se, porventura, um dos deuses quiser, igualmente, auxiliar-me”.”


“Não fugirei mais de ti, como o fiz até agora, Pelida,
dando três vezes a volta à cidade sagrada de Príamo,
sem ter coragem de o assalto aguardar. Ora o peito me leva
a acometer-te, e a privar-te da vida, ou a morrer por teu braço.
Antes, porém, de lutar, invoquemos os deuses eternos,
que testemunhas idôneas serão do que, firmes, jurarmos.
Se, porventura, Zeus grande me der a vitória, deixando
que da existência te prive, de ultrajes ao corpo me abstenho.
Pós a armadura brilhante dos membros tirar-te, Pelida,
para os Aqueus o cadáver entrego; promete outro tanto”.
Disse-lhe Aquiles, de rápidos pés, indignado, em resposta:
“Odiosíssimo Heitor, não me fales em pactos solenes.
Como é impossível entre homens e leões haver paz e confiança,
ou que carneiros e lobos revelem iguais sentimentos,
pois nutrem ódio implacável e danos meditam recíprocos,
não pode haver entre nós amizade nenhuma, nem pactos
ou juramentos solenes, até que um de nós caia morto
e com seu sangue, a Ares forte sacie, o guerreiro incansável.
Deves de tua bravura habitual investir-te, que nunca
necessidade tão grande tiveste de ser valoroso.
Não poderás escapar. Há de Atena fazer dentro em breve
que à minha lança sucumbas. O mal que aos Aquivos obraste
com tua lança homicida, ora deves, por junto, pagar-me”.
Tendo isso dito, atirou-lhe a hasta longa de sombra comprida.
Vendo-a, o impecável Heitor, abaixando-se ao golpe se esquiva;
passa-lhe a lança de bronze por sobre a cabeça, indo ao longe,
no duro solo, encravar-se. Mas Palas Atena, tomando-a
às escondidas do herói, foi de novo entregá-la ao Pelida.
O ínclito Heitor, para Aquiles virando-se, diz o seguinte:
“Não acertaste, divino Pelida! Era falso dizeres
que Zeus te havia informado a respeito do fim que me espera.
És forjador mui sutil de enganosas palavras, apenas,
para que viesse a assustar-me, esquecido do ardor que me é próprio.
Não deverás, entretanto, cravar-me a hasta longa nas costas.
Mas, se algum deus o permite, atravessa-me o peito, de frente,
quando atacado te vires. Primeiro, porém, te resguarda
de minha lança, que anseio, até o cabo, enterrar-te no corpo.
Para os Troianos a guerra ficara bem mais suportável,
se te finasses, por seres a todos terrível açoite”.
Tendo isso dito, atirou-lhe a hasta longa de sombra comprida,
que foi, certeira, no meio do escudo bater do Pelida.
Mas repulsada caiu, ao tocar no pavês. Indignado
fica o Troiano ao notar que frustrânea a hasta longa jogara.
Ao perceber que não tinha outra lança, aturdido se mostra,
e em altos gritos chamou pelo irmão de pavês reluzente,
para pedir-lhe mais uma; nenhures, porém, o percebe.
No coração tudo Heitor compreendeu, e a si próprio, então, disse:
“Pobre de mim! É bem certo que os deuses à morte me votam.
Tive a impressão de que o forte Deífobo estava ao meu lado,
mas na cidade se encontra; foi tudo por arte de Atena.
Inevitável, a morte funesta de mim se aproxima.
Há muito tempo, decerto, Zeus grande e seu filho frecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem, pois eles,
sempre benévolos, soíam salvar-me; ora o Fado me alcança.
Que pelo menos, obscuro não venha a morrer, inativo;
hei de fazer algo digno, que chegue ao porvir, exaltado”.
Tendo isso dito, arrancou logo a espada de gume cortante,
que sempre ao lado lhe estava, pesada e de boa feitura.
E, concentrando-se, um pulo desfere, como águia altaneira,
que na planície se atira, através de bulcões adensados,
para prear lebre tímida, ou ovelha de lã reluzente:
como águia, Heitor arremete, a brandir o montante afiado.
Contra ele Aquiles investe, também, transbordante de cólera;
diante do peito mantém o brilhante pavês, protegendo-o,
de primorosa feitura; ondulava-lhe no alto da fronte
o elmo de quatro saliências, fazendo esvoaçar a plumagem
de ouro que Hefesto pusera na forte e brilhante cimeira.
Tal como Vésper, a mais resplendente de quantas estrelas
se alçam no céu, majestosas, no escuro da noite divina:
do mesmo modo fulgura a hasta longa de ponta aguçada
na mão de Aquiles, que a Heitor infligir fatal dano procura,
investigando no corpo donoso um lugar descoberto.
Todos os membros, porém, envolvidos se achavam na bela
e refulgente armadura espoliada de Pátroclo exímio.
Via-se, apenas, a parte em que do ombro separa a clavícula
o tenro colo, a garganta, onde o ataque é funesto para a alma.
Quando contra ele avançava, o Pelida, aí, lhe enterra a hasta longa,
atravessando-lhe a ponta de bronze o pescoço macio.”


“Disse-lhe Antíloco, o herói prudentíssimo, então, em resposta:
“Condescendência te peço, pois muito nos anos te cedo,
Rei Menelau; és mais velho do que eu e bem mais valoroso.
Certo conheceres os moços e quão facilmente se excedem,
por serem de ânimo vivo, mas faltos do justo equilíbrio.
Sê, pois, paciente comigo; dar-te-ei, voluntário, o meu prêmio,
a égua vistosa. Ainda mais: se de quanto possuo quiseres
algo exigir-me, sem mores delongas, declaro-o, prefiro
a teu pedido ceder, caro aluno de Zeus, a saber-me
de teu afeto banido e perjuro ante os deuses eternos”.”


“Quando a dozena manhã no horizonte raiou matutina,
para os eternos Apolo se vira e lhes diz o seguinte:
“Sois todos cruéis, destrutores eternos! Heitor, por acaso,
nunca voz fez sacrifícios de bois e de ovelhas vistosas?
E ora não tendes coragem, sequer, de salvar-lhe o cadáver,
para que a esposa o contemple, a mãe nobre e o filhinho ainda infante,
bem como Príamo e o povo troiano, que, logo, à fogueira
o entregariam, prestando-lhe as honras funéreas devidas?
Ao invés disso, ao funesto Pelida amparais, tão-somente,
tão destituído de humano sentir, sem razoáveis propósitos
no coração abrigar, como o leão, cujo instinto selvagem,
à força ingente associada e à indomável coragem, o leva
a devastar os rebanhos dos homens a fim de saciar-se.
Toda a piedade falece ao Pelida, falece-lhe o senso
da reverência, que é fonte de males e bens para os homens.
A todo instante acontece a mais íntima pena sofrer-se,
ao ver-se alguém pela morte privado de irmão ou de filho,
mas, afinal, tudo acaba: os lamentos, o choro sentido,
que coração resignado aos humanos as Moiras cederam.
Este, porém, pós a vida de Heitor extinguir, arrastado
ao derredor do sepulcro do amigo os cavalos o levam,
sem que esse ultraje indecente lhe traga nenhuma vantagem.
Guarde-se o herói, por maior que ele seja, dos deuses do Olimpo,
pois contra terra insensível, apenas, a fúria exercita”.”


“Ambos choravam; o velho, lembrado de Heitor valoroso,
num soluçar convulsivo, de Aquiles aos pés enrolado,
que ora o pai velho chorava, ora a perda do amigo dileto,
Pátroclo; o choro dos dois pela tenda bem feita ressoava.
Logo que Aquiles divino saciado ficou de gemidos
e os membros todos e o peito sentiu libertados da angústia,
do belo trono se ergueu, pela mão toma o velho monarca,
da branca barba condoído, condoído da nívea cabeça,
e, começando a falar, lhe dirige as palavras aladas:
“Quanta amargura, infeliz, não suportas ao peito sofrido!
Como pudeste vir só aos navios dos fortes Aquivos
e apresentar-te entre os olhos de quem foi a causa da perda
de tantos filhos valentes? Tens férreas entranhas, decerto.
Vamos, assenta-te agora no trono; apesar de angustiados,
é conveniente deixar que as tristezas no peito se aplaquem.
Nada o homem lucra em deixar-se invadir pelo gélido pranto.
Sempre viver em tristeza, eis a sorte que os deuses eternos
de descuidada existência aos mortais infelizes dotaram.
Sobre os umbrais do palácio de Zeus dois tonéis se acham postos,
de suas dádivas; um, só de males; de bens o outro cheio.
Se, misturando-as, Zeus grande, senhor dos trovões, as derrama,
quem as recebe ora goza, ora males por sorte lhe tocam;
mas o que dele recolhe somente infortúnios, escárnio
vivo se torna; em extrema miséria, na terra divina
é condenado a vagar, desprezado por homens e deuses.
Ao nascimento, também, de Peleu os eternos lhe deram
dons inefáveis; riquezas sem conta, dos homens a estima,
e o incontestado governo dos fortes guerreiros Mirmídones.
Mais: apesar de mortal, como esposa uma deusa lhe cedem.
Grande infortúnio, porém, concederam-lhe os deuses, negando-lhe
filhos que o mando pudessem herdar-lhe no belo palácio;
a mim somente gerou, destinado a morrer muito cedo.
Longe a pátria, não posso cercar de cuidados o velho,
pois me acho em Tróia, causando-te e aos filhos desditas sem conta
Tu, também, velho, já foste feliz, pelo que me contaram.
Quantos guerreiros existem de Lesbo, na sede de Mácar,
té para o norte da Frígia, nos lindes do vasto Helesponto,
já dominaste, abençoado com filhos e bens infindáveis.
Mas, desde o instante em que os deuses celestes tal praga te enviaram
guerra, somente e homicídios em torno dos muros te soam.
Vamos, suporta! Não deves à dor excruciante entregar-te.
Nada consegues chorando teu filho com tantos encômios;
não ressuscita, e, além disso, outro mal poderias causar-te”.”